VIVIANE CRISTINE COSTA NETO[1]
(coautora)
NATÁLIA MARRA
(orientadora)
Resumo: É de conhecimento público e notório que desde os primórdios da sociedade e sua criação o trabalho escravo sempre esteve presente, exercendo forte influência na formação cultural e social dos povos. O contexto travado pelo povo brasileiro não diverge de tal cenário, de modo que, mesmo com o avanço da globalização, dos meios de trabalho e, por conseguinte, das relações laborais, o trabalho degradante continua sendo uma problemática pendente de erradicação nos dias atuais. A partir disso, destaca-se o avanço legislativo nesse sentido, bem como as ações estatais em parceria com demais organizações internacionais com o intuito de extirpar tal conjuntura, o que vem tomando forma por meio da aplicação da lei e da atenção voltada aos grupos vulneráveis através de ações e projetos.
Palavras chave: Trabalho, Escravo, Brasil, Contemporâneo.
Abstract: It is public and well-known knowledge that since the beginnings of society and its creation, slave labor has always been present, exerting a strong influence on the cultural and social formation of people. The context faced by the Brazilian people does not differ from this scenario, so that, even with the advancement of globalization, the means of work and, consequently, labor relations, degrading work continues to be a problem pending eradication today. From this, the legislative progress in this sense stands out, as well as state actions in partnership with other international organizations with the aim of eradicating this situation, which has been taking shape through the application of the law and attention focused on vulnerable groups through actions and projects.
Keywords: Work, Slave, Brazil, Contemporary.
Introdução
A proposta do presente trabalho consubstancia-se em analisar o contexto histórico do trabalho análogo à escravidão, bem como a conjuntura atual dessa problemática com o avanço da sociedade brasileira, ao longe de uma investigação que perpassa os desafios consistentes no combate do cenário de exploração e legislações pertinentes.
Para tanto, serão abordados eventos históricos que permitiram o alastramento do trabalho escravo, além dos obstáculos advindos da nova atualidade no combate ao trabalho análogo à escravidão, assim como os novos cenários e elementos que fomentam a prática da atividade laboral pautada na servidão e exploração.
Em sequência, a evolução legislativa nessa problemática é tema fundamental para compreender o posicionamento do ordenamento jurídico brasileiro frente a tal demanda, com destaque para as convenções e tratados internacionais relevantes para o desate do tema e a aplicação da norma ao caso concreto a partir do exame do Recurso Especial nº 1.843.150 – PA.
Como resultado, o presente estudo apontará as ações governamentais, tal como a influência da Organização Internacional do Trabalho direcionadas ao combate do trabalho análogo a escravidão e os reflexos desses atos nas relações trabalhistas, com ênfase no Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil como parâmetro orientador às autoridades competentes.
Por fim, todo o raciocínio será estruturado a partir de uma análise histórica, legal e social, a fim de vislumbrar as conquistas e entraves enfrentados pelas vítimas do trabalho análogo a escravidão no Brasil contemporâneo.
Dessa forma, a princípio a atenção será voltada para a conceituação do tema, avançando posteriormente para os eventos históricos que contribuíram para atual formação do problemática. Em seguida, a atenção será firmada na evolução legislativa em âmbito nacional e internacional, permitindo a visão do tema a partir da análise de caso pertinente. Ainda, serão abordadas as estratégias adotadas pelo Brasil com vistas a erradicar e solucionar o tema em comento.
