RESUMO: Este ensaio analisa a disposição incorporada ao Título III do Código de Processo Civil de 2015, concernente à Intervenção de Terceiros. Paralelamente, examina-se a maneira pela qual a Fazenda Pública se imiscui em ações judiciais nas quais sua participação como parte não se origina desde o início do processo. No âmbito deste diálogo entre as diversas perspectivas doutrinárias e os variados precedentes judiciais, busca-se efetuar uma avaliação das posições predominantes em relação à natureza jurídica dessa modalidade de intervenção, aos critérios que a norteiam, aos poderes inerentes ao interveniente, à viabilidade de recurso, e à possibilidade de redefinição da competência jurisdicional em decorrência da intervenção por parte da entidade estatal.
Palavras-chave: Código de Processo Civil de 2015. Intervenção de Terceiros. Fazenda Pública. Interposição de recurso. Competência.
Abstract: This essay examines the provision incorporated into Title III of the 2015 Civil Procedure Code, concerning Third-Party Intervention. Simultaneously, it explores the manner in which the Public Treasury involves itself in judicial proceedings in which its participation as a party does not originate from the outset of the process. Within the context of this dialogue between various doctrinal perspectives and diverse judicial precedents, an assessment is sought of the prevailing positions regarding the legal nature of this mode of intervention, the guiding criteria, the inherent powers of the intervenor, the feasibility of appeal, and the potential for redefinition of jurisdictional competence due to the intervention by the governmental entity.
Keywords: 2015 Civil Procedure Code. Third-Party Intervention. Public Treasury. Filing of appeal. Jurisdiction.
Introdução
Com a implementação do Novo Código de Processo Civil de 2015, que passou a vigorar em 18 de março de 2016, um ano após a data de sua publicação, os operadores do Direito se viram diante de uma reconfiguração das categorias de Intervenção de Terceiros introduzidas pelo novo estatuto.
A inovação normativa, presente na seção inicial do Código, Livro III (que trata das Partes e seus Procuradores) e detalhada no Título III (referente à Intervenção de Terceiros), apresenta determinadas correspondências e discrepâncias quando comparada ao tratamento da intervenção de terceiros sob o regime do Código anterior, datado de 1973. Entretanto, um dos modelos de intervenção (Nomeação à Autoria) deixou de subsistir como uma categoria autônoma, transformando-se em um incidente a ser tratado no contexto da resposta do demandado; outro modelo (Oposição) deixou de ser reconhecido como intervenção e foi transferido para os procedimentos especiais delineados no Código de 2015.
Por outro lado, duas novas modalidades de intervenção foram formalmente introduzidas: a figura do Amicus Curiae e o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Dessa forma, no âmbito das modificações e inclusões das hipóteses estabelecidas no CPC 2015, o novo Código manteve um total de cinco tipos de intervenções de terceiros: Assistência, Chamamento ao Processo, Denunciação da Lide, Amicus Curiae e Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Superando essa reestruturação do Código Processual, a complexidade acentua-se pelo fato de que nem todas as intervenções encontram justificação plena dentro das categorias tradicionais, conduzindo alguns estudiosos do direito a sustentar que a enumeração legal tem caráter meramente exemplificativo. Outras previsões legais dispersas, que autorizam a intervenção de terceiros em fases já desenvolvidas do processo, não se harmonizam com nitidez em nenhum dos cinco modelos delimitados pelo CPC 2015. Tais situações são frequentemente classificadas como intervenções de terceiros atípicas, não convencionais, excepcionais ou anômalas.
No mencionado rol de intervenções de terceiros atípicas enquadra-se aquela que ocasionalmente é executada pelo ente de Direito Público, também chamada por grande parte da doutrina de Intervenção Anômala da Fazenda Pública, núcleo central desta exposição. Serão avaliados os dispositivos legais que a respaldam, os critérios exigidos, a possibilidade de recurso, a aferição da possível alteração de competência jurisdicional em decorrência da intervenção, além de outras circunstâncias pertinentes.
