RESUMO: Inicialmente, destaca-se que a repartição constitucional de receitas tributárias possui base nos artigos 157 a 162 da Constituição Federal e envolve matéria relacionada ao direito financeiro e tributário. Em uma noção conceitual, envolve relações jurídicas entre os entes de direito público e está intrinsicamente ligada com a forma federativa do Estado. Ademais, percebe-se que a repartição de receitas tributárias se subdivide em duas espécies: direta e indireta. Nesse contexto, por ser tema bastante sensível, há inúmeros processos judiciais discutindo a titularidade e a competência para dispor das referidas receitas tributárias. Assim, o presente trabalho tem como foco central a análise da repartição constitucional de receitas tributárias em seu plano fático, objetivando diferenciar as peculiaridades de cada situação em concreto e como isso irá refletir no repasse das verbas objeto de controvérsia. O estudo pautou-se na análise da Constituição Federal, de diplomas legais, das jurisprudências pátrias dos Tribunais Superiores e da doutrina, em uma metodologia predominantemente bibliográfica.
Palavras-chave: Repartição Constitucional de Receitas Tributárias. Direito Financeiro e Tributário. Relações Jurídicas entre os entes de direito público. Forma Federativa de Estado. Espécies direta e indireta. Litígios Judiciais. Titularidade e Competência.
ABSTRACT: Initially, it is highlighted that the constitutional allocation of tax revenues is based on articles 157 to 162 of the Federal Constitution and involves matters related to financial and tax law. In a conceptual sense, it involves legal relations between public law entities and is intrinsically linked with the federative form of the State. Furthermore, it is clear that the distribution of tax revenues is divided into two types: direct and indirect. In this context, as it is a very sensitive topic, there are numerous lawsuits discussing the ownership and competence to dispose of said tax revenues. Thus, the present work has as its central focus the analysis of the constitutional distribution of tax revenues in its factual plan, aiming to differentiate the peculiarities of each concrete situation and how this will reflect on the transfer of the amounts object of controversy. The study was based on the analysis of the Federal Constitution, legal diplomas, the national jurisprudence of the Superior Courts and the doctrine, in a predominantly bibliographical methodology.
Keywords: Constitutional Allocation of Tax Revenues. Financial and Tax Law. Legal relations between public law entities. Federal form of state. Direct and indirect species. Judicial Disputes. Ownership and Competence.
1.Introdução
Primeiramente, a repartição de receitas tributárias envolve matéria relacionada ao direito financeiro e tributário, sendo tênue a linha que separa tais campos jurídicos.
De modo geral, pode-se afirmar tal repartição de receita somente ocorrerá após o exaurimento da relação de natureza tributária, ou seja, após o efetivo ingresso dos tributos nos cofres de cada ente público, mediante perfeita arrecadação. Nesse ínterim, se inicia a relação de direito financeiro, consistente no efetivo repasse nos moldes taxativamente delineados pela Constituição Federal.
No entanto, no plano fático e prático, a matéria não se mostra tão simples. Verifica-se, muitas vezes, uma verdadeira “guerra” entre os entes federativos por tais recursos públicos objeto de repasse, o que deságua em múltiplas demandas judiciais, na defesa de seus interesses, que são eminentemente colidentes.
Felizmente, o Supremo Tribunal Federal possui sólida jurisprudência acerca do tema, tendo analisado diversas situações diferentes sob a sistemática de repercussão geral, o que representa uma importante fonte de pesquisa.
Nesse contexto, o presente trabalho tem como foco central o estudo da repartição constitucional de receitas tributárias em seu plano fático, objetivando diferenciar as peculiaridades de cada situação em concreto e como isso irá refletir no repasse das verbas objeto de controvérsia.
Inicialmente, faz-se uma breve exposição acerca das noções gerais do tema, bem como das respectivas espécies de repartição.
Posteriormente, passa-se à análise da questão principal, a fim de ganhar maior familiaridade com o tema e entender as diversas situações que envolvem os repasses tributários, diante de um estudo da Constituição Federal de 1988, do posicionamento da doutrina, e do atual entendimento do Supremo Tribunal Federal.
Nesse sentido, destaca-se que a análise do tema é de extrema relevância diante das recentíssimas decisões judiciais acerca do tema e do flagrante interesse público que envolve o sistema constitucional de repartição de receitas.