1. A evolução histórica do trabalho escravo no Brasil Contemporâneo
1.1 Conceito de trabalho escravo
Sabe-se que, desde os primórdios da civilização a atividade laboral sempre estabeleceu contornos de força e independência, desenhando um cenário que percorre até a atualidade, além de traçar condutas pautadas em movimentos históricos e culturais, consoante expõe Luciano Martinez (MARTINEZ, 2019, p.63):
Os poderes decorrentes da liderança familiar, então, revelaram que relações profissionais poderiam funcionar sob o mesmo esquema — era possível a intermediação do trabalho de uns em favor de outros. Desse modo surgia a clara divisão conceitual do trabalho em dois grandes grupos: trabalho por conta própria, de forte valor autotutelar, e trabalho por conta alheia, de visível valor econômico. (MARTINEZ, 2019, p. 63)
Isso porque, o trabalho advindo da força humana adquiriu no decorrer dos séculos, um contorno em que figuram dois lados, o primeiro, de superioridade e o outro reduzido a insignificância, seja pela raça, etnia, idade ou gênero, consoante se observa nos idos do Brasil escravocrata cujo período inicial remonta ao século XVI e, ressalta-se, baluarte da Lei Áurea, a qual hoje representa um marco em inúmeros aspectos, seja do ponto de vista econômico, social ou histórico, mostrando-se como um verdadeiro símbolo multifacetário.
Feito esse introito, antes de adentrar ao objetivo central da problemática a ser abordada, mostra-se fundamental a compreensão dos elementos ensejadores das situações similares a escravidão, haja vista o desuso do termo “trabalho escravo” após o advento da Lei Áurea, aproximando-se deste as conjuntaras violadoras dos direitos e garantias fundamentais inerentes ao indivíduo no âmbito da atividade laboral.
Nesse ponto, destaca-se a redação dada ao art. 149, do Código Penal Brasileiro, que esclarece detalhadamente as circunstâncias as quais propiciam o enquadramento do empregador às sanções descritas no referido tipo, o qual disciplina que, incorre nas penas descritas no artigo supramencionado aquele que:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
(...)
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Dessa forma, percebe-se que para além de um artigo sancionador inserido na sistemática do direito penal, o art. 149, traz em sua redação a conceituação do trabalho análogo a escravidão, consubstanciado na enunciação das condutas que representam a conjuntura objeto de coibição.
Ato contínuo, no que tange a expressão “trabalho forçado” inserida no tipo, o doutrinador Guilherme de Souza Nucci a define como "a atividade laborativa desenvolvida de maneira compulsória, sem voluntariedade, pois implica em alguma forma de coerção caso não desempenhada a contento" (Nucci, 2021, p.761), de modo que, resta nítida a intenção do legislador em conceder enfoque às condutas que impliquem além de ofensa na seara trabalhista, nítida violação aos direitos do trabalhador enquanto pessoa na ordem jurídica, tal qual, o cerceamento da garantia de ir e vir, estatuído na Carta Magna, cujo ponto disserta Flávio Martins (MARTINS, 2022, p.1.243), senão vejamos:
Tratamento degradante é o desonrante, deteriorante, já que degradar é privar de dignidades, honras. Ora, assim como a Constituição Federal veda a tortura, também veda, no mesmo dispositivo legal (art. 5º, III), o tratamento desumano ou degradante. (MARTINS, 2022, p.1.243)
Em consonância com o art. 149 do CP, tem-se que a Portaria MTP 617/2021, disciplina no art. 207 da sua redação, os requisitos inerentes e caracterizadores das condições análogas à escravidão, as quais cumpre trazer à baila:
“Art. 207. Considera-se em condição análoga à de escravo o trabalhador submetido, de forma isolada ou conjuntamente, a:
I - trabalho forçado;
II - jornada exaustiva;
III - condição degradante de trabalho;
IV - restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho; ou
V - retenção no local de trabalho em razão de:
a) cerceamento do uso de qualquer meio de transporte;
b) manutenção de vigilância ostensiva; ou
c) apoderamento de documentos ou objetos pessoais.
Parágrafo único. O trabalho realizado em condição análoga à de escravo, sob todas as formas, constitui atentado aos direitos humanos fundamentais e à dignidade do trabalhador e é dever do Auditor-Fiscal do Trabalho combater a sua prática.”.
Percebe-se dessa forma as similaridades existentes em ambas as legislações citadas, sobretudo, a reprodução dos termos contidos no tipo penal os quais traduzem-se em um rol orientador para o ordenamento jurídico em sua integralidade e, atrai por certo, as penalidades aplicáveis em todas as suas esferas.