Metodologia
O desenvolvimento deste estudo abrangeu as seguintes etapas: análise bibliográfica em relação ao tópico, exame de revistas científicas, recolha de decisões judiciais e sumários em portais jurídicos, incluindo os sites oficiais do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, observações pessoais e investigação de artigos científicos correlatos ao tema central desta pesquisa. A partir desses elementos, procurou-se aprofundar a investigação nas discrepâncias doutrinárias e jurisprudenciais relacionadas à intervenção da fazenda pública após a promulgação do Novo Código de Processo Civil em 2015.
Desenvolvimento
1. Configurações das Intervenções de Terceiros no CPC.
O CPC 2015 estabeleceu 05 (cinco) espécies de modalidades típicas de intervenção de terceiros: Assistência, Denunciação da Lide, Chamamento ao Processo, Amicus Curiae e Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica.
A figura da Assistência, abordada nos artigos 119 a 124 do Código, configura-se como uma forma de intervenção voluntária, na qual um terceiro manifesta um interesse jurídico no desfecho de um processo pendente, visando à obtenção de uma sentença favorável a uma das partes. Isso pode ocorrer tanto por meio da inclusão desse terceiro no polo ativo quanto no polo passivo (assistidos). A Assistência pode ser efetivada de duas maneiras, distinguindo-se entre Assistência Simples (ou adesiva) e Assistência Litisconsorcial.
Na modalidade de Assistência Simples, o terceiro (assistente) assume um papel auxiliar em relação à parte principal, exercendo idênticos poderes e arcando com as mesmas obrigações processuais que o assistido. Contudo, é importante salientar que isso não impede que a parte original venha a transigir, renunciar à ação ou abdicar de seu direito, tampouco que a sentença produza coisa julgada em relação ao assistente, exceto em situações de dolo ou culpa do assistido por não ter utilizado evidências cuja existência era desconhecida, ou quando o assistente, em função do estágio em que o processo se encontrava ou das ações do assistido, foi impedido de apresentar provas capazes de influenciar a decisão.
No contexto da Assistência Litisconsorcial, emerge uma controvérsia quanto à qualificação do terceiro. Alguns argumentam que ele poderia ser classificado como um assistente qualificado, devido à sua posição processual, enquanto outros sustentam que ele se assemelharia a um litisconsorte, pois alega ser titular do próprio direito material. Essa modalidade se diferencia da Assistência Simples, onde não existe uma relação jurídica entre o assistente e a parte adversa do assistido. Entretanto, é crucial observar que aqueles que a consideram uma espécie de litisconsórcio devem reconhecer que este último sempre é de natureza facultativa.Parte superior do formulárioParte inferior do formulário
Sobre o tema, já se posicionou Daniel Amorim Assumpção Neves:
Na realidade, fazendo ou não o pedido ou sendo ou não feito pedido contra ele, por ser o titular do direito discutido no processo, o acolhimento ou a rejeição o atingirá da mesma forma que o atingiria se o sujeito tivesse pedido ou contra ele tivesse feito qualquer pedido. (NEVES, Daniel Amorim Assumpção, 2017, p. 345).
Avançando conforme a sequência estabelecida pelo código processual, a próxima abordagem recai sobre a Denunciação da Lide (artigos 125 a 129 do CPC 2015), uma modalidade essencialmente compulsória. Nessa variante, é pressuposto que uma das partes (denunciantes) promova a inserção de um terceiro (denunciado) no desenrolar do processo - alguém que, de alguma forma, carrega a responsabilidade por eventuais danos resultantes da resolução da demanda. Este terceiro, por sua vez, tem o poder de questionar sua qualidade de parte demandada por um autor ou réu original, seja através de um ponto específico na petição inicial ou na contestação, respectivamente. É de relevante importância observar que, uma vez superado o período da denunciação, não há impedimento para que uma das partes promova o início de uma ação regressiva independente, desde que os prazos de prescrição ou decadência não tenham transcorrido.