2.Noções gerais da repartição de receitas tributárias
De início, pode-se afirmar que o sistema constitucional de repartição de receitas tributárias se refere às relações jurídicas entre os entes de direito público e decorre diretamente da forma federativa de Estado, intrinsecamente ligada com a autonomia dos entes que o compõem.
Nesse sentido, destaca-se: “Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.
Em uma análise constitucional, percebe-se que houve uma rígida distribuição de competências materiais entre os entes componentes da República Federativa do Brasil, conferindo-lhe diversas atribuições, com a finalidade de satisfazer as demandas jurídicas e sociais.
No entanto, de acordo com Harisson Leite (2017), tal federalismo apresenta distorções, tendo em vista que há uma inegável concentração de renda nos cofres públicos federais em detrimento dos Estados e Municípios, o que reflete em problemas de ordem prática, consistente justamente na impossibilidade fática de se realizar as incumbências que lhe foram constitucionalmente conferidas, caso houvesse o gozo somente dos recursos próprios.
Nesse contexto, o legislador constituinte, de forma bastante assertiva, instituiu o sistema constitucional de repartição de receitas tributárias, no intuito de determinar que os entes maiores entregassem parte da receita arrecadada aos entes menores, e assim proporcionar uma distribuição de renda que mais atendesse aos objetivos constitucionais. Destaca-se:
Art. 157. Pertencem aos Estados e ao Distrito Federal:
I - o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem;
II - vinte por cento do produto da arrecadação do imposto que a União instituir no exercício da competência que lhe é atribuída pelo art. 154, I.
Art. 158. Pertencem aos Municípios:
I - o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem;
II - cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto da União sobre a propriedade territorial rural, relativamente aos imóveis neles situados, cabendo a totalidade na hipótese da opção a que se refere o art. 153, § 4º, III;
III - cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios;
IV - vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.
Parágrafo único. As parcelas de receita pertencentes aos Municípios, mencionadas no inciso IV, serão creditadas conforme os seguintes critérios:
I - 65% (sessenta e cinco por cento), no mínimo, na proporção do valor adicionado nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, realizadas em seus territórios;
II - até 35% (trinta e cinco por cento), de acordo com o que dispuser lei estadual, observada, obrigatoriamente, a distribuição de, no mínimo, 10 (dez) pontos percentuais com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos.
I - do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre produtos industrializados, 50% (cinquenta por cento), da seguinte forma:
a) vinte e um inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal;
b) vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Municípios;
c) três por cento, para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de acordo com os planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste a metade dos recursos destinados à Região, na forma que a lei estabelecer;
d) um por cento ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro decêndio do mês de dezembro de cada ano;
e) 1% (um por cento) ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro decêndio do mês de julho de cada ano;
f) 1% (um por cento) ao Fundo de Participação dos Municípios, que será entregue no primeiro decêndio do mês de setembro de cada ano;
II - do produto da arrecadação do imposto sobre produtos industrializados, dez por cento aos Estados e ao Distrito Federal, proporcionalmente ao valor das respectivas exportações de produtos industrializados.
III - do produto da arrecadação da contribuição de intervenção no domínio econômico prevista no art. 177, § 4º, 29% (vinte e nove por cento) para os Estados e o Distrito Federal, distribuídos na forma da lei, observada a destinação a que se refere o inciso II, c , do referido parágrafo.
§ 1º Para efeito de cálculo da entrega a ser efetuada de acordo com o previsto no inciso I, excluir-se-á a parcela da arrecadação do imposto de renda e proventos de qualquer natureza pertencente aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, nos termos do disposto nos arts. 157, I, e 158, I.
§ 2º A nenhuma unidade federada poderá ser destinada parcela superior a vinte por cento do montante a que se refere o inciso II, devendo o eventual excedente ser distribuído entre os demais participantes, mantido, em relação a esses, o critério de partilha nele estabelecido.
§ 3º Os Estados entregarão aos respectivos Municípios vinte e cinco por cento dos recursos que receberem nos termos do inciso II, observados os critérios estabelecidos no art. 158, parágrafo único, I e II.
§ 4º Do montante de recursos de que trata o inciso III que cabe a cada Estado, vinte e cinco por cento serão destinados aos seus Municípios, na forma da lei a que se refere o mencionado inciso. [1]
2.1 Das espécies de repartição constitucional de receitas tributárias
Ainda em uma análise doutrinária, percebe-se que a repartição de receitas tributárias se subdivide em duas espécies: direta e indireta.
