RESUMO: Este trabalho objetiva analisar a interface entre o controle concentrado de constitucionalidade no âmbito estadual e no âmbito do Supremo Tribunal Federal, quando as ações tiverem como objeto a lei estadual, bem como as consequências jurídicas da tramitação simultânea. Para isso, através da metodologia da pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, será feita uma análise da jurisprudência dos tribunais, com foco especial no Supremo Tribunal Federal, sobre o tema em questão. A combinação dessas duas fontes, doutrina e jurisprudência, fornecerá os pressupostos essenciais para o trabalho, permitindo alcançar a conclusão desejada. Ao fim, foi possível perceber que é possível a tramitação simultânea de ações de declaração de inconstitucionalidade no STF e no Tribunal de Justiça local. Isso ocorre devido à dupla fiscalização das leis estaduais, que devem estar em conformidade com as Constituições Federal e Estadual. A doutrina chama esse processo de simultaneus processus. A suspensão do processo no Tribunal de Justiça local, em regra, é necessária até o julgamento da ação pelo STF, e o resultado determinará o destino da ADI estadual.
Palavras-chave: controle concentrado de constitucionalidade; lei estadual; Supremo Tribunal Federal; tribunal de justiça.
INTRODUÇÃO
O controle de constitucionalidade trata-se de um mecanismo por meio do qual se busca controlar os atos normativos, verificando sua adequação aos preceitos previstos na Lei Maior (LENZA, 2018, p. 253).
Para que o referido controle exista, efetivamente, mostra-se imprescindível que a Constituição seja rígida, ou seja, que possua um processo de alteração mais dificultoso, mais árduo e mais solene que o processo legislativo de alteração das normas não constitucionais.
A rigidez da Constituição materializa a ideia de um escalonamento normativo, de modo que a Lei Maior passa a ocupar grau máximo, tornando-se norma de validade para os demais atos normativos do sistema.
O vício de inconstitucionalidade pode ocorrer por conduta negativa ou positiva do poder público. O vício negativo trata-se de uma omissão, e o positivo, de uma atitude, que pode ocasionar um defeito de ordem material ou formal.
A inconstitucionalidade material, chamada pela doutrina de inconstitucionalidade nomoestática, trata-se de uma imperfeição quanto à matéria, ao conteúdo e à substância da norma. Já a inconstitucionalidade formal decorre da afronta ao devido processo legislativo de formação do ato normativo, e é conceituada como inconstitucionalidade nomodinâmica.
Baseando-se na doutrina de Canotilho (2003, p. 259), a inconstitucionalidade formal divide-se em orgânica, propriamente dita e por violação aos pressupostos objetivos do ato. A primeira trata-se da inobservância da competência legislativa para elaboração do ato. A segunda decorre da inobservância do devido processo legislativo e pode ser subjetiva, quando violadas as regras de iniciativa, ou objetiva, quando violadas as demais fases do processo legislativo, posteriores à fase de iniciativa. Por fim, a última diz respeito à inobservância dos pressupostos constitucionalmente considerados como elementos determinantes de competência dos órgãos legislativos em relação a certas matérias.
Há doutrina que menciona, ainda, uma terceira espécie de inconstitucionalidade, denominada de “vício por decoro parlamentar”. Pedro Lenza (2018, p. 272) conceitua a modalidade nas seguintes palavras:
Como se sabe e foi publicado em jornais, revistas, etc., muito se falou em um esquema de compra de votos, denominado “mensalão”, para votar de acordo com o governo ou em certo sentido”.
[...]
O grande questionamento que se faz, contudo é se uma vez comprovada a existência de compra de votos, haveria mácula no processo legislativo de formação das emendas constitucionais a ensejar o reconhecimento da sua inconstitucionalidade.
Entendemos que sim, e, no caso, trata-se de vício por decoro parlamentar, já que, nos termos do art. 55, §1º, “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos como regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membros do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”.
Assim, observa-se que, por não se enquadrar com exatidão na categoria de inconstitucionalidade material e formal, assiste razão ao doutrinador ao criar uma terceira classificação de vício normativo.
1.Ação direta de inconstitucionalidade
A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) é a ação de controle concentrado que almeja expurgar do sistema jurídico a lei ou o ato normativo material ou formalmente viciado. Referido controle é realizado em tese, ou seja, de forma abstrata, sendo marcado pela generalidade, impessoalidade e abstração.