Caso o terceiro seja inserido no polo ativo, a oportunidade é dada para que novos argumentos sejam incorporados à petição inicial. Em contraste, no cenário em que o terceiro ingressa no polo passivo, o denunciado pode: contestar o pleito formulado pelo autor, juntando-se ao réu para formar um litisconsórcio; permanecer inerte e se tornar revel (o que proporciona ao réu a alternativa de abdicar da sua defesa principal e agir somente em relação à ação regressiva) ou reconhecer os fatos alegados pelo autor na ação principal, o que viabiliza ao denunciante dar continuidade à sua defesa ou aderir a essa admissão, solicitando apenas o julgamento procedente da ação regressiva.
À medida que se avança na análise das intervenções de terceiros típicas, exsurge o instituto do Chamamento ao Processo (artigos 130 a 132, CPC 2015), sem, no entanto, receber uma definição explícita. Contudo, o Código caracteriza claramente as três situações em que um terceiro (chamado) é obrigado a ser trazido ao processo principal, incidentalmente, pelo réu: a) afiançado, na ação em que o fiador for réu; b) demais fiadores, na ação proposta contra um ou alguns deles; e c) demais devedores solidários, quando o credor exigir de um ou de alguns o pagamento da dívida comum.
O Chamamento deve ser efetuado no âmbito da contestação e está sujeito à preclusão. É crucial notar que a citação do chamado, requerida pelo réu, deve ser executada dentro do prazo de trinta dias (ou dois meses, se o chamado residir em outra comarca ou subseção judiciária), sob pena de ser considerada ineficaz. Mesmo diante da preclusão da faculdade processual para requerer a intervenção no prazo de defesa, é válido ressaltar que o réu derrotado na ação originária poderá intentar uma ação regressiva autônoma contra o terceiro, visto que este último não será alvo de um título executivo judicial.Parte superior do formulário
No que tange ao Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, o Código de Processo Civil de 2015, em seus artigos 133 a 137, categoriza tal procedimento como uma nova variante de intervenção de terceiros. Este incidente, previsto em outros marcos normativos, a exemplo do Código Tributário Nacional, em seu artigo 135, e do Código Civil de 2002 (artigo 50), para mencionar apenas alguns, encontra respaldo no Superior Tribunal de Justiça (STJ) como uma via para agilizar e otimizar um processo já em andamento, evitando a necessidade de uma nova ação de conhecimento apenas com o propósito de concretizar a superação da autonomia da personalidade jurídica.
A desconsideração emerge quando os efeitos de certas obrigações atribuídas à pessoa jurídica podem abranger os bens particulares de seus sócios ou administradores. Quando essa extensão se dá de maneira invertida (por exemplo, a responsabilidade da pessoa jurídica por obrigações dos sócios), temos a desconsideração inversa, sujeita igualmente aos trâmites delineados no CPC 2015.
No que tange a esta modalidade de intervenção, é importante enfatizar que pode ser instaurada em qualquer estágio do processo de conhecimento, no curso da execução da sentença ou na fase de execução propriamente dita. Uma vez alegado o incidente, o andamento do processo é suspenso até que se emane uma decisão a respeito da amplitude dos efeitos do incidente, a menos que os terceiros afetados já tenham sido citados na petição inicial.
Por fim, à exceção de procedimentos especiais peculiares, é importante frisar que a instauração deste incidente só pode ser requerida por uma das partes ou por um membro do Ministério Público, quando este último tem competência para intervir no processo, mas nunca de ofício pelo juiz.Parte superior do formulário
Concluindo a análise das categorias típicas previstas no CPC 2015, resta abordar a temática relativa ao Amicus Curiae, instituto regulamentado de maneira concisa em um único preceito do mencionado Código. A principal função atribuída a esse interveniente reside na prestação de colaboração ao tribunal em demandas que ostentem relevância social, projeção geral ou que, devido à sua singularidade e complexidade técnica, demandem um apoio especializado a fim de suprir eventuais lacunas do julgador. O Amigo da Corte, seja ele pessoa física ou jurídica, imprime ao processo uma dimensão de enriquecimento ao verter sua elevada expertise na matéria objeto de controvérsia.