Assim, repartição direta é aquela em que o ente beneficiado observa apenas critérios objetivos para a sua repartição e não faz parte de qualquer fundo constitucional. Nesse sentido, tem-se a repartição do imposto estadual de propriedade de veículos automotores, na qual se utiliza o percentual fixo de 50% para determinar a entrega compulsória aos Municípios, na forma do art. 158, III, da CF.
De forma diversa, repartição indireta é aquela baseada em critérios previamente estabelecidos, com repasse a um fundo de participação, objetivando corrigir desigualdades regionais. Nessa toada, em caráter exemplificativo, verifica-se que a Constituição Federal dispõe que até 35% da parcela do imposto de operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, pertencente aos Municípios, será distribuída de acordo com o que dispuser lei estadual, observada, obrigatoriamente, a distribuição de, no mínimo, 10 (dez) pontos percentuais com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento de equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos.
2.2 Da repartição constitucional de receitas tributárias na visão do Supremo Tribunal Federal
O Sistema Constitucional de Receitas é um tema de suma importância para o direito financeiro municipal, e por envolver repasse de verbas públicas, desencadeia diversas controvérsias de ordem prática, ocasionando dúvidas acerca da titularidade, repasse e gozo de tais montantes.
Nesse contexto, o STF já teve oportunidade de se pronunciar em diversas situações sobre a aplicação de tais verbas, sendo este um tema de bastante complexidade, em razão do interesse público envolvido, do envolvimento de diversos princípios constitucionais e das particularidades de cada situação em concreto.
Dessa forma, em ação direta de inconstitucionalidade julgada em 16 de setembro de 2022, qual seja, ADI 2355/PR, o STF analisou lei estadual que determinou a aplicação em áreas indígenas de 50% dos repasses constitucionais do ICMS. Nesta ocasião, foi questionada a constitucionalidade do referido dispositivo, invocando transgressão à autonomia do Município para dispor sobre o próprio orçamento, no que regulada a forma de utilização dos recursos recebidos.
Nesse ínterim, em caráter decisório, a corte constitucional decidiu pela inconstitucionalidade da lei estadual, por ser a parcela de recursos objeto de controvérsia pertencente de pleno direito ao respectivo Município, antes mesmo do efetivo ingresso dos recursos nos cofres públicos municipais, não cabendo qualquer forma de condicionamento ou retenção pelo Estado. Destaca-se:
Art. 158. Pertencem aos Municípios:
IV - vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.[2]
Como fundamento para tal, foram invocadas na ADI 2355/PR relevantes princípios constitucionais, tais como a autonomia municipal e a não afetação das receitas tributárias. Nesse sentido:
Art. 167. São vedados: IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo;
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: c) autonomia municipal;
Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.
Art. 30. Compete aos Municípios:
III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;[3]
É importante mencionar que a corte constitucional frisou que, em respeito ao art. 158, § único, II, da CF, os estados-membros podem fixar, mediante lei estadual, a maneira como será feito o crédito de parcela do valor de arrecadação do ICMS a ser repartido, no entanto, tal prerrogativa não altera a titularidade da quota pertencente aos Municípios. Assim, a referida lei estadual servirá apenas para indicar a forma como a quantidade será distribuída, e não a forma como o referido montante deve ser aplicado, sendo tal competência pertencente exclusivamente ao município titular da verba, sob pena de desrespeito aos valorosos princípios constitucionais supracitados.
