Resumo: este artigo examina a relação intrincada entre a laicidade e os direitos fundamentais no contexto brasileiro, explorando desde suas raízes históricas até os desafios contemporâneos. A trajetória da laicidade desde os primórdios da colonização, marcada pela influência da Igreja Católica e sua interseção com o poder político, estabeleceu um cenário no qual a separação entre religião e Estado tornou-se essencial. A Constituição de 1891 é destacada como um marco relevante nesse processo, consolidando a separação entre Igreja e Estado e garantindo liberdade religiosa e neutralidade estatal. No século XXI, a coexistência harmoniosa entre a diversidade religiosa e a laicidade enfrenta novos desafios. A presença de grupos religiosos e não religiosos diversificados demanda uma laicidade que seja um espaço neutro, acolhendo todas as crenças e respeitando as não crenças. O respeito à laicidade é fundamental para a promoção dos direitos fundamentais, especialmente em relação à população LGBTQIAPN+. A laicidade atua como guardiã da igualdade e não discriminação, protegendo a dignidade e os direitos dessa população. Conflitos entre crenças religiosas e direitos individuais revelam a importância de abordagens sensíveis e equitativas na busca por soluções harmoniosas. Em conclusão, este artigo demonstrou como a laicidade e os direitos fundamentais são elementos cruciais na construção de uma sociedade inclusiva e justa. Através de uma análise que abrange história, evolução constitucional, desafios contemporâneos e proteção de direitos específicos, a laicidade emerge como um alicerce que sustenta a diversidade cultural, religiosa e social do Brasil.
Palavras-chave: Laicidade, Direitos Fundamentais, Diversidade Religiosa, Igualdade; direitos lgbtqiapn+
Abstract: this article examines the intricate relationship between secularism and fundamental rights in the Brazilian context, exploring from its historical roots to contemporary challenges. The trajectory of secularism since the early days of colonization, marked by the influence of the Catholic Church and its intersection with political power, established a scenario in which the separation between religion and state became essential. The 1891 Constitution is highlighted as a significant milestone in this process, solidifying the separation between Church and State and ensuring religious freedom and state neutrality. In the 21st century, the harmonious coexistence between religious diversity and secularism faces new challenges. The presence of diverse religious and non-religious groups demands a secularism that serves as a neutral space, embracing all beliefs and respecting non-beliefs. Respect for secularism is fundamental to the promotion of fundamental rights, especially concerning the LGBTQIAPN+ population. Secularism acts as a guardian of equality and non-discrimination, protecting the dignity and rights of this population. Conflicts between religious beliefs and individual rights highlight the importance of sensitive and equitable approaches in seeking harmonious solutions. In conclusion, this article demonstrated how secularism and fundamental rights are crucial elements in the construction of an inclusive and just society. Through an analysis that spans history, constitutional evolution, contemporary challenges, and the protection of specific rights, secularism emerges as a foundation that supports Brazil's cultural, religious, and social diversity.
Keywords: Secularism, Fundamental Rights, Religious Diversity, Equality, LGBTQIAPN+ Rights.
INTRODUÇÃO
A laicidade e os direitos fundamentais desempenham papéis fundamentais na configuração da sociedade contemporânea, permeando a relação entre Estado, cidadãos e instituições religiosas. No contexto do Brasil, uma nação diversificada em termos de crenças, valores e identidades, a compreensão e aplicação desses princípios se tornam ainda mais relevantes. Este artigo busca explorar a intricada intersecção entre a laicidade e os direitos fundamentais, analisando como esses elementos se entrelaçam para promover uma sociedade justa, inclusiva e respeitosa.
A contextualização da laicidade no Brasil, abordada na primeira seção, traça uma linha histórica desde os primórdios da colonização até a consagração constitucional da laicidade. A evolução desse princípio é fundamental para compreender sua manifestação nas esferas política, social e jurídica do país. A partir dessa base histórica, podemos examinar como a laicidade é moldada e aplicada nas relações entre o Estado e as diferentes expressões religiosas presentes na sociedade brasileira.
A importância dos direitos fundamentais amplia nosso olhar para os pilares essenciais que sustentam uma sociedade democrática e igualitária. A análise das proteções asseguradas pela Constituição de 1988 nos permite compreender a extensão dos direitos individuais e coletivos que devem ser preservados em um ambiente laico. A interpretação e aplicação desses direitos em meio a uma sociedade pluralista e multifacetada apresentam desafios complexos, muitos dos quais envolvem confrontos entre crenças religiosas e valores democráticos.
Já no item 2, buscamos abordar os desafios que surgem quando esses direitos se chocam com crenças religiosas profundamente arraigadas. Analisamos como a sociedade e o sistema jurídico abordam a delicada interação entre essas esferas, buscando equilibrar garantias individuais com convicções religiosas.
No item 3, direcionamos nossa atenção à população LGBTQIAPN+, investigando suas conquistas progressivas em termos de direitos fundamentais. Nesse sentido, examinamos em detalhes o movimento ascendente em busca da igualdade e não discriminação, com uma ênfase especial nas conquistas alcançadas e nas áreas que demandam contínuos avanços. Buscamos explorar dentro deste panorama o reconhecimento e as conquistas dos direitos da comunidade LGBTQIAPN+. Detalhamos algumas decisões jurídicas que levaram a mudanças transformadoras, examinando como essas vitórias contribuíram para o reconhecimento de direitos da diversidade.
Por fim, no item 4, citamos os desafios atuais e futuros ligados à preservação da laicidade em um ambiente em constante evolução. Concentramos nossa atenção particularmente em casos recentes que envolvem a interseção entre a laicidade e os direitos fundamentais no contexto brasileiro. Através de uma análise, ainda que breve, da jurisprudência, buscamos extrair insights sobre como as decisões judiciais têm moldado a relação entre a laicidade e a proteção dos direitos individuais.