Sob essa ótica Fredie Didier Júnior defende que o amicus curiae exerce a função de auxiliar do tribunal, tendo por escopo aprimorar de modo ainda mais profícuo as deliberações proferidas pelo Poder Judiciário. Tal posicionamento deriva do reconhecimento de que, em determinadas circunstâncias, o magistrado pode não ostentar conhecimentos abrangentes e suficientes para proporcionar a mais acurada e adequada tutela jurisdicional. Frisa o autor:
O amicus curiae compõe, ao lado do juiz, das partes, do ministério público e dos auxiliares de justiça, o quadro dos sujeitos processuais. Trata-se de outra espécie distinta das demais, pois sua função é de auxílio em questões técnico-jurídicas. Municia o magistrado com elementos mais consistentes para que melhor possa aplicar o direito ao caso concreto. Auxilia-o na tarefa hermenêutica. Esta última característica o distingue dos peritos, uma vez que esses têm uma função de servir como instrumento de prova e, pois, de averiguação do substrato fático. Não se cogitam honorários, nem há grandes incidentes em sua atuação, tendo em vista que, normalmente, ela se dá por provocação do magistrado. (DIDIER JÚNIOR, Fredie, 2009, p. 1248-1249).
Esta modalidade de intervenção pode ser solicitada pelas partes litigantes ou, de maneira discricionária, por magistrados e relatores, momento em que se procede à delimitação dos poderes atribuídos ao amicus curiae. Não obstante o interesse de cunho institucional, que não se confunde com interesse público, a entrada desse terceiro interveniente não produz alterações no domínio da competência, nem confere prerrogativa à interposição de recursos, com exceção dos embargos de declaração (ou em casos que envolvam decisões relacionadas ao IRDR – Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas).
Após essa sucinta descrição das categorias habituais de intervenção de terceiros estabelecidas no CPC 2015, procede-se à incursão no exame da intervenção da Fazenda Pública e da forma como ela se harmoniza (ou não) com o novo arcabouço processual.
No âmbito do presente artigo, o cerne da análise recai sobre a aferição da natureza jurídica subjacente à intervenção do ente estatal. Com o propósito de alcançar tal desiderato, se faz conveniente abordar a codificação normativa pertinente, os desdobramentos decorrentes da intervenção em relação aos poderes inerentes ao interveniente, as repercussões quanto à redistribuição da competência em decorrência de sua inclusão e, ainda, a possibilidade de apelo por parte deste (apenas admitindo-se, até o momento, os embargos de declaração, ou nos casos de pronunciamento sobre o IRDR – Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas). Somente após essa minuciosa análise, será possível classificar o fenômeno sob algum dos institutos do direito processual brasileiro.
2. A intervenção anômala na Lei nº 9.469/1997
O dispositivo inicial da lei nº 9.469/97, mais especificamente em seu caput, estabelece a prerrogativa da União de se inserir nos litígios em que figurem como autoras ou rés entidades como autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas federais. No entanto, o ponto de maior interesse para análise emerge do parágrafo único, onde o Poder Público Federal, mesmo sem apresentar um interesse jurídico direto na contenda, está autorizado a intervir, desde que exista a possibilidade de que a decisão possa ter consequências, ainda que de maneira indireta, de natureza econômica (denominado pela doutrina e jurisprudência como “interesse econômico”). Nesse contexto, a intervenção visa a esclarecer aspectos tanto de cunho fático quanto jurídico. A redação é a seguinte:
Art. 5º A União poderá intervir nas causas em que figurarem, como autoras ou rés, autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas federais.
Parágrafo único. As pessoas jurídicas de direito público poderão, nas causas cuja decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica, intervir, independentemente da demonstração de interesse jurídico, para esclarecer questões de fato e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao exame da matéria e, se for o caso, recorrer, hipótese em que, para fins de deslocamento de competência, serão consideradas partes.