Nessa toada, reitera-se:
LEI ESTADUAL QUE DETERMINA QUE OS MUNICÍPIOS DEVERÃO APLICAR, DIRETAMENTE, NAS ÁREAS INDÍGENAS LOCALIZADAS EM SEUS RESPECTIVOS TERRITÓRIOS, PARCELA (50%) DO ICMS A ELES DISTRIBUÍDA - TRANSGRESSÃO À CLÁUSULA CONSTITUCIONAL DA NÃO-AFETAÇÃO DA RECEITA ORIUNDA DE IMPOSTOS ( CF, ART. 167, IV) E AO POSTULADO DA AUTONOMIA MUNICIPAL ( CF, ART. 30, III)- VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL QUE IMPEDE, RESSALVADAS AS EXCEÇÕES PREVISTAS NA PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO, A VINCULAÇÃO, A ÓRGÃO, FUNDO OU DESPESA, DO PRODUTO DA ARRECADAÇÃO DE IMPOSTOS - INVIABILIDADE DE O ESTADO-MEMBRO IMPOR, AO MUNICÍPIO, A DESTINAÇÃO DE RECURSOS E RENDAS QUE A ESTE PERTENCEM POR DIREITO PRÓPRIO - INGERÊNCIA ESTADUAL INDEVIDA EM TEMA DE EXCLUSIVO INTERESSE DO MUNICÍPIO - DOUTRINA - PRECEDENTES - PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO - CONFIGURAÇÃO DO "PERICULUM IN MORA" - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. (STF - ADI: 2355 PR, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 19/06/2002, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-047 DIVULG 28-06-2007 PUBLIC 29-06-2007 DJ 29-06-2007 PP-00021 EMENT VOL-02282-01 PP-00131 RDDT n. 144, 2007, p. 216-217)[4]
No entanto, o Supremo Tribunal Federal possui outras decisões no tocante à repartição constitucional de receitas, que parecem contradizer os fundamentos acima expostos, mas na verdade apenas explicitam situação diversa, que possui particularidades e nuances próprias.
Dessa forma, em 16 de dezembro de 2022, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, no RE 1288634/GO, e em sede de repercussão geral, houve a ressalva de que a obrigação de transferência da quota pertencente aos municípios sobre o produto da arrecadação do ICMS, relativa à repartição constitucional das receitas tributárias, só ocorre quando há o efetivo recolhimento do tributo.
Nessa situação, foi analisada a constitucionalidade de programas instituídos pelo Estado de Goiás, em 1984 e 2008, que tinham por objetivo aumentar a implantação e a expansão das indústrias no Estado, com a previsão da possibilidade de postergação ou diferimento do recolhimento do ICMS.
O Município de Edeliana (GO) alegou que o referido adiamento no pagamento do ICMS violou o artigo 158, IV, da CF/88 e sua respectiva autonomia, protegida constitucionalmente na categoria de princípio constitucional sensível.
Contudo, nessa ocasião, o STF não concordou com os argumentos municipais e decidiu pela constitucionalidade dos programas fiscais instituídos em sede estadual. Assim, destacou-se a convalidação dos mesmos pelo CONFAZ e por lei complementar, em atendimento aos ditames constitucionais para a questão:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: § 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: XII - cabe à lei complementar: g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.[5]
Art. 2º DA LEI COMPLEMENTAR Nº 24, DE 7 DE JANEIRO DE 1975: Os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo federal. § 2º - A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes.[6]
Ademais, no presente julgado, destacou-se expressamente que, diferente do caso analisado na ADI 2355/PR, não houve ingresso do imposto no erário estadual, portanto, não há efetiva arrecadação e consequentemente, pertencimento de tal parcela ao Município, tendo assim o Estado competência para instituir incentivos fiscais relativos ao ICMS, do qual possui a efetiva competência tributária.
Desse modo, de forma semelhante, em 17 de novembro de 2016, também sob a sistemática de repercussão geral, o STF se pronunciou acerca de recurso extraordinário do município de Itabi (SE), que requereu que a desoneração concedida pelo Governo Federal relacionada aos impostos de renda e de produtos industrializados, não fosse computada na cota do fundo de repartição do município a ele destinado.
No entanto, o pedido do município de Itabi (SE) não foi acolhido pela Corte Constitucional. Diante desse cenário, entendeu-se que o poder de arrecadar atribuído à União implica também o poder de isentar e consequentemente, deverá ser computado o resultado das desonerações no montante final do fundo de participação dos municípios.