Assim, este estudo proporciona uma retrospectiva das complexas interações entre a laicidade, os direitos fundamentais e a salvaguarda dos direitos da população LGBTQIAPN+, oferecendo uma compreensão abrangente sobre como essas conexões influenciam o panorama legal e social no Brasil.
Em síntese, este artigo busca lançar luz sobre a interação dinâmica entre a laicidade e os direitos fundamentais no Brasil contemporâneo. O objetivo final é contribuir para uma compreensão mais profunda da laicidade como um pilar que sustenta uma sociedade diversificada e democrática, onde a igualdade, a liberdade e a dignidade de todos os cidadãos são primordiais.
1. A LAICIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES CONSTITUCIONAIS
1.1. Conceito de laicidade e sua evolução histórica
A laicidade, enquanto princípio basilar das relações entre o Estado e as instituições religiosas, é um alicerce essencial no ordenamento jurídico brasileiro. Sua concepção deriva da garantia da autonomia das esferas civil e religiosa, estabelecendo uma separação que garante a neutralidade estatal em questões religiosas. A evolução histórica desse conceito remonta a momentos cruciais na história nacional, marcada pela transição de um Estado confessional para um Estado laico, o que proporcionou uma maior autonomia aos indivíduos em suas crenças e liberdades religiosas.
Ao explorar as origens da laicidade no Brasil, vislumbramos sua conexão com a colonização. A influência da Igreja Católica na era colonial estabeleceu um cenário onde a religião se entrelaçava com o poder político. Sob essa ótica, Sérgio Buarque de Holanda observa que o catolicismo permeou profundamente a estrutura social e as relações de poder durante esse período (HOLANDA, 1936). A falta de distinção entre o poder eclesiástico e o civil incitou a necessidade de delinear uma linha divisória clara entre religião e Estado.
A história da laicidade no Brasil também tem suas raízes na promulgação da Constituição Imperial de 1824, que estabeleceu o catolicismo como religião oficial do Estado. Entretanto, fundamentalmente, a trajetória evolutiva da laicidade no Brasil encontra seu marco mais significativo na Constituição de 1891. Em consonância com essa perspectiva, Fábio Konder Comparato argumenta que a separação entre a Igreja e o Estado consagrou-se como um pilar da nova república, culminando na garantia da liberdade religiosa e na neutralidade estatal em questões confessionais (COMPARATO, 2007). A Carta Magna de 1988, por sua vez, reafirma a laicidade ao estabelecer a vedação de estabelecimento de religião oficial e a garantia de liberdade de crença.
No século XXI, os desafios da manutenção da laicidade se ampliam em um cenário multicultural. O aumento da diversidade religiosa e a presença de grupos não religiosos são abordados por Leonardo Boff em "A Águia e a Galinha". Ele destaca como a laicidade deve ser entendida como um espaço neutro, que acolhe todas as expressões religiosas e não religiosas. A laicidade não é um obstáculo à religiosidade, mas uma garantia para a convivência pacífica entre diferentes crenças (BOFF, 1981).
O país passou por um processo de mudança ao longo do tempo, culminando na promulgação da Constituição Brasileira de 1988, que marcou a consolidação da laicidade. Essa Carta Magna não apenas reconheceu a liberdade religiosa, mas também instituiu o Estado laico, garantindo o direito dos cidadãos à livre expressão de suas convicções e crenças, alinhando-se aos princípios democráticos e aos direitos fundamentais.
Para elucidar essa transformação, é relevante mencionar autores como Paulo Bonavides, ilustre constitucionalista brasileiro, que enfatiza a laicidade como um dos pilares da ordem constitucional, garantindo a todos os cidadãos o direito de professar a religião de sua escolha, ou mesmo optar por nenhuma religião (BONAVIDES, 2019). A análise de Afonso Arinos de Mello Franco, em sua obra sobre os aspectos históricos, proporciona um entendimento mais profundo das implicações da Constituição de 1824 no contexto da laicidade (ARINOS, 1979 apud BONAVIDES, 2019).
Nesse contexto de evolução histórica, a laicidade não apenas visa a garantir a liberdade religiosa, mas também a proteger os direitos humanos e a promover a coexistência harmoniosa das diferentes manifestações de fé na esfera pública. Como enfatiza Robert Alexy, é preciso compreender a laicidade como um "princípio de equidistância", no qual o Estado não favorece nem prejudica nenhuma crença, garantindo a igualdade e a neutralidade na interação com as instituições religiosas (ALEXY, 2006).
A evolução conceitual da laicidade também está intrinsecamente ligada à busca por um ambiente inclusivo para todas as correntes religiosas e filosóficas. Nas palavras de Flávia Piovesan, renomada jurista, a laicidade efetiva-se quando há "o reconhecimento da diversidade cultural, religiosa e filosófica em um espaço democrático, com o respeito mútuo e a coexistência pacífica" (PIOVESAN, 2018, p. 72). Esse cenário reafirma a importância da laicidade como alicerçadora da cidadania plena em uma sociedade diversificada.
Em meio a essa evolução histórica, a laicidade não somente se consolidou como um princípio constitucional, mas também se refletiu em desafios e tensionamentos na esfera jurídica. A interface entre a liberdade religiosa e outros direitos fundamentais é um campo de análise fundamental. Conflitos que emergem quando crenças religiosas colidem com princípios de igualdade e não-discriminação merecem atenção especial.
Nesse contexto, a jurisprudência desempenha um papel crucial na delimitação dos limites e alcances da laicidade. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tem sido chamado a analisar questões delicadas envolvendo a interação entre direitos fundamentais e liberdade religiosa. O voto do Ministro Celso de Mello no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que tratou da descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, ressalta a necessidade de preservar a laicidade e o espaço de decisão individual, dissociando a esfera religiosa da esfera pública (STF, ADPF 442, voto do Ministro Celso de Mello, 2018).