Muito embora o dispositivo não faça referência expressa apenas à União, doutrina e jurisprudência já se firmaram no sentido de que o instituto é aplicável a todos os entes políticos, ainda que o litígio aconteça entre particulares.
Importa destacar que a participação do Poder Público no processo original não está condicionada a um interesse jurídico, ao contrário das modalidades comuns estabelecidas no CPC 2015, a exemplo da assistência e a denunciação da lide.
Adicionalmente, esse interesse não se equipara ao do amicus curiae, cuja intervenção visa qualificar a decisão e é investida de um interesse cuja natureza é mais específica e institucional, com o propósito de aprimorar a atividade jurisdicional.
O interesse subjacente à intervenção delineada na lei nº 9.469/97 é essencialmente econômico, e esse aspecto, em conjunto com algumas considerações de ordem jurídica, fundamenta a possibilidade de intervenção do ente público no processo. É o que ressalta o doutrinador Guilherme Freire de Melo Barros, em sua obra, O poder público em juízo para concursos:
A rigor, esse ‘reflexo de natureza econômica’ a que se refere a norma não deixa de possuir conteúdo jurídico. É dizer, o interesse econômico é o requisito jurídico exigido pelo dispositivo para permitir a intervenção.
[...]
É preciso aprofundar a análise do que se compreende por interesse econômico a permitir a intervenção do ente público. Qualquer processo, ainda que esteja a tutelar direitos da personalidade, envolve certo conteúdo econômico, quando menos no que tange as custas processuais e honorários advocatícios. Entretanto, não parece possível a intervenção do ente público em todo e qualquer processo.
É preciso qualificar o interesse econômico (ainda que reflexo) que possibilita a intervenção do artigo 5º. A norma deve ser compreendida na exata medida em que a consequência patrimonial feta o interesse público – como, por exemplo, a possibilidade de se obstaculizar a consecução das finalidades do Estado. (BARROS, Guilherme Freire de Melo, 2016, p. 112).
Aspecto de relevante importância na lei diz respeito à limitação da atuação da Fazenda Pública, a qual se restringe à elucidação de questões fáticas e jurídicas, bem como à apresentação de documentos e memoriais considerados relevantes para a resolução de pontos controvertidos. Isto é, para refutar alegações constantes na petição inicial que sejam contestadas na contestação. Nesse sentido, a Fazenda Pública se assemelha à figura do amicus curiae, conferindo certa qualidade ao exercício judicante e proporcionando esclarecimentos acerca de questões pertinentes à sua esfera.
Por outro lado, ao examinar o parágrafo único em comento, observa-se uma distinção em relação ao "Amigo da Corte", pois à Fazenda Pública é concedida a faculdade de interpor qualquer tipo de recurso. Nesse momento, a Fazenda Pública transcende sua limitação de intervenção (atuando de forma similar a um assistente simples), adquirindo a capacidade de exercer todos os poderes de um recorrente, inclusive o de atuar perante o tribunal com sustentação oral, como um litisconsorte ou assistente litisconsorcial. Ao amicus curiae, é sabido, cabe apenas a oposição de embargos de declaração ou o recurso de decisões de incidentes de demandas repetitivas (IRDR).
A incerteza não reside na interposição do recurso, mas sim na possibilidade de deslocamento de competência quando a União, autarquias, fundações públicas ou empresas públicas federais recorrem. Discussões acaloradas surgem devido ao fato de que o processo, até então conduzido no âmbito da justiça estadual, pode sofrer uma mudança na decisão recorrida por órgão judiciário da União após a interposição do recurso.
Parte superior do formulário
Para uma parte da doutrina, como a União passa, como recorrente, a ostentar a condição de parte, a competência, assim como ocorre com a denunciação da lide e o chamamento ao processo, deve ser deslocada para a Justiça Federal, conforme artigo 109, inciso I, da Constituição Federal de 1988:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; [...].