Assim, no RE 705423/SE, em sede de repercussão geral, o STF firmou a tese de que é constitucional a concessão regular de incentivos, benefícios e isenções fiscais relativos ao imposto de renda e ao imposto sobre produtos industrializados por parte da União, em relação ao fundo de participação dos Municípios e respectivas quotas devidas às municipialidades. Destaca-se:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. CONSTITUCIONAL, TRIBUTÁRIO E FINANCEIRO. FEDERALISMO FISCAL. FUNDO DE PARTICIPAÇÃO DOS MUNICÍPIOS – FPM. TRANSFERÊNCIAS INTERGOVERNAMENTAIS. REPARTIÇÃO DE RECEITAS TRIBUTÁRIAS. COMPETÊNCIA PELA FONTE OU PRODUTO. COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA. AUTONOMIA FINANCEIRA. PRODUTO DA ARRECADAÇÃO. CÁLCULO. DEDUÇÃO OU EXCLUSÃO DAS RENÚNCIAS, INCENTIVOS E ISENÇÕES FISCAIS. IMPOSTO DE RENDA - IR. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS – IPI. ART. 150, I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA. 1. Não se haure da autonomia financeira dos Municípios direito subjetivo de índole constitucional com aptidão para infirmar o livre exercício da competência tributária da União, inclusive em relação aos incentivos e renúncias fiscais, desde que observados os parâmetros de controle constitucionais, legislativos e jurisprudenciais atinentes à desoneração. 2. A expressão “produto da arrecadação” prevista no art. 158, I, da Constituição da Republica, não permite interpretação constitucional de modo a incluir na base de cálculo do FPM os benefícios e incentivos fiscais devidamente realizados pela União em relação a tributos federais, à luz do conceito técnico de arrecadação e dos estágios da receita pública. 3. A demanda distingue-se do Tema 42 da sistemática da repercussão geral, cujo recurso-paradigma é RE-RG 572.762, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 18.06.2008, DJe 05.09.2008. Isto porque no julgamento pretérito centrou-se na natureza compulsória ou voluntária das transferências intergovernamentais, ao passo que o cerne do debate neste Tema reside na diferenciação entre participação direta e indireta na arrecadação tributária do Estado Fiscal por parte de ente federativo. Precedentes. Doutrina. 4. Fixação de tese jurídica ao Tema 653 da sistemática da repercussão geral: “É constitucional a concessão regular de incentivos, benefícios e isenções fiscais relativos ao Imposto de Renda e Imposto sobre Produtos Industrializados por parte da União em relação ao Fundo de Participação de Municípios e respectivas quotas devidas às Municipalidades.” 5. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (STF - RE: 705423 SE, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 23/11/2016, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 05/02/2018)[7]
Nesse contexto, é importantíssimo diferenciar tais situações de constitucionalidade das isenções da exemplificada no tema 42 do STF, julgado em sede de repercussão geral, em 18 de junho de 2008, no qual analisou-se a constitucionalidade de programa de desenvolvimento da empresa catarinense, que previa a retenção, pelo Estado de Santa Catarina, da parcela do produto de ICMS já arrecadado, a qual, segundo o art. 158, IV, da CF, seria pertencente aos Municípios.
Nessa situação em específica, o ponto crucial em análise é que o ICMS já tinha sido efetivamente arrecadado e não foi repassado aos Municípios. Dessa forma, tais valores já pertenciam de pleno direito ao ente municipal, não havendo competência estadual para instituir eventual programa fiscal.
Em caráter comparativo, destaca-se os dois julgados em comento:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. FINANCEIRO E TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS - ICMS. BENEFÍCIO FISCAL OFERECIDO PELO ESTADO DE GOIÁS. PROGRAMAS FOMENTAR E PRODUZIR. REFLEXOS NA ARRECADAÇÃO. REDUÇÃO PROPORCIONAL DO REPASSE CONSTITUCIONAL DEVIDO AOS MUNICÍPIOS. ARTIGO 158, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ENTENDIMENTO DESTA CORTE NOS TEMAS 42 E 653. CONTROVÉRSIA SOBRE PARTICULARIDADES DOS INCENTIVOS CONCEDIDOS. MULTIPLICIDADE DE RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. PAPEL UNIFORMIZADOR DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RELEVÂNCIA DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. (STF - RE: 1288634 GO, Relator: MINISTRO PRESIDENTE, Data de Julgamento: 30/09/2021, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 07/10/2021)[8]
CONSTITUCIONAL. ICMS. REPARTIÇÃO DE RENDAS TRIBUTÁRIAS. PRODEC. PROGRAMA DE INCENTIVO FISCAL DE SANTA CATARINA. RETENÇÃO, PELO ESTADO, DE PARTE DA PARCELA PERTENCENTE AOS MUNICÍPIOS. INCONSTITUCIONALIDADE. RE DESPROVIDO. I - A parcela do imposto estadual sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, a que se refere o art. 158, IV, da Carta Magna pertence de pleno direito aos Municípios. II - O repasse da quota constitucionalmente devida aos Municípios não pode sujeitar-se à condição prevista em programa de benefício fiscal de âmbito estadual. III - Limitação que configura indevida interferência do Estado no sistema constitucional de repartição de receitas tributárias. IV - Recurso extraordinário desprovido. (STF - RE: 572762 SC, Relator: RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 18/06/2008, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 05/09/2008)[9]
Dessa forma, reitera-se que a obrigação constitucional de transferência de recursos à esfera municipal só ocorre quando há o efetivo recolhimento do tributo. De forma diversa, caso houvesse a incumbência do repasse com base apenas no ICMS escriturado, haveria, na verdade, violação à autonomia federativa dos estados para implementar seus programas de benefícios fiscais.