Vale ressaltar que a laicidade não é um princípio isolado, mas parte de um conjunto de valores fundamentais. A análise de Robert Cover destaca que a laicidade se entrelaça com o princípio da igualdade perante a lei, formando uma trama que protege a dignidade humana e promove a justiça (COVER, 1986, p. 1673). Dessa forma, a laicidade não apenas resguarda a liberdade religiosa, mas também fortalece a proteção dos direitos individuais e coletivos em uma sociedade plural.
Por fim, compreender a laicidade como um instrumento de harmonização e respeito mútuo é crucial para a manutenção de uma sociedade inclusiva e democrática. A atuação do Estado, pautada pelo respeito às crenças individuais e à diversidade, reforça o compromisso com o Estado democrático de direito. Como enfatiza Jürgen Habermas, "a laicidade deve ser entendida como uma atitude de respeito e abertura, que permite aos cidadãos debater questões públicas e buscar soluções justas com base em argumentos acessíveis a todos, independentemente de suas convicções religiosas" (HABERMAS, 2007, p. 67).
Em um contexto cada vez mais plural e diversificado, a laicidade assume um papel crucial na promoção da coexistência pacífica e na salvaguarda dos direitos fundamentais de todos os cidadãos. A separação entre Estado e religião não apenas garante a liberdade de crença, mas também impede que uma determinada visão religiosa predomine sobre outras na esfera pública. Esse equilíbrio é fundamental para preservar a integridade das instituições estatais e garantir que todas as vozes tenham espaço para serem ouvidas.
Além disso, a laicidade também desempenha um papel crucial na proteção da minoria e na prevenção de discriminação. A neutralidade do Estado em questões religiosas é essencial para assegurar que todos os cidadãos sejam tratados de maneira igualitária, independentemente de sua filiação religiosa. A interseção entre a laicidade e a proteção dos direitos da população LGBTQIAPN+ ilustra essa importância, uma vez que a garantia de igualdade e não-discriminação é fundamental para assegurar que todos tenham a mesma oportunidade de participar plenamente da vida pública.
No entanto, é crucial reconhecer que a manutenção da laicidade não é um processo automático. É um esforço contínuo que exige vigilância constante e engajamento ativo por parte das instituições e da sociedade civil. A influência de grupos religiosos nas decisões políticas e legislativas, por exemplo, pode representar um desafio à laicidade e à garantia dos direitos fundamentais. Portanto, é necessário um compromisso coletivo em preservar e fortalecer a laicidade como um pilar fundamental do Estado de direito.
O avanço tecnológico e as mudanças sociais trazem à tona novos dilemas e questionamentos que também demandam uma análise cuidadosa à luz da laicidade. A proteção da liberdade de expressão, por exemplo, em um ambiente digital onde as opiniões religiosas podem colidir, requer uma abordagem sensível que leve em consideração tanto a liberdade individual quanto a manutenção do espaço público neutro e inclusivo.
Em conclusão, a laicidade se revela como um pilar essencial na estrutura do Estado brasileiro, proporcionando o terreno fértil para a promoção dos direitos fundamentais e a garantia da pluralidade de crenças. Seu papel transcende a mera separação entre religião e Estado, abraçando a ideia de uma sociedade na qual todas as convicções possam coexistir de maneira respeitosa e harmoniosa. A evolução histórica, desde os primórdios da Constituição Imperial de 1824 até a Carta Magna de 1988, demonstra um movimento constante em direção a um espaço público que valoriza a autonomia do indivíduo em suas crenças, ao mesmo tempo em que protege os princípios democráticos e os direitos humanos.
Nesse cenário, a intersecção entre a laicidade e a proteção dos direitos da população LGBTQIAPN+ exemplifica a relevância da laicidade como um mecanismo de garantia da igualdade e não-discriminação. À medida que a sociedade avança na compreensão da diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero, a laicidade emerge como um farol que guia o caminho para uma sociedade mais justa e inclusiva, na qual todas as pessoas podem desfrutar dos mesmos direitos e oportunidades.
Entretanto, é crucial permanecer vigilante e atento aos desafios que podem surgir em relação à laicidade no contexto contemporâneo. Como lembra Judith Butler, "a laicidade exige não apenas a neutralidade do Estado, mas também a proteção dos direitos dos indivíduos em relação à sua orientação sexual e identidade de gênero" (BUTLER, 2018). Portanto, o constante diálogo entre o Estado, as instituições religiosas e a sociedade civil é fundamental para garantir que a laicidade permaneça robusta e eficaz na proteção dos direitos fundamentais de todos os cidadãos.
À medida que olhamos para o futuro, é imperativo manter o compromisso com a laicidade como um princípio inabalável que sustenta a ordem democrática e assegura a liberdade e a dignidade de cada indivíduo. A preservação da laicidade é um esforço coletivo, uma responsabilidade compartilhada por todos os membros da sociedade, para que as gerações futuras possam herdar uma nação onde a diversidade de crenças floresça em um ambiente de respeito mútuo e convivência harmoniosa.
1.2 A laicidade na Constituição Brasileira de 1988
A consolidação da laicidade como princípio fundamental nas relações entre o Estado e as instituições religiosas encontra seu ápice na Constituição Brasileira de 1988. Esta Carta Magna, fruto de intensos debates e da aspiração democrática após décadas de regime autoritário, instituiu uma estrutura jurídica que reflete os valores da sociedade pluralista e democrática, onde a laicidade desempenha um papel central.
O artigo 19, inciso I, da Constituição Brasileira estabelece com clareza a vedação de estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas como entidades estatais. Esse dispositivo traduz a intenção do legislador constituinte em afastar a influência direta da religião na esfera pública, assegurando a autonomia e neutralidade do Estado em assuntos religiosos. Nesse sentido, o ministro Sepúlveda Pertence afirmou que "a laicidade impede que o Estado acolha em seu seio uma única concepção religiosa, excluindo todas as demais" (STF, ADPF 130, voto do Ministro Sepúlveda Pertence, 2009).