Outra parcela de juristas, com cuja posição coaduna-se Leonardo José Carneiro da Cunha, entre outros, entende que o deslocamento proposto pelo parágrafo único da lei nº 9.469/97 não é possível:
[...] tal deslocamento não é possível e o dispositivo deve ser desconsiderado, uma vez que o inciso II do artigo 108 da Constituição da República determina que compete à Justiça Federal julgar os recursos de causas decididas por juízes federais ou por juízes estaduais no exercício da competência federal. (CUNHA, Leonardo José Carneiro, 2016, p. 177).
Expondo-se numa postura intermediária entre as duas perspectivas mencionadas, Guilherme Freire de Melo Barros propõe uma abordagem conciliatória entre o dispositivo legal e a previsão constitucional. Com tal enfoque, antecipa-se à própria natureza jurídica da intervenção da Fazenda Pública. O autor argumenta que, em primeira instância, a União não figura como parte, mas sim como amicus curiae. No entanto, ao recorrer, transforma-se em parte, resultando no deslocamento de competência. Essa ponderação é sustentada pelo autor:
A nosso ver, é possível compatiblizar o dispositivo legal com a previsão constituicional. Para tanto, deve-se observar a intervenção da União como duas modalidades diferentes, com naturezas jurídicas distintas. Em sua atuação no primeiro grau, a União não é parte, é amicus curiae, motivo por que não exerce ação ou defesa, não se vincula à coisa julgada, não é sucumbente. Como bem observou a doutrina especializada no assunto, a atuação da União no primeiro grau é transitória; não se torna sujeito do contraditório, não é parte do processo. No âmbito recursal, a atuação da União deve ser encarada como recurso de terceiro prejudicado (CPC, art. 996). Assim, ao recorrer, assume a condição de parte, o que atrai a competência da Justiça Federal, nos termos do artigo 109, inciso I. Disso não resulta violação ao artigo 108, inc. II; ao contrário, harmonizam-se as disposições constitucionais. A competência da Justiça Federal continua prevista no artigo 108, com o acréscimo da hipótese em que o processo tenha tramitado na Justiça Estadual, mas tenha se deslocado para a Justiça Federal por força da previsão, igualmente constitucional do inciso I do artigo 109. É que a competência da Justiça Federal é ratione personae, ou seja, independentemente da natureza da controvérsia, a presença do ente federal como parte atrai a competência desta Justiça. (BARROS, Guilherme Freire de Melo, 2016, p. 118).
Neste contexto, é essencial assinalar que é da atribuição da Justiça Federal deliberar sobre a verificação do interesse jurídico que fundamenta a participação da União, suas autarquias ou empresas públicas no processo. Tal entendimento é ratificado pela súmula nº 150 do Superior Tribunal de Justiça, que estabelece que "compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença, no processo, da União, suas autarquias ou empresas públicas".
Da mesma maneira, caso o órgão federal seja excluído do litígio, ocasionando a renúncia do Juiz Estadual à competência, o Magistrado Federal deve devolver os autos e não provocar um conflito, sendo vedada a reexame da questão pelo juiz estadual. Dispõe a súmula nº 224, também do STJ, que “excluido do feito o ente federal, cuja presença levara o Juiz Estadual a declinar da competência, deve o Juiz Federal restituir os autos e não suscitar conflito.”
Tais ditames foram, inclusive, positivados com o CPC 2015, como se observa do art. 45, §§1ºao 3º:
Art. 45. Tramitando o processo perante outro juízo, os autos serão remetidos ao juízo federal competente se nele intervier a União, suas empresas públicas, entidades autárquicas e fundações, ou conselho de fiscalização de atividade profissional, na qualidade de parte ou de terceiro interveniente, exceto as ações:
I - de recuperação judicial, falência, insolvência civil e acidente de trabalho;
II - sujeitas à justiça eleitoral e à justiça do trabalho.
§ 1o Os autos não serão remetidos se houver pedido cuja apreciação seja de competência do juízo perante o qual foi proposta a ação.