3.Conclusão
Buscou-se, nesta pesquisa, abordar acerca dos reflexos da repartição constitucional de receitas tributárias na seara prática e judicial.
Assim, verifica-se que é necessário analisar, em cada situação específica, se já houve o efetivo ingresso do tributo nos cofres públicos, ou seja, se a relação jurídica tributária já foi exaurida efetivamente. Tal marco é imprescindível para se aferir a titularidade das respectivas verbas e consequentemente a competência para delas dispor, seja para determinar a sua aplicação em determinado programa específico, seja para a concessão de eventuais benefícios fiscais.
Conclui-se que o tema é bastante delicado, tendo em vista o envolvimento de valorosos princípios constitucionais, tais como a autonomia federativa e a não afetação à receita dos impostos.
Assim, recomenda-se ampla pesquisa acerca das mencionadas teses de repercussão geral, com o objetivo de ganhar maior familiaridade com o tema e consequentemente melhor identificá-las, na busca da correta aplicação dos recursos públicos, em concretização ao interesse público e aos ditames da justiça social.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRE, Ricardo. Direito tributário. 16. ed. São Paulo: Juspodivm, 2022.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 23 de agosto de 2023.
BRASIL. Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975. Dispõe sobre os convênios para a concessão de isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1975.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI: 2355 PR. Relator: Ministro Celso de Mello. 19 de junho de 2002.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE: 705423 SE. Relator: Edson Fachin. 23 de novembro de 2016.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE: 1288634 GO. Relator: Ministro Presidente. 30 de setembro de 2021.
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE: 572762 SC. Relator: Ricardo Lewandowski. 18 de junho de 2008.
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A obrigação de transferência da quota pertencente aos municípios sobre o produto da arrecadação do ICMS só ocorre quando há o efetivo recolhimento do tributo. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/5e6eda66654df2e17f1bc2d6b73ef245>. Acesso em: 25/08/2023
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. É inconstitucional lei estadual que diga como os Municípios deverão aplicar os recursos recebidos a título de repasse do ICMS. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/3a1f85dfef891b2a3685ccb35efa807e>. Acesso em: 25/08/2023
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. União pode conceder incentivos relacionados com o IR e o IPI mesmo que isso diminua os repasses destinados ao FPM. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/373e4c5d8edfa8b74fd4b6791d0cf6dc>. Acesso em: 25/08/2023
FERREIRA, Harisson leite. Manual de direito financeiro. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2017.
[1] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 23 de agosto de 2023.
[2] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 23 de agosto de 2023.
[3] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 23 de agosto de 2023.
[4] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI: 2355 PR. Relator: Ministro Celso de Mello. 19 de junho de 2002.
[5] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 23 de agosto de 2023.
[6] BRASIL. Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975. Dispõe sobre os convênios para a concessão de isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias, e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 1975.
[7] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE: 705423 SE. Relator: Edson Fachin. 23 de novembro de 2016.
[8] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE: 1288634 GO. Relator: Ministro Presidente. 30 de setembro de 2021.
[9] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. RE: 572762 SC. Relator: Ricardo Lewandowski. 18 de junho de 2008.
Advogada. Especialista em Direito Tributário e Empresarial pela Faculdade Adelmar Rosado. Bacharel em Direito pelo Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais Professor Camillo Filho.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAMOS, Luisa Martins Vilarinho Marinho. Os diversos litígios judiciais entre os entes públicos advindos da repartição constitucional de receitas tributárias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 set 2023, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/62901/os-diversos-litgios-judiciais-entre-os-entes-pblicos-advindos-da-repartio-constitucional-de-receitas-tributrias. Acesso em: 23 nov 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Magalice Cruz de Oliveira
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Precisa estar logado para fazer comentários.