Nesse aspecto, torna-se imperiosa a abordagem do atual cenário trabalhista no Brasil como nuance que figura como palco central para o entendimento daquilo que delimita o contexto de trabalho análogo ao escravo, bem como impôs no decorrer dos anos novos rumos fundamentais para a temática abordada no presente estudo, vez que, estritamente interligadas.
1.2 Evolução dos meios de trabalho no Brasil
Sabe-se que os meios de trabalho e as relações trabalhistas não se encontram dissociados da sociedade, bem como do seu desenvolvimento, razão pela qual é certo afirmar que a globalização, por certo, ocasiona mudanças a curto, médio e longo prazo na relação laboral que, são diretamente impactadas pelo sistema capitalista o qual atualmente estamos inseridos, preocupação expressada por Carlos Henrique Bezerra Leite (LEITE, 2022, p. 670):
Não há negar que o principal efeito da globalização econômica, pelo menos no que diz respeito à ocorrência do fenômeno nos países periféricos ou semiperiféricos, repousa na especulação em torno da possibilidade de flexibilização in pejus dos direitos sociais, conquistados paulatinamente pelos trabalhadores ao longo dos últimos cem anos. (LEITE, 2022, p. 670)
Isso porque, a escravidão e as suas analogias constituem verdadeira meio de privação da liberdade do indivíduo que, ostenta direitos inerentes a sua existência, sendo sujeito livre para escolher aquilo que lhe for pertinente, consoante exposto no tópico anterior.
Todavia, é de conhecimento notório que, a evolução da legislação nesse aspecto, bem como as variadas formas de trabalho advindas da modernidade foram incapazes de extirpar os meios de trabalho – já existentes - fundada em servidão, condições insalubres e mão de obra barata.
Diversamente disso, o que se observa nos tempos atuais é a escravidão velada, aquela fundada no silêncio e receptora de termos que se aproximam ao trabalho desumano, todavia, distanciam-se daqueles elencados no tipo penal correspondentes, atraindo, a persistência de trabalhadores que laboram em condições análogas a de escravo próximo e longe dos centros urbanos, como bem expõe Luciano Martinez (MARTINEZ, 2019, p.152):
Respondendo, então, à indagação, pode-se dizer que a escravidão no Brasil não é mais visível no seu sentido histórico, mas, sim, em uma perspectiva contemporânea. A escravidão da atualidade, que existe e que incomoda, é fruto da fragilidade de alguns trabalhadores (normalmente rurais, domésticos ou estrangeiros irregularmente ingressos) que, em busca da satisfação de suas necessidades essenciais, são levados a extrapolar, mesmo contra as suas vontades, os limites de suas próprias dignidades. (MARTINEZ, 2019, p.152)
Dessa forma, percebe-se que a atual escravidão hospedada na sociedade brasileira encontra amparo nas pessoas menos favorecidas, seja sob o aspecto de renda, raça, cor ou etnia, os quais compreendem acentuados aspectos para a durabilidade do trabalho desprovido de condições mínimas mesmo com o avanço da sociedade.
1.3 Fatores que contribuem para a persistência do trabalho escravo e análogo na modernidade
Conforme mencionado alhures, mesmo decorrido mais de um século da abolição da escravatura no Brasil, a coletividade ainda convive com o drama do trabalho pautado na servidão e exploração.
Nesse aspecto, fatores como a pobreza, pouco ou nenhum nível de instrução, inexistência de postos de trabalho nas localidades distantes das grandes capitais, bem como a falta de fiscalização, acompanhada por vezes de ameaça, representam elementos basilares para a persistência do trabalho análogo a escravidão.
Isso porque, sabe-se que não se trata de uma problemática fundada tão somente em um único ponto de difícil erradicação, mas, de contextos que por vezes se unem em uma mesma situação, sendo certo afirmar que representam de um lado a causa e sob outro enfoque, a consequência, razão pela qual estão interligados.