Nos termos do art. 102, I, “a”, da Constituição Federal de 1988, o objeto da ADI consistirá em lei ou ato normativo federal ou estadual, de modo que, segundo o comando constitucional, competirá precipuamente ao Supremo Tribunal Federal o julgamento dessas ações, já que é papel da Suprema Corte garantir a autoridade da norma constitucional em todo o país.
A ação deve ser proposta por um dos legitimados do art. 103 da Constituição Federal, que, por sua vez, deverá indicar na petição inicial o dispositivo da lei ou do ato normativo impugnado, bem como os fundamentos jurídicos do pedido, em relação a cada uma das impugnações, e os pedidos com suas especificações. Nesse sentido estabelece os dispositivos da Lei nº 9.868/1999, que trata do processamento da ADI.
De acordo com o art. 24 da Lei nº 9.868/1999, a ação possui caráter dúplice ou ambivalente, já que “proclamada a constitucionalidade, julgar-se-á improcedente a ação direta ou procedente eventual ação declaratória; e, proclamada a inconstitucionalidade, julgar-se-á procedente a ação direta ou improcedente eventual ação declaratória”. Portanto, é possível concluir que a procedência de uma implica a improcedência da outra (LENZA, 2018, p. 400).
Quanto à sua repercussão no mundo jurídico, pode-se dizer que a ação de controle concentrado produzir efeitos contra todos, isto é, erga omnes, e também possuirá efeitos retroativos, ou seja, ex tunc, já que retira do ordenamento o ato normativo ou a lei incompatível com a Constituição Federal.
Em que pese o ato normativo ser tratado, em regra, como um ato nulo, o art. 27 da Lei nº 9.868/1999 prevê a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, inspirado-se no direito alemão e português.
Desse modo, a lei ou o ato normativo é declarado inconstitucional, entretanto, por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, o STF poderá, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
2.O controle de constitucionalidade no âmbito estadual
Apesar de competir ao STF garantir a autoridade da norma constitucional no país, nada impede a existência de controle concentrado de constitucionalidade nos Estados Membros. Assim, nos termos do art. 125, §2º, da Constituição Federal de 1988, cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão.
Sobre o assunto, explica Gilmar Mendes (2017, p. 1462):
O texto constitucional de 1988 contemplou expressamente a questão relativa ao controle abstrato de normas no âmbito estadual e municipal em face da respectiva Constituição, consagrando no art. 125, § 2º, que compete “ao Estado a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão”.
Todas as Constituições estaduais, sem exceção, disciplinaram o instituto com maior ou menor legitimação.
Algumas unidades federadas não se limitaram, porém, a consagrar o controle abstrato de normas dos atos normativos estaduais e municipais em face da Constituição estadual, instituindo, igualmente, a ação direta por omissão.
O controle abstrato estadual terá por objeto, exclusivamente, as leis ou atos normativos estaduais ou municipais, o que permite tecer as seguintes conclusões, conforme preleciona Pedro Lenza (2018, p. 463):
Pode-se afirmar, assim, que o TJ local nunca julgará, em controle concentrado e abstrato, lei federal. Ou, em outras palavras, as leis federais só poderão ser objeto de controle abstrato perante o STF. Ou, ainda, o STF não julgará em ADI lei municipal perante a CF (só por meio de ADPF, como visto, ou, excepcionalmente, nas hipóteses de RE de normas de reprodução obrigatória.
Ademais, pode-se afirmar que somente o Tribunal de Justiça local será o órgão competente para julgar o controle de constitucionalidade abstrato estadual, exercendo, assim, competência originária, conforme dispõe o art. 125, §2º, da Constituição Federal.
O referido dispositivo constitucional, apesar de não ter especificado os legitimados - como o faz o art. 103 em relação ao controle de constitucionalidade federal -, proibiu a legitimação para agir a um único órgão. Assim, é possível perceber que cabe às Constituições Estaduais a delimitação da regra, e, como se trata de manifestação do poder constituinte derivado decorrente, deve-se respeitar a simetria com os legitimados listados pela Constituição Federal. Nada impede, entretanto, que haja uma ampliação do rol de legitimados originalmente previsto para a ADI federal.