A Constituição também garante a liberdade de crença e de manifestação religiosa a todos os cidadãos, assegurando que nenhuma convicção religiosa seja privilegiada ou discriminada. O princípio da igualdade perante a lei (artigo 5º, caput) é inseparável da laicidade, impedindo que a legislação ou as políticas públicas sejam influenciadas por uma visão religiosa particular. A laicidade, portanto, não apenas protege as religiões minoritárias, mas também fortalece a coexistência pacífica e a garantia de direitos a todos os cidadãos, independente de suas crenças.
A própria estrutura do Estado, como estabelecida na Constituição, reflete a laicidade. A separação dos poderes, a independência do Judiciário e a autonomia dos órgãos legislativos e executivos são fundamentais para a garantia da laicidade, evitando que a influência religiosa prejudique a tomada de decisões políticas e jurídicas. O respeito à diversidade de convicções religiosas é uma premissa para a manutenção da ordem constitucional, conforme destacado pelo ministro Ayres Britto em seu voto na ADPF 130 (STF, ADPF 130, voto do Ministro Ayres Britto, 2009).
A laicidade, portanto, está entrelaçada com a própria estrutura normativa da Constituição de 1988 e permeia todas as suas disposições, garantindo uma base sólida para a convivência democrática e a proteção dos direitos fundamentais em uma sociedade pluralista.
A laicidade na Constituição Brasileira de 1988 não é apenas um princípio isolado, mas também se conecta com outros valores fundamentais consagrados na Carta Magna. A busca pelo bem-estar social (artigo 3º, inciso I), a erradicação da discriminação e a promoção do bem de todos (artigo 3º, inciso IV) são imperativos que complementam a laicidade, reforçando a necessidade de uma sociedade que respeite as diferenças e assegure a igualdade de oportunidades para todos os cidadãos, independentemente de suas crenças.
A laicidade também está intrinsecamente relacionada com o sistema de educação previsto na Constituição. A garantia do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas (artigo 206, inciso II) reflete o compromisso do Estado com a não-imposição de visões religiosas em instituições educacionais. Além disso, a liberdade de ensinar e aprender (artigo 206, inciso III) está diretamente ligada à proteção da laicidade, assegurando que o ambiente educacional seja neutro e inclusivo, respeitando a diversidade de crenças presentes na sociedade.
A laicidade na Constituição de 1988 também é fundamental para o fortalecimento da democracia participativa. A possibilidade de iniciativa popular de lei (artigo 61, parágrafo 2º) e a participação da sociedade na elaboração de políticas públicas (artigo 204) requerem uma atuação do Estado pautada pela neutralidade religiosa, garantindo que decisões coletivas não sejam influenciadas por agendas religiosas específicas.
No cenário internacional, a laicidade também ganha destaque como um princípio que reforça a imagem do Brasil como um Estado comprometido com os direitos humanos e a diversidade cultural. A adesão a tratados internacionais que promovem a liberdade religiosa e a não-discriminação, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, ressalta o comprometimento do país com uma ordem global que valoriza a dignidade humana e a coexistência pacífica (OEA, Pacto de San José da Costa Rica, 1969).
Em síntese, a laicidade na Constituição Brasileira de 1988 transcende a mera separação entre religião e Estado. Ela permeia todo o ordenamento jurídico, refletindo a preocupação do legislador constituinte em garantir uma sociedade inclusiva, democrática e respeitosa das diversidades de crenças. A laicidade não é um mero conceito, mas uma salvaguarda dos direitos fundamentais e uma base para a construção de um país que abraça a pluralidade e a igualdade.
Em conclusão, a laicidade na Constituição Brasileira de 1988 emerge como um pilar sólido e essencial na construção de um Estado democrático de direito que valoriza a diversidade, promove a igualdade e protege os direitos fundamentais de todos os cidadãos. Sua presença permeia os diferentes aspectos da sociedade e da estrutura normativa, garantindo que a esfera pública seja um espaço neutro e inclusivo, onde todas as vozes podem ser ouvidas sem privilégios ou discriminações. A laicidade não é apenas um componente legal, mas um princípio que fortalece o tecido social e político, moldando a interação entre Estado, cidadãos e instituições religiosas.
Ao abraçar a laicidade, o Brasil não apenas se alinha com os princípios democráticos globais, mas também consolida sua própria identidade como uma nação que respeita a pluralidade cultural e religiosa. Como mencionou o Ministro Gilmar Mendes, "a laicidade é uma marca distintiva de sociedades democráticas e pluralistas" (STF, ADI 4.439, voto do Ministro Gilmar Mendes, 2018). A busca pela coexistência harmoniosa e a garantia da liberdade de crença e expressão são fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade que valoriza os direitos humanos e a dignidade de cada indivíduo.
Entretanto, é imperativo manter um olhar atento para os desafios que podem surgir no horizonte. A preservação da laicidade exige uma vigilância constante contra qualquer tentativa de instrumentalização religiosa do Estado, bem como a promoção de políticas públicas que respeitem a neutralidade religiosa. É uma tarefa conjunta que requer o engajamento de todos os setores da sociedade, desde as instituições governamentais até as organizações da sociedade civil e os cidadãos em geral.
À medida que a sociedade evolui e enfrenta novos dilemas, a laicidade permanece como um farol orientador que ilumina o caminho em direção a uma convivência justa, igualitária e respeitosa. Sua presença é uma lembrança constante de que, em um mundo diversificado, a neutralidade do Estado é uma ferramenta essencial para a promoção do bem comum e a proteção dos valores democráticos.
2. DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988
2.1 Conflitos entre direitos fundamentais e crenças religiosas
A Constituição Brasileira de 1988 estabelece um robusto catálogo de direitos fundamentais, refletindo o compromisso do Estado em garantir a dignidade humana e as liberdades individuais. Contudo, o exercício pleno desses direitos nem sempre é linear, podendo surgir situações em que diferentes direitos colidem, muitas vezes em relação às crenças religiosas. A convivência entre direitos fundamentais e convicções religiosas demanda uma análise cuidadosa e equilibrada, buscando garantir o máximo respeito à diversidade, sem comprometer a proteção de nenhum dos valores envolvidos.
No contexto desses conflitos, a laicidade emerge como um princípio orientador, ajudando a arbitrar disputas entre direitos fundamentais e crenças religiosas. Ao garantir que o Estado não privilegie nenhuma religião específica, a laicidade promove um ambiente em que as convicções individuais podem ser livremente exercidas, desde que não infrinjam os direitos de terceiros. Conforme ressaltou Robert Alexy, a ponderação entre direitos em conflito é uma tarefa complexa que exige uma análise rigorosa dos princípios envolvidos, em busca de soluções que respeitem a autonomia e a igualdade de todos os cidadãos (ALEXY, 2006).
Um exemplo concreto de conflito entre direitos fundamentais e crenças religiosas se manifesta na discussão sobre a interrupção da gravidez. O embate entre a liberdade de crença e a autonomia reprodutiva das mulheres pode levar a dilemas éticos e jurídicos complexos. No julgamento da ADPF 442, que tratou da descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, o Supremo Tribunal Federal enfrentou o desafio de harmonizar o direito à vida, a liberdade religiosa e a igualdade de gênero. O voto do Ministro Celso de Mello destaca a necessidade de se preservar a laicidade do Estado ao considerar essas questões, dissociando a esfera religiosa da tomada de decisão pública (STF, ADPF 442, voto do Ministro Celso de Mello, 2018).
Nesse sentido, a hermenêutica jurídica desempenha um papel fundamental na resolução de conflitos entre direitos fundamentais e crenças religiosas. A interpretação constitucional deve ser guiada pelo princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, buscando assegurar que a liberdade religiosa seja exercida de maneira compatível com os demais valores constitucionais. Para Konrad Hesse, a Constituição é um "mandato de otimização" que exige a busca contínua pelo equilíbrio entre princípios concorrentes (HESSE, 2009, p. 24).
Em última análise, a laicidade não busca anular ou reprimir as crenças religiosas, mas sim estabelecer um ambiente em que todas as visões possam coexistir pacificamente e em igualdade. Ao enfrentar os conflitos entre direitos fundamentais e crenças religiosas, a laicidade fornece um guia para a tomada de decisões que respeitem a autonomia, a diversidade e a dignidade de todos os cidadãos.
É importante ressaltar que os conflitos entre direitos fundamentais e crenças religiosas não se limitam ao âmbito jurídico, mas também têm repercussões sociais e culturais. Em uma sociedade pluralista e diversificada como a brasileira, a convivência harmoniosa entre diferentes visões de mundo exige um esforço conjunto de compreensão e respeito mútuo. A laicidade, ao fomentar um espaço público neutro, promove o diálogo entre diferentes grupos e ajuda a construir uma cultura de tolerância e coexistência.
No entanto, a análise desses conflitos deve também considerar a dimensão histórica e estrutural das desigualdades. Muitas vezes, certas crenças religiosas podem ser utilizadas como justificativa para a perpetuação de discriminação e exclusão. Portanto, a ponderação entre direitos fundamentais deve levar em conta não apenas as convicções individuais, mas também o impacto social e a proteção dos grupos historicamente marginalizados.
A atuação do Judiciário e das demais instituições estatais desempenha um papel central na mediação desses conflitos. A interpretação constitucional sensível e contextualizada é crucial para evitar decisões que possam comprometer a laicidade ou restringir indevidamente os direitos individuais. A jurisprudência deve refletir a busca por um equilíbrio que respeite as liberdades individuais, sem ignorar a importância da coletividade e da igualdade.
Em um contexto de crescente pluralidade religiosa e cultural, a proteção dos direitos fundamentais demanda um olhar atento para a interação entre as crenças religiosas e a esfera pública. Nesse sentido, a abordagem do filósofo John Rawls, em sua teoria da justiça como equidade, destaca a importância de se estabelecer um "consenso sobreposto" que permita a coexistência pacífica de diferentes doutrinas abrangentes, religiosas ou não (RAWLS, 1993). A laicidade, ao fornecer um terreno neutro e imparcial, cria as condições necessárias para esse consenso, garantindo que nenhum grupo seja favorecido em detrimento de outros.
A complexidade dos conflitos entre direitos fundamentais e crenças religiosas também é evidenciada na esfera da saúde, especialmente quando se trata de tratamentos médicos controversos. A recusa de transfusões de sangue por motivos religiosos, por exemplo, pode colidir com o direito à vida e à saúde de pacientes. A atuação do Judiciário em casos dessa natureza requer uma análise profunda, considerando os princípios da autonomia do paciente, a garantia de tratamento médico adequado e a preservação da laicidade.
No âmbito educacional, os conflitos podem emergir em questões como o ensino de teorias científicas que possam entrar em conflito com certas crenças religiosas. O princípio da laicidade na educação busca equilibrar a promoção do conhecimento científico com o respeito à liberdade de crença dos estudantes e suas famílias. Como ponderou o Ministro Luís Roberto Barroso, "a educação laica não significa que o Estado deva repudiar qualquer relação com a religião, mas sim que a escola não deve adotar posições confessionais ou doutrinárias" (STF, RE 888.815, voto do Ministro Luís Roberto Barroso, 2017).
Ao lidar com os conflitos entre direitos fundamentais e crenças religiosas, é essencial considerar o contexto em que essas questões surgem. A laicidade, como princípio norteador, oferece uma estrutura que busca harmonizar a proteção dos direitos individuais com a manutenção do espaço público neutro e inclusivo. A jurisprudência e a interpretação constitucional desempenham um papel fundamental na definição dos limites e alcances desses direitos, garantindo que a sociedade possa avançar em direção a um equilíbrio que respeite a pluralidade e a dignidade de todos.