Prova disso, são as situações não raras identificadas em grandes propriedades rurais, as quais abrigam como trabalhadores, pessoas muitas vezes advindas de outra localidade, movidas pelo desejo e esperança de um futuro melhor, pautado em melhores remunerações, oportunidades para cônjuge e filhos e a promessa de uma vida diversa daquela já conhecida, todavia, o desenrolar do cenário não difere daquele já noticiado e amplamente conhecido.
Ciente dessa realidade e com vistas a garantir os direitos esculpidos na Constituição Federal de 1988, originou a Emenda Constitucional nº 81, promulgada em 05 de junho de 2014, a qual concedeu nova alteração ao texto expresso no art. 243, a partir do qual tornou-se possível, do ponto de vista jurídico, o confisco de propriedade destinada ao trabalho escravo, pelo que se demonstra:
Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.
A pobreza, continua sendo fator determinante para a perpetuação desse mal que assola o povo. Acompanhada da dificuldade em frequentar o ensino básico e superior, bem como se capacitar para ingressar no mercado de trabalho, por vezes os indivíduos menos favorecidos se encontram no vão marcado pelo desemprego e a ausência de expectativas, o que os torna alvos fáceis para a prestação de atividade laboral pautada na ilegalidade e na insegurança, vez que, as ofertas de trabalho e bons salários, expostas a frente das condições degradantes, representam a única perspectiva passível de pensamento.
2.A legislação como marco temporal para estudo da temática
2.1. Legislação
Traçado o panorama central do Brasil contemporâneo, não se pode perder de vista o avanço da legislação no respectivo assunto.
Nesse sentido, surge a Consolidação das Leis Trabalhistas, em 1942, conjunto de normas que perpassa a sua data de criação e, adquire ao longo da história os cenários e espécies de trabalho construídos pela coletividade e institui direitos e deveres basilares, antes desconhecidos, violados e omitidos.
No entanto, é bem verdade que, apesar de representar um limítrofe entre as concepções do trabalho antes e após a instituição do regramento trabalhista próprio, observa-se ao longo da história que tal circunstância, por si só, foi incapaz de instituir um modelo de atividade laboral alheio a condições análogas à escravidão, sendo necessário, ainda, o amparo de outras variadas fontes.
Acerca disso, colhe-se a adesão do Brasil e outros 192 (cento e noventa e dois) países a Declaração de Direitos Humanos (DUDH), proclamada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 que, diante do cenário mundial, trouxe em seu bojo, especificamente no art. 4º, a necessidade de coibir as práticas aqui em análise, ditando que “ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos”.
O que se segue a partir de então representa não apenas a preocupação do legislador pátrio em coibir as práticas que acarretam o trabalho análogo a escravidão, mas, a inevitabilidade de normas aptas a tratar a problemática tal como se mostra na contemporaneidade.
E é nessa ordem de ideias que, situa-se a Carta Magna. Promulgada nos idos de 1988, a Constituição Cidadã, assim denominada, a qual consagrou o direito ao trabalho no rol daqueles sociais, inserindo-o no título que trata dos “Direitos e Garantias Fundamentais”, senão vejamos o texto expresso:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Parágrafo único. Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária.