§ 2o Na hipótese do § 1o, o juiz, ao não admitir a cumulação de pedidos em razão da incompetência para apreciar qualquer deles, não examinará o mérito daquele em que exista interesse da União, de suas entidades autárquicas ou de suas empresas públicas.
§ 3o O juízo federal restituirá os autos ao juízo estadual sem suscitar conflito se o ente federal cuja presença ensejou a remessa for excluído do processo.
Após uma análise detalhada das complexidades envolvidas na intervenção da Fazenda Pública, chega-se à questão desafiadora de enquadrar essa intervenção em uma categoria jurídica específica prevista no sistema legal brasileiro.
Diferentes perspectivas são defendidas por estudiosos da doutrina, processualistas civis e pela jurisprudência em relação à natureza jurídica da Intervenção da Fazenda Pública: algumas opiniões a consideram como uma das novas modalidades de intervenção de terceiros introduzidas pelo CPC 2015, à semelhança do amicus curiae; para outros, ela assume a forma de assistência; enquanto uma terceira abordagem a caracteriza como Intervenção Anômala.
Aqueles que interpretam o papel da União nesses processos como contribuinte para a qualidade do raciocínio judicante do magistrado tendem a conceituar a intervenção como uma espécie de amicus curiae.
Guilherme Freire de Melo Barros, afirma que “o papel desempenhado pelo ente público é o de chamar a atenção do julgador para a importância e as consequências da decisão a ser proferida.” (BARROS, Guilherme Freire de Melo, 2016, p. 114). De forma análoga, Cassio Scarpinella Bueno afirma que “a participação do Estado amplia e aprofunda o debate jurídico naquele litígio e reduz o déficit democrático da atuação do Poder Judiciário.” (BUENO, Cassio Scarpinella, 2006, p. 511).
Com base no apresentado, é plausível inferir que os estudiosos mencionados não estabelecem de maneira explícita uma conexão entre o interesse econômico e a participação do ente estatal; suas abordagens limitam-se ao interesse institucional, à promoção da qualidade e à expertise técnica.
Fredie Didier Júnior se inclina no sentido de que o interveniente estatal detém prerrogativas mais amplas em comparação com as do amicus curiae, incluindo a faculdade de interpor diversos tipos de recursos. Aprofundando a análise, diferencia essa intervenção das típicas previstas no CPC 2015, em que o interesse é predominantemente jurídico, enquanto a própria lei especial nº 9.469/97, em seu parágrafo único do artigo 5º, deixa claro que é suficiente que a decisão do litígio possa ter implicações econômicas para o suposto interveniente. Em sua conclusão, o doutrinador sustenta que não visualiza outra alternativa senão a de se tratar de uma nova categoria de intervenção, a Intervenção Anômala. Nesse sentido:
O dispositivo legitimou a União a intervir de forma ampla em processo alheio, tendo em vista a qualidade das partes em litígio, independentemente da juridicidade do interesse que leva a intervenção. Permite-se, inclusive, que a União formule pedido de suspensão da segurança. O tipo legal exige, como elementos fundamentais para o ingresso, a presença, como autora ou ré, de uma das pessoas indicadas e a manifestação de vontade da União em participar do feito; em nenhum momento cogita do interesse, que parece estar presumido. É sem dúvida, intervenção sem equivalente em nosso Código de Processo Civil. (DIDIER JR., Fredie, 2009, p. 384).
No entanto, apesar das categorizações como amicus curiae ou intervenção anômala, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considera a intervenção do ente público como uma forma de assistência simples. Segundo o entendimento da Corte, embora a Fazenda Pública não necessite de um interesse jurídico para se envolver, a intervenção ocorre de maneira voluntária, e o processo é recebido no estado em que se encontra. Além disso, não é permitido interpor recursos contra decisões proferidas antes de sua participação.
Vale destacar que, atualmente, a abordagem adotada pelo Tribunal Superior é a mais aconselhável a ser seguida em contextos acadêmicos e em avaliações de concursos públicos.