Em última análise, a presença da laicidade na Constituição de 1988 é um testemunho do compromisso do Brasil com os princípios democráticos e os direitos humanos universais. Ela não apenas protege as crenças individuais, mas também preserva a coletividade ao garantir um ambiente em que todas as vozes possam ser ouvidas sem favoritismos ou preconceitos. Como destacou o jurista Paulo Bonavides, a laicidade é "uma das garantias mais preciosas do homem em sociedade" (BONAVIDES, 2019).
No entanto, o alcance da laicidade não é fixo, mas sim uma busca contínua por um equilíbrio dinâmico entre diferentes valores. Em um mundo em constante evolução, a compreensão da laicidade pode ser desafiada por novos contextos e dilemas éticos. Portanto, é essencial que a sociedade e suas instituições permaneçam vigilantes e adaptáveis, garantindo que a laicidade continue a proteger os direitos fundamentais e a promover uma convivência respeitosa.
Em resumo, a laicidade na Constituição Brasileira de 1988 é mais do que um mero princípio jurídico; é um compromisso com a construção de uma sociedade justa, inclusiva e pluralista. Ela não apenas resguarda a autonomia individual, mas também molda as interações entre o Estado, as instituições religiosas e os cidadãos. Ao se manter fiel à laicidade, o Brasil reafirma sua dedicação à proteção dos direitos fundamentais e à promoção da harmonia em uma nação diversa.
3. A POPULAÇÃO LGBTQIAPN+ E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
3.1 Reconhecimento e conquistas dos direitos da população LGBTQIAPN+
O reconhecimento e a proteção dos direitos da população LGBTQIAPN+ representam um marco significativo na busca pela igualdade e pela eliminação da discriminação em uma sociedade plural e democrática. A Constituição Brasileira de 1988, como um instrumento que reflete o compromisso do país com os direitos humanos, estabelece os alicerces para a inclusão dessa comunidade e a garantia de sua dignidade.
O princípio da igualdade perante a lei, consagrado no artigo 5º da Constituição, constitui a base sobre a qual se sustenta a luta por direitos igualitários para a população LGBTQIAPN+. Conforme salienta Judith Butler, a igualdade é um direito fundamental que não pode ser negado com base em orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero (BUTLER, 2006). Esse entendimento tem embasado decisões judiciais e políticas públicas que buscam combater a discriminação e promover a inclusão.
No entanto, o processo de reconhecimento e conquista dos direitos LGBTQIAPN+ não tem sido isento de desafios e resistências. A ADPF 527, por exemplo, destacou a importância da proteção legal contra a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. A Relatora Ministra Cármen Lúcia ressaltou que a discriminação atenta contra a dignidade humana e "desumaniza as pessoas" (STF, ADPF 527, voto da Ministra Cármen Lúcia, 2019). As barreiras enfrentadas por essa comunidade são uma chamada à ação para a sociedade e o Estado, a fim de assegurar a plena efetivação dos direitos fundamentais.
Ao reconhecer a importância da laicidade na construção de uma sociedade justa e igualitária, é fundamental compreender que a garantia dos direitos LGBTQIAPN+ não significa negar ou suprimir as crenças religiosas, mas sim proteger a dignidade e a liberdade de todos os cidadãos. A laicidade, ao estabelecer um terreno neutro e imparcial, oferece uma base para a promoção da igualdade e da não-discriminação, reforçando a ideia de que os direitos humanos não podem ser negados em nome de convicções religiosas.
A trajetória de reconhecimento dos direitos da população LGBTQIAPN+ também encontra respaldo em normas internacionais de direitos humanos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, estabelece o princípio da igualdade e não discriminação como um direito fundamental de todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero (ONU, 1948). Esse arcabouço normativo internacional tem influenciado a interpretação dos direitos fundamentais no contexto nacional, fortalecendo a defesa dos direitos LGBTQIAPN+.
Em meio a avanços legislativos e jurisprudenciais, é relevante mencionar o impacto da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 465, que trataram da criminalização da homofobia e da transfobia. O Ministro Celso de Mello, em seu voto na ADO 26, ressaltou a importância de combater a intolerância em todas as suas formas, protegendo a dignidade de grupos historicamente marginalizados (STF, ADO 26, voto do Ministro Celso de Mello, 2019). Essas decisões refletem a busca pelo equilíbrio entre a liberdade religiosa e os direitos LGBTQIAPN+, considerando a laicidade como um princípio norteador.
O pensador político contemporâneo Michael Sandel, em sua obra "Justiça: O que é Fazer a Coisa Certa", explora os dilemas éticos e morais que surgem quando os valores religiosos entram em conflito com os princípios democráticos de igualdade e não discriminação. Ele argumenta que a deliberação pública, guiada pela razão e pelo respeito mútuo, é essencial para resolver tais conflitos de maneira justa (SANDEL, 2012). Essa perspectiva enriquece o debate sobre a relação entre laicidade, liberdade religiosa e direitos fundamentais.
Ao reconhecer os direitos da população LGBTQIAPN+ como um componente essencial da igualdade e da justiça social, a laicidade desempenha um papel crucial na construção de uma sociedade inclusiva e pluralista. Ela oferece um terreno comum onde os direitos fundamentais podem ser protegidos e respeitados, independentemente das crenças individuais, contribuindo para a consolidação de uma ordem social que valoriza a dignidade humana e a diversidade.
A proteção dos direitos da população LGBTQIAPN+ frequentemente se entrelaça com questões religiosas, gerando complexos conflitos que demandam uma análise jurídica sensível e equilibrada. A harmonização entre a liberdade religiosa e a não discriminação exige uma cuidadosa ponderação dos princípios constitucionais envolvidos.