Nesse aspecto, percebe-se que a CR/88 representa um marco a ser celebrado em seus inúmeros aspectos, sobretudo no que concerne a preocupação do legislador em garantir ao indivíduo enquanto sujeito na ordem social, uma fonte de renda oriunda da atividade laboral firmada em posição elevada da dignidade da pessoa humana e dos desdobramentos dela advindos, consoante explica Carlos Henrique Bezerra Leite (LEITE, 2022, p. 63):
O direito ao trabalho, além de direito humano, é também direito fundamental, mormente em nosso sistema jurídico, porquanto positivado na Constituição Federal, sendo, portanto, tutelado pelo direito constitucional, ora como princípio (e valor) fundamental do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, II, III e IV); ora como direito social (CF, arts. 6º e 7º); ora como valor fundante da ordem econômica, que tem por finalidade assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado, dentre outros, o princípio da busca do pleno emprego (CF, art. 170, VIII). (LEITE, 2022, p. 63)
No mesmo sentido, destaca-se a influência do texto constitucional nos demais ramos do direito, o qual atrai por certo um posicionamento principiológico em observância as normas do texto maior, garantindo ao trabalhador maior proteção e segurança jurídica em todas as esferas do ordenamento jurídico, consoante ensina Mauricio Godinho Delgado (DELGADO, 2019, p. 145):
Ao lado dos preceitos democratizantes acima enunciados, a Constituição de 1988 produziu um clarão renovador na cultura jurídica brasileira, permitindo despontar, no estuário normativo básico do País, a visão coletiva dos problemas, em anteposição à visão individualista preponderante, oriunda do velho Direito Civil. Essa nova perspectiva se embebe de conceitos e perspectivas próprias ao Direito do Trabalho, em especial a noção de ser coletivo (e de fatos/atos coletivos), em contraponto à clássica noção de ser individual (e fatos/atos individuais), dominante no estuário civilista brasileiro. Ao ampliar e aprofundar o status constitucional do Direito do Trabalho, mediante o conceito de Estado Democrático de Direito, de direitos individuais e sociais fundamentais, além de ter estruturado importante rol de princípios constitucionais do trabalho, o Texto Máximo de 1988 praticamente impôs ao restante do universo jurídico uma influência e inspiração justrabalhistas até então desconhecidas na história do País. (DELGADO, 2019, p. 145)
Igualmente, a Carta Maior dedicou, ainda, em seu bojo o art. 7º e os 34 (trinta e quatro) incisos que o integra a premência de instituir os direitos garantidos a todos os trabalhadores, independentemente da zona de prestação da atividade laboral.
Ato contínuo, em uma tendência constitucionalista e principiológica, curial salientar os enfoques vigentes no atual Código Penal por meio do art. 149, o qual não apenas prevê a conduta de reduzir o outro a condição análoga à de escravo como uma conduta criminosa, como prevê as penas aplicáveis a espécie, introduzindo na sistemática jurídica o conceito outrora exposto.
Ressalte-se, ainda, a portaria nº1293/2017, por meio da qual o Ministério do Trabalho e Emprego tornou ainda mais cristalino os conceitos contidos no art. 149 do Código Penal, ao estabelecer conceitos certos e delimitados, facilitando a compreensão linguística de todas as comunidades jurídicas.
Desta feita, é bem verdade que a existência de regramentos os quais visam o aniquilamento das condições ensejadoras do trabalho análogo à escravidão, embora represente um verdadeiro e incomparável avanço na problemática, não representa por, si só, soluções efetivas e passíveis de desenraizar o imbróglio da sociedade, seja por raízes históricas e culturais ou pela ausência de subsídios ajustáveis, tais como restou evidenciada na Lei Complementar 150 de 2015, razão pela qual o presente estudo mostra-se não apenas imprescindível, como vultoso, na medida em que tratar-se-á dos fatos pretéritos e atuais a luz dos preceitos pertinentes.
No âmbito internacional, o cenário não difere quanto a preocupação dos órgãos internacionais em garantir a coletividade condições laborais cada vez mais distantes de uma conjuntura pautada em condições degradantes e cometidas de situações aviltantes.
Nesse contexto, destaca-se a convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho aprovada na 14ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho (Genebra — 1930).
Igualmente, em consonância, localiza-se a convenção nº105 da OIT, ratificada pelo Brasil em 1966, a qual versa sobre a abolição do trabalho forçado, ao lado da convenção das Nações Unidas sobre escravatura data de 1926.
Importante ressaltar, ainda, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – amplamente conhecido como Pacto de São Jose da Costa Rica, a qual remonta ao ano de 1969 e já em seu art. 6º expressa a preocupação e necessidade em erradicar as diversas formas de trabalhos similares a escravidão, senão vejamos:
Artigo 6º - Proibição da escravidão e da servidão 1. Ninguém poderá ser submetido a escravidão ou servidão e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas formas. 2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa de liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de proibir o cumprimento da dita pena, imposta por um juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade, nem a capacidade física e intelectual do recluso.