3.Objeto da ADI e possibilidade de coexistência de tramitação no STF e no Tribunal de Justiça
Nos termos do art. 25, caput, da Constituição Federal, os Estados organizam-se e regem–se pelas Constituições e pelas leis que adotarem, observados os princípios da Constituição Federal. Conforme preleciona Pedro Lenza (2018, p. 466), referido dispositivo consagra a manifestação do poder constituinte derivado decorrente, que assegura aos Estados a capacidade de auto-organização.
O poder constituinte derivado decorrente, por sua vez, não é ilimitado, de modo que existem normas centrais na Constituição Federal que devem ser, necessariamente, absorvidas, implícita ou explicitamente, pela Constituição Estadual. Portanto, inquestionavelmente, há normas de reprodução obrigatória que afetam a liberdade criadora do poder constituinte estadual e acentuam o caráter derivado desse poder.
Por existirem normas de reprodução obrigatória, a lei estadual poderá ser objeto de controle concentrado tanto no Supremo Tribunal Federal, quanto no Tribunal de Justiça local, estando sujeita, portanto, a uma dupla fiscalização. Por isso, podem ocorrer situações em que as ações tramitem de forma simultânea no STF e no Tribunal de Justiça local. De acordo com a doutrina, referida situação é chamada de simultaneus processus.
Conforme manifestação do STF, havendo a simultaneidade de tramitação dos processos, o ideal é que haja uma suspensão prejudicial do processo de controle normativo abstrato instaurado perante o Tribunal de Justiça local, aguardando o resultado do controle federal, já que o STF é o intérprete máximo da Constituição Federal.
Nessa situação, caso o STF declare inconstitucional a lei estadual, a ADI estadual perderá o seu objeto e a lei não produzirá mais seus efeitos no referido Estado. Caso o STF declare constitucional a lei estadual perante a Constituição Federal, o Tribunal de Justiça estará autorizado a prosseguir no julgamento da ADI da lei estadual diante da Constituição Estadual, pois, perante a Constituição Estadual, a referida lei poderá ser incompatível, no entanto, o fundamento deverá ser diverso.
Por outro lado, caso a ADI em âmbito estadual não seja suspensa, decidiu o STF que o julgamento da primeira ação, de âmbito estadual, somente prejudica o da segunda, no âmbito do STF, se preenchidas duas condições cumulativas: se a decisão do Tribunal de Justiça for pela procedência da ação; e se a inconstitucionalidade for por incompatibilidade com preceito da Constituição do Estado sem correspondência na Constituição Federal. Caso o parâmetro do controle de constitucionalidade tenha correspondência na Constituição Federal, subsiste a jurisdição do STF para o controle abstrato de constitucionalidade.
CONCLUSÃO
Conclui-se que é possível haver a tramitação simultânea de ações direta de inconstitucionalidade tanto no STF, quanto no Tribunal de Justiça local, já que a lei estadual submete-se à dupla fiscalização, devendo observar os parâmetros da Constituição Federal e da Constituição Estadual.
Concluiu-se também que a tramitação simultânea é chamada pela doutrina de simultaneus processus e que, ocorrendo o fenômeno jurídico, é necessário que haja a suspensão prejudicial do processo de controle normativo abstrato instaurado perante o Tribunal de Justiça local. Após o julgamento da ação perante o STF, a ADI estadual perderá seu objeto ou terá prosseguimento, dependendo do resultado da Suprema Corte.
Ademais, a declaração de inconstitucionalidade prévia pelo Tribunal de Justiça só causa prejudicialidade em relação a ADI federal quando a decisão da Corte local for pela procedência da ação e quando a declaração de inconstitucionalidade estiver relacionada com preceito da Constituição do Estado sem correspondência na Constituição Federal.
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI: 2820. Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 26/04/2006, Data de Publicação: DJ 03/05/2006 PP-00006.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAFAELA GALVãO RIBEIRO DE ARAúJO, . Possibilidade de coexistência de ADI no TJ e no STF: uma análise jurisprudencial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 ago 2023, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/62797/possibilidade-de-coexistncia-de-adi-no-tj-e-no-stf-uma-anlise-jurisprudencial. Acesso em: 23 nov 2024.
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