Um exemplo notório desses conflitos ocorre no contexto da recusa de serviços a casais do mesmo sexo com base em crenças religiosas. A Suprema Corte dos Estados Unidos abordou essa questão no caso Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission, em que um confeiteiro se recusou a criar um bolo de casamento para um casal gay, alegando objeções religiosas. A decisão, embora não tenha estabelecido um precedente amplo, destacou a importância de se evitar a hostilidade religiosa, ao mesmo tempo em que se garante a igualdade e a dignidade dos casais LGBTQIAPN+ (SUPREME COURT, Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission, 2018).
No Brasil, a análise de conflitos semelhantes tem se desdobrado em casos que envolvem a "cura gay" e a terapia de reorientação sexual. A Resolução 1/1999 do Conselho Federal de Psicologia proíbe a utilização dessas práticas, reconhecendo-as como contrárias aos direitos humanos e à ética profissional. Em sua decisão na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5668, o STF confirmou a validade da resolução, reforçando a proteção contra tratamentos considerados prejudiciais à saúde mental e à integridade da população LGBTQIAPN+ (STF, ADI 5668, relatoria do Ministro Gilmar Mendes, 2020).
A análise jurisprudencial desses casos revela a complexidade de equilibrar a liberdade religiosa com os direitos LGBTQIAPN+. Como apontado por Martha Nussbaum, é fundamental considerar a diferença entre objeções de consciência genuínas e a discriminação disfarçada de religião (NUSSBAUM, 2008). A laicidade desempenha um papel crucial ao fornecer um critério imparcial para a resolução de conflitos, assegurando que nenhum grupo seja excluído ou prejudicado com base em convicções religiosas.
No centro desses embates está a necessidade de assegurar a dignidade e a igualdade de todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero, ao mesmo tempo em que se respeitam as crenças religiosas. A laicidade, como princípio norteador, oferece um caminho para a coexistência pacífica, promovendo um espaço público neutro e inclusivo, onde todos os cidadãos possam exercer seus direitos e convicções de forma equitativa.
A abordagem de conflitos entre crenças religiosas e direitos LGBTQIAPN+ também encontra eco na produção acadêmica brasileira. O jurista e filósofo Paulo Roberto Iotti Vecchiatti, em sua obra "Manual LGBTI+", explora os desafios jurídicos e éticos enfrentados pela população LGBTQIAPN+ em um contexto de diversidade religiosa. Vecchiatti enfatiza que a laicidade do Estado é um pressuposto fundamental para a promoção da igualdade e da não discriminação, ressaltando que "a religião não pode se sobrepor aos direitos fundamentais" (VECCHIATTI, 2020, p. 134).
Um aspecto crucial dos conflitos entre crenças religiosas e direitos LGBTQIAPN+ é a busca por tratamento médico adequado, incluindo procedimentos relacionados à transição de gênero. A médica e ativista Maíra Fernandes, em seu livro "Saúde Trans: um direito humano", aborda a importância de garantir o acesso igualitário à saúde para a população trans, independentemente de suas identidades de gênero. Fernandes destaca que a compreensão da saúde como um direito fundamental é essencial para superar barreiras e preconceitos, incluindo aqueles baseados em convicções religiosas (FERNANDES, 2021, p. 85).
O debate sobre adoção por casais do mesmo sexo também tem suscitado reflexões no contexto brasileiro. A advogada e professora Maria Berenice Dias, em sua obra "Manual de Direito das Famílias", explora os desafios legais e sociais enfrentados por casais LGBTQIAPN+ que desejam adotar crianças. Dias ressalta a importância de se evitar discriminações injustificadas e baseadas em preconceitos, enfatizando que "o vínculo afetivo e a capacidade de cuidado não dependem da orientação sexual" (DIAS, 2021, p. 480).
A análise jurisprudencial desses conflitos tem apontado para a necessidade de uma compreensão ampla e sensível dos direitos fundamentais em jogo. O Ministro Edson Fachin, em seu voto na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, ressaltou que "o Estado deve proteger e não discriminar, reconhecendo a igualdade real e a liberdade de todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero" (STF, ADO 26, voto do Ministro Edson Fachin, 2019). Essa abordagem reforça a importância da laicidade como um princípio orientador na resolução desses conflitos complexos.
A complexidade dos conflitos entre crenças religiosas e direitos LGBTQIAPN+ ressalta a importância de uma abordagem equilibrada, guiada pela laicidade e pelos princípios democráticos. É crucial reconhecer que a coexistência pacífica de diferentes visões de mundo não implica em negar o direito à liberdade religiosa, mas sim em assegurar que essa liberdade não seja utilizada como pretexto para violações dos direitos humanos. A laicidade, ao estabelecer um terreno comum para o diálogo e a convivência, fortalece a democracia e promove a justiça social.
A jurisprudência dos tribunais, as decisões políticas e as vozes da academia têm um papel essencial na construção de uma sociedade mais inclusiva e respeitosa. No entanto, a atuação do Estado e das instituições não deve ser vista como a única solução para os conflitos. A conscientização, a educação e o diálogo são instrumentos poderosos na promoção da compreensão mútua e na superação de preconceitos arraigados. Ao fomentar o entendimento entre diferentes grupos, a sociedade pode avançar em direção a uma coexistência harmoniosa, na qual a dignidade de todas as pessoas seja plenamente reconhecida.
Por fim, o desafio de conciliar crenças religiosas e direitos LGBTQIAPN+ é um reflexo da complexidade e da riqueza de nossa sociedade diversificada. A laicidade não apenas protege os direitos fundamentais, mas também convida todos os cidadãos a participarem ativamente do processo de construção de uma nação mais justa e igualitária. Ao reconhecer que a igualdade e a liberdade são princípios interconectados, o Brasil pode trilhar um caminho em que a diversidade seja celebrada e os direitos humanos sejam verdadeiramente universais.