Dessa forma, percebe-se que o Brasil, ao lado de outros países, comprometeu-se ao longo dos anos, a adotar medidas com vistas a extirpar as condições degradantes de trabalho, em observância as normas ratificadas, restando evidente que, se trata de problemática a qual requer soluções práticas em nível nacional e internacional, mesmo que se trate de prática passível de criminalização e condenação, consoante percebe-se do caso concreto examinado no tópico seguinte.
2.2. Estudo do Recurso Especial Nº 1.843.150 – PA
Até o presente momento, muito se tem abordado no que concerne às raízes históricas do trabalho degradante, as causas que contribuem para a permanência desse cenário na contemporaneidade, bem como a prudência com o que o tema é recepcionado, através de normas, tratados e convenções os quais possuem eficácia em âmbito nacional e internacional, consoante exposto alhures.
Assim, feito esse introito e traçado o panorama geral do trabalho análogo a escravidão, faz-se mister ilustrar a aplicabilidade da norma pelo Poder Judiciário, de modo a expor aquele que acompanha este estudo, de qual modo se dá a concretude da conduta tipificada no art. 149 do Código Penal.
Nesse sentido, o Recurso Especial Nº 1.843.150 – PA, sob a relatoria do ministro Nefi Cordeiro cumpre bem o seu papel.
Isso porque, o referido recurso versa sobre 06 (seis) trabalhadores mantidos sob condição análoga a de escravo em propriedade rural destinada a criação de bovinos, localizada no município de Paragominas-PA.
No relatório final de fiscalização, concernente ao interregno compreendido entre 13/03/2006 a 18/03/2006, restou apurada a inexistência de condições apropriadas a sobrevivência digna, das quais ressalta-se a ausência de fornecimento de água potável; condições de conforto e higiene, vez que sequer havia moradia adequada e local para refeições bem como para armazenamento de alimentos. Ainda, constatou-se a falta de banheiros e serviços de saneamento básico.
Diante de tais conclusões, houve o empregador fora condenado pelo magistrado primevo nas penas impostas pelo art. 149 do CP, o que fora reformado pela instância revisora, atraindo por consequência a interposição do Recurso Especial pelo Ministério Público Federal.
Em sede de julgamento, a sexta turma do Superior Tribunal de Justiça acolheu o recurso e determinou o restabelecimento da sentença que condenou o empregador, ante a cristalina prática das condutas descritas no tipo penal, razão pela qual torna-se imprescindível trazer à baila a fundamentação adotada, pelo que se demonstra:
Na espécie, consoante se verifica dos autos, o Tribunal de origem houve por bem dar provimento ao recurso de apelação defensivo, absolvendo o recorrido do delito do art. 149 do CP, porquanto ausente a restrição de saída dos trabalhadores por dívidas contraídas, tampouco a retenção no local de trabalho por vigilância ou apossamento dos documentos pessoais, muito embora devidamente fundamentada a condenação em 1º Grau pelo referido delito em razão da condições degradantes de trabalho e de habitação a que as vítimas eram submetidas, consubstanciadas, segundo constou do relatório de fiscalização, no não fornecimento de água potável, permitindo que seus obreiros consumissem água suja e fétida, de qualidade e origem duvidosa, procedente de um córrego às proximidades do barroco e imprópria para o consumo humano; no não oferecimento, aos trabalhadores, de serviços de privada por meio de fossas adequadas ou outro processo que não afete a saúde pública, permitindo que os mesmos efetuassem suas necessidades fisiológicas no meio da mata, ao relento, sem qualquer preocupação com a higiene ou a privacidade, no alojamento em barracos cobertos de palha e lona, sustentados por frágeis caibros de madeira branca, no meio da mata, sem qualquer proteção lateral, [...] e expostos aos mais variados riscos que a presença de animais peçonhentos oferecem revelam o profundo desprezo que empregador tem pelo ordenamento jurídico laboral e pelo próprio ser humano (fls. 285-286).