Conclusão
Observa-se que o Código de Processo Civil de 2015 introduziu significativas inovações no âmbito das intervenções de terceiros, abrangendo desde a recriação de algumas modalidades até a regulamentação de outras, além de trazer consideráveis avanços, como o incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
No que concerne à Intervenção da Fazenda Pública, o legislador dedicou atenção especial à questão da competência, reconhecendo que essa é uma área que suscita consideráveis desafios práticos. O artigo 45, parágrafos 1º ao 3º, do CPC 2015, alinhado à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), realiza uma interpretação em conformidade com a Constituição, demonstrando uma abordagem consonante com o modelo processual constitucional estabelecido pelo artigo 1º do referido Código de Processo.
Uma vez mais, citando a orientação do STJ, a posição mais sólida no que se refere à natureza jurídica da Intervenção do Poder Público é aquela sustentada pela Corte Superior, especialmente relevante para aqueles que buscam êxito em concursos públicos e no contexto de suas trajetórias acadêmicas.
Cabe ressaltar que o instrumento em questão pode ser empregado tanto pelos entes federativos federais, estaduais quanto municipais, não se limitando exclusivamente à esfera da União. É de relevância notável a utilidade desse instrumento no contexto das assessorias jurídicas, pois contribui para uma tutela mais eficaz dos interesses patrimoniais desses entes, que poderiam ser afetados por decisões judiciais eventualmente proferidas.
Entretanto, encerrando esta exposição, é oportuno mencionar a posição crítica do ilustre processualista brasileiro, Luiz Guilherme Marinoni, que aborda de maneira concisa, em seu manual de processo civil, a intervenção da Fazenda Pública. A perspectiva do autor assume a seguinte abordagem:
[...] insta deixar registrado, com tristeza, que o direito processual (e seus princípios vetores) não pode ser violado de maneira tão grosseira e rasa, com instituto como este, feito sem a menor preocupação com a técnica processual ou as conseqüências que podem causar aos processos, apenas para que possam ser atendidos casos determinados e circunstancias especificas. É importante sublinhar, apesar de óbvio, que os princípios e garantias processuais objetivam estabelecer um processo democrático, capaz de conferir aos cidadãos uma justiça imparcial. Ora, o art. 5º da Lei 9.469/1997, exatamente por desconsiderar os princípios processuais, atenta contra o direito que todo cidadão possui de ir ao Poder Judiciário em busca de uma solução imparcial, justa e estável para seu conflito de interesses. (MARINONI, Luis Guiherme, 2001, p. 203).
É plausível concordar com o argumento apresentado, uma vez que a lei nº 9.469/97, que trata da matéria relativa à Intervenção da Fazenda Pública, apresenta falhas na sua redação legislativa e diverge de princípios que norteiam o processo. É crucial adotar uma abordagem analítica e não aplicá-la de forma superficial, sem compreendê-la integralmente. O processo não deve ser encarado como um objetivo em si, mas como um meio para alcançar a justiça. Ignorar esse princípio representa, sem dúvida, um passo significativo para dificultar, de certa maneira, o acesso à justiça.
Referências
BARROS, Guilherme Freire de Melo. Poder Público em Juízo para concursos. 6. ed. Salvador: Jus Podvium, 2016.
BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus Curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. São Paulo: Saraiva, 2006.
CUNHA, Leonardo Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Volume 01, Teoria geral do Processo e Processo de Conhecimento. 11. ed. Salvador: Jus Podvium, 2009.
MARINONI, Luis Guiherme e Sérgio Cruz Arenhart. Manual do Processo de Conhecimento. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 9. ed. Salvador: Jus Podvium, 2017.
Bacharel em Direito pelo Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais Professor Camillo Filho. Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela ESA/OAB-PI. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BAPTISTA, Lise de Moura Santos Pereira Ferraz. Limites e Possibilidades da Intervenção Anômala do Poder Público no Sistema Judiciário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 ago 2023, 04:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/62623/limites-e-possibilidades-da-interveno-anmala-do-poder-pblico-no-sistema-judicirio. Acesso em: 23 nov 2024.
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