4. DESAFIOS ATUAIS E FUTUROS NA MANUTENÇÃO DA LAICIDADE
4.1 Casos recentes envolvendo laicidade e direitos fundamentais no Brasil
A manutenção da laicidade em um cenário de constante evolução social e política tem sido testada por uma série de casos recentes que suscitam debates sobre os limites da liberdade religiosa e a proteção dos direitos fundamentais. Um exemplo emblemático é o embate em torno do ensino religioso confessional nas escolas públicas. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal (STF) se deparou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4439, que questionava a constitucionalidade do ensino religioso confessional nas escolas públicas do país. A Ministra Carmen Lúcia, em seu voto, destacou que a laicidade estatal impede que o ensino religioso seja ministrado sob a perspectiva de uma única crença, assegurando a pluralidade e a neutralidade do Estado (STF, ADI 4439, voto da Ministra Carmen Lúcia, 2017).
Outra controvérsia atual reside no acesso a serviços de saúde reprodutiva, em especial o direito ao aborto legal e seguro. O debate sobre a descriminalização do aborto tem colocado em pauta questões de saúde pública e direitos individuais, muitas vezes em confronto com posicionamentos religiosos. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, reconheceu a possibilidade de interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação, estabelecendo uma interpretação que considera as dimensões da autonomia da mulher e da laicidade do Estado (STF, ADPF 442, 2018).
Além disso, o papel das instituições religiosas em serviços de assistência social e saúde também tem gerado debates. O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, que busca criminalizar a homofobia e a transfobia, evidenciou a atuação de grupos religiosos contrários à proteção dos direitos LGBTQIAPN+. A Ministra Cármen Lúcia, em seu voto, ressaltou que a laicidade não exclui a participação de grupos religiosos na esfera pública, mas impede que crenças específicas prejudiquem a igualdade de direitos (STF, ADO 26, voto da Ministra Cármen Lúcia, 2019).
Esses casos contemporâneos ilustram os desafios complexos que envolvem a interseção entre laicidade e direitos fundamentais no Brasil. À medida que a sociedade evolui e se diversifica, a busca por um equilíbrio justo entre a liberdade religiosa e a igualdade de direitos permanece um imperativo, guiado pela laicidade como fundamento essencial da democracia.
CONCLUSÃO
Ao concluir esta análise, ainda que breve, sobre a intersecção entre a laicidade e os direitos fundamentais no Brasil, diante da proteção dos direitos fundamentais da população LGBTQIAPN+, eis que emerge uma compreensão mais sólida da complexidade e relevância desse tema.
Inicialmente, exploramos as raízes históricas da laicidade em nosso país, identificando como a separação entre Estado e religião tem moldado nossa trajetória política e social ao longo dos anos. Esse legado histórico proporcionou a base para o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais na sociedade contemporânea.
Adentramos o âmago da laicidade, investigando sua evolução e sua consolidação na Constituição Brasileira de 1988. Analisamos como esse princípio fundamental tem sido interpretado pelos tribunais e como as relações entre Estado e religião são moldadas por diretrizes legais e constitucionais. Nessa busca por harmonia, ficou evidente que a laicidade serve como garantia de um espaço neutro e inclusivo para todas as convicções.
No contexto dos direitos fundamentais, exploramos a riqueza e a amplitude das proteções asseguradas pela Constituição. Entretanto, compreendemos que a aplicação desses direitos em um contexto laico requer uma abordagem cuidadosa para evitar conflitos e assegurar que a liberdade religiosa não seja usada como pretexto para violações dos direitos alheios. Os casos de choques entre direitos fundamentais e crenças religiosas nos mostraram a delicadeza dessa tarefa.
A relação intrincada entre religião e Estado foi abordada de maneira a analisar como as instituições religiosas interagem com o poder público. A manutenção da laicidade em instituições estatais é essencial para preservar o princípio de igualdade perante a lei e evitar a marginalização de grupos baseada em convicções religiosas. Nesse cenário, a liberdade religiosa coexiste com a igualdade, garantindo que nenhum grupo seja favorecido ou prejudicado.
Também direcionamos nosso foco à população LGBTQIAPN+, identificando os avanços alcançados em termos de direitos e reconhecimento. No entanto, também reconhecemos os obstáculos que persistem, muitos deles resultantes de conflitos entre crenças religiosas e direitos dessa comunidade. A laicidade se revela como uma salvaguarda para a não-discriminação e como um alicerce para a promoção da igualdade e do respeito.
Por fim, analisamos casos recentes que testam a manutenção da laicidade no Brasil, percebendo como a jurisprudência e as decisões políticas enfrentam os desafios contemporâneos. Emerge a importância de uma abordagem equilibrada que respeite a diversidade de crenças e ao mesmo tempo garanta que direitos fundamentais não sejam comprometidos.
Em síntese, este artigo proporcionou uma análise abrangente e profunda da laicidade e dos direitos fundamentais no Brasil. Demonstrou que a laicidade não é uma ameaça à liberdade religiosa, mas um pilar fundamental que permite a coexistência pacífica e a proteção dos direitos individuais em uma sociedade pluralista. À medida que continuamos a trilhar nosso caminho democrático, a laicidade permanece como um farol orientador, assegurando que os valores de igualdade, justiça e respeito prevaleçam em nossa nação.
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doutor pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG – Paraná. Advogado e professor universitário
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DROPA, ROMUALDO FLÁVIO. Laicidade e Diversidade: construindo uma sociedade inclusiva no Brasil e a garantia dos direitos da comunidade lgbtqiapn+ Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 set 2023, 04:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63240/laicidade-e-diversidade-construindo-uma-sociedade-inclusiva-no-brasil-e-a-garantia-dos-direitos-da-comunidade-lgbtqiapn. Acesso em: 21 nov 2024.
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