À vista disso, percebe-se que mesmo ante a existência de instrumentos normativos os quais objetivam garantir ao indivíduo condições mínimas de trabalho, nas quais se inserem direitos básico e fundamentais, o contexto existente ainda insiste em se afastar de tais premissas e retroagir a barbárie oferecendo ao ser humano o pior que se possa esperar, mesmo que se trate de trabalhador o qual busca tão somente meios de prover a sua subsistência através da atividade laboral.
Assim, resta patente que se trata de esforço conjunto e necessário de todos os poderes, consoante evidenciado nas legislações pertinentes, bem como nesse tópico pelo Judiciário, razão pela qual, impõe-se necessário o estudo da atuação do Poder Executivo frente a tal questão, conforme veremos no próximo ponto.
3.Ações que visam combater a problemática
3.1. Ações governamentais
Pois bem. Perpassadas as variadas nuances que compõe o cenário do trabalho análogo a escravidão no Brasil moderno, o estudo das medidas adotadas pelo Estado com vistas a erradicar a problemática constitui tema o qual faz-se fundamental a sua abordagem, vez que, consoante tratado no tópico 1.3 deste estudo, não se trata de uma problemática fundada tão somente em um único ponto, mas, de contextos que por vezes se unem em uma mesma situação.
Inteirado dessa realidade, destaca-se a atuação do Ministério Publico do Trabalho e do Emprego – MTE, responsável por fiscalizar e regulamentar as relações trabalhistas. Além disso, percebe-se o seu desmembramento em órgãos promoventes de projetos e atividades dos quais destaca-se o Cadastro de empregadores infratores - Lista Suja.
Decorrente das Portarias nºs 1.234/2003/MTE e 540/2004/ MTE o referido cadastro visa coagir os empregadores que incorrem na manutenção de trabalhadores em situações degradantes a adotar nova postura, razão pela qual são monitorados por dois anos consecutivos.
Igualmente, encontra-se no rol de atuantes nessa problemática o Ministério Público do Trabalho – MPT, o qual visa:
Fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista quando houver interesse público, procurando regularizar e mediar as relações entre empregados e empregadores. Cabe ao MPT promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados direitos sociais constitucionalmente garantidos aos trabalhadores. Também pode manifestar-se em qualquer fase do processo trabalhista, quando entender existente interesse público que justifique. O MPT pode ser árbitro ou mediador em dissídios coletivos e pode fiscalizar o direito de greve nas atividades essenciais.
Dessa forma, possui amplo projeto estratégico no âmbito do trabalho escarvo, promovendo ações que visam o combate a tal prática, bem como a proteção às vítimas resgatadas de tal contexto, vez que, dados extraídos do cruzamento de informações relativos ao ano de 2018 esclareceram que mais de 600 (seiscentos) trabalhadores retornaram a mesma condição após o resgate, contexto que esbarra exatamente na inexistência de amparo após a saída do trabalho degradante.
Nesse sentido, resta evidente a fundamental importância do desenvolvimento de ações com fincas a atender os indivíduos ainda mergulhados em tal contexto, sem, contudo, deixar de prestar auxílio aqueles que mesmo retirados de tal meio ostentam as mesmas condições que o levaram a tal conjuntura, como forma de erradicar de fato a problemática instalada nas raízes da formação na sociedade.
E é nesse patamar que se insere o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil.
3.2. Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil
Trata-se de um conjunto de medidas direcionadas aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, Ministério Público, entidades da sociedade civil brasileira e classe empresarial, publicado, inicialmente, nos idos de 2003, consoante explica Luciano Martinez (MARTINEZ, 2019, p.154):
Por ser o trabalho escravo um tema que produz verdadeira repulsa social e por conta da consciência de que a sua eliminação constitui condição básica para o Estado Democrático de Direito, foi lançado em 2003 pelo governo federal o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, que apresentou medidas a serem cumpridas pelos diversos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, Ministério Público e entidades da sociedade civil brasileira. (MARTINEZ, 2019, p.154):
A partir disso e, reunidas os principais destaques do primeiro plano, a Conatrae – Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, produziu o 2º Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, aprimorando as medidas aplicadas na primeira fase do projeto, bem como, introduzindo novas ideias ao cenário já multifacetado, de modo que ao final foram apresentadas 65 (sessenta e cinco) ações no referido plano.
Nesse aspecto, percebe-se que as ações de combate ao trabalho escravo e seus desmembramentos não constitui tarefa fácil, seja do ponto de vista legislativo, executivo ou judiciário, ante as particularidades que acobertam cada esfera, todavia, faz-se mister pontuar o grande avanço consistente na abordagem do referido tema em suas inúmeras nuances.
3.3. Organização Internacional do Trabalho
Decorrente do Tratado de Versailles a Organização Internacional do Trabalho – OIT, órgão das Nações Unidas, visa a proteção e promoção das relações trabalhistas pautadas nos direitos humanos e nos seus desdobramentos.
Nesse sentido, ensina Carlos Henrique Bezerra Leite (LEITE, 2022, p. 1.636):
O reconhecimento e o respeito ao papel desempenhado pela Organização Internacional do Trabalho radicam do seu sistema normativo. Sua originalidade emana da busca constante de um consenso entre as autoridades públicas e os principais interessados, é dizer, os empregadores e os trabalhadores. Todo o procedimento relativo às normas internacionais do trabalho, desde sua elaboração até a supervisão de sua aplicação e promoção, inspira-se no tripartismo, que constitui um método pacífico para a regulação das relações laborais mediante plena participação dos atores sociais nas decisões que lhes digam respeito. (LEITE, 2022, p. 1.636)
No que tange ao papel por ela exercido, o tópico 2.2 esclareceu bem a temática, sobretudo no que concerne as convenções das quais o Brasil é signatário e, representam não só um progresso acerca das questões atinentes a problemática tratada, mas, também, uma ferramenta de suma importância na luta travada contra o trabalho análogo a escravidão.
Considerações Finais
Por todo o exposto, colhe-se que a existência do trabalho escravo remonta a antiguidade, contexto o qual não diverge da formação da sociedade brasileira, fundada em raízes escravocratas e pautada na violação das garantias do indivíduo enquanto pessoa humana, detentora de direitos na ordem social.
Todavia, restou demonstrado que o avanço da modernidade permitiu trouxe consigo a preocupação das autoridades competentes em abordar o tema consoante a sua importância exige, incluindo na Carta Maior o trabalho como direito social, bem como destinando inúmeros dispositivos a proteção do trabalhador, o que por certo, refletiu na necessidade de punir veemente as condutas representativas a dignidade da pessoa humana.
A partir disso, surge o art. 149 da CR/88, com sua redação pautada no conceito de trabalho análogo a de escravo, com referência expressa ao trabalho forçado, jornada exaustiva, bem como condições degradantes, suprindo a lacuna antes existente quanto a tal questão.
Nesse sentido, é inegável o avanço advindo de tal abordagem e a sua aplicação nas mais variadas situações, o que não representa, todavia, a erradicação de tal contexto, sobretudo, em razão da persistência das condições ensejadoras da problemática, as quais demandam atenção dos órgãos e entidades responsáveis, enquanto agentes atuantes no combate a tal questão.
Assim, traçado o panorama geral percebe-se que o Brasil avançou e tem atuado fortemente na repressão quanto a tal questão, incluindo ações que atingem diretamente os empregadores praticantes de tais barbaridades o que, sem dúvidas, demonstra a preocupação em âmbito nacional e internacional de extirpar por completo o problema tratado no presente estudo como forma de aplicação e concretude da garantia dos direitos garantidos a todos os cidadãos sem qualquer distinção.
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graduanda em Direito pelo Centro Universitário UMA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, Amanda Suellen de. Trabalho Análogo à Escravidão: Quais os desafios e políticas de combate a essa prática no Brasil contemporâneo? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 nov 2023, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63731/trabalho-anlogo-escravido-quais-os-desafios-e-polticas-de-combate-a-essa-prtica-no-brasil-contemporneo. Acesso em: 24 dez 2024.
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