IAN MATOZO ESPECIATO [1]
(coautor)
RESUMO: A prática da eutanásia consiste em antecipar a morte de um indivíduo acometido por uma doença terminal, sem qualquer esperança de cura, com o propósito de aliviar seu sofrimento. Sendo assim o presente artigo tem por objetivo analisar os questionamentos a respeito da prática da eutanásia, bem como todas as suas classificações. Ademais, o estudo a respeito do tema tem alta relevância no âmbito jurídico, pois causa controvérsias a respeito de violar ou não os princípios e garantias constitucionais como a dignidade da pessoa humana, a liberdade de escolha, o direito à vida e a autonomia. Para a concretização do presente, foram utilizadas revisões bibliográficas em diferentes sites e obras a respeito do tema. No Brasil, a eutanásia não é legalizada pelo nosso ordenamento, sendo considerada um crime. Será abordado também no estudo sobre as divergências referentes ao conceito de eutanásia, apresentando seus conceitos históricos, além de demonstrar a sua relação com os direitos fundamentais da pessoa humana.
Palavras-chave: Eutanásia. Doença Terminal. Princípios. Garantias constitucionais.
ABSTRACT: The practice of euthanasia consists of anticipating the death of an individual affected by a terminal illness, without any hope of cure, with the purpose of alleviating their suffering. Therefore, this article aims to analyze the questions regarding the practice of euthanasia, as well as all its classifications. In addition, the study on the subject is highly relevant in the legal field, as it causes controversy about whether or not it violates constitutional principles and guarantees such as human dignity, freedom of choice, the right to life and autonomy. To achieve this, bibliographical reviews were used on different websites and works on the topic. In Brazil, euthanasia is not legalized by our legal system, being considered a crime. It will also be addressed in the study on the differences regarding the concept of euthanasia, presenting its historical concepts, in addition to demonstrating its relationship with the fundamental rights of the person.
Keywords: Euthanasia. Terminal illness. Principles. Constitutional guarantees.
1.INTRODUÇÃO
A prática da eutanásia ou morte assistida é a conduta em que um indivíduo, em fase terminal ou portador de uma doença incurável que causa sofrimento constante, opta por encerrar a sua vida de maneira rápida e indolor. É um tema que suscita intensos debates, uma vez que versa sobre o bem mais precioso para o ser humano, ou seja, a preservação da vida, em contraposição aos princípios constitucionais como autonomia e dignidade da pessoa humana.
O impasse entre optar por uma morte digna ou viver em condições desumanas faz com que esse assunto se torne ainda mais polêmico, fazendo-se necessário cada vez mais que o ordenamento jurídico seja aprimorado a fim de contemplar juridicamente essa questão.
Existem diversas interpretações a respeito da eutanásia, principalmente no âmbito do Direito Penal, sendo comum se deparar com situações controversas sobre a atitude que deve ser adotada. Isso acontece quando os limites se referem à autonomia de vontade do paciente, que escolhe pôr fim a sua vida, para evitar ou aliviar suas dores e sofrimentos extremos. Alguns entendimentos apontam que por meio da eutanásia, o paciente terminal está sendo amparado pelos princípios da autonomia humana, sendo plenamente capaz de fazer a escolha entre seu destino, e enfim ter uma morte rápida, livre de qualquer sofrimento.
O Direito Penal tem o objetivo de punir as formas de heterolesão do bem jurídico vida, salvo em casos em que há uma justificante do comportamento, como a legítima defesa, a torná-lo lícito. Por isso, existem diversas controvérsias sobre o assunto, envolvendo conflitos de interesses e valores, não se limitando somente ao aspecto jurídico.
A eutanásia gera diversos debates entre o direito à vida e o direito à liberdade de escolha, em que a preservação da vida entra em conflito com princípios constitucionais. Desse modo, o foco deste artigo é compreender e esclarecer as divergências relacionadas ao tema, e analisar o dilema dos pacientes sobre decidir morrer com autonomia e dignidade ou continuar a viver, mesmo em condições desumanas.
Ademais, no presente apresentam-se o conceito e classificações da eutanásia, sendo elas: voluntária, não voluntária, involuntária, ativa e passiva. Em seguida, tratou-se da relação entre a eutanásia e a bioética, abordando discussões éticas e sociais sobre a sua prática, bem como foi abrangido no mesmo capítulo a respeito da legislação sobre a eutanásia. Por fim, no último capítulo foi mencionado a respeito dos impactos psicológicos causados pela prática da eutanásia bem como os cuidados paliativos utilizados em pacientes que passam por doenças terminais, para que perpassem esse itinerário de forma menos dolorosa e mais digna.
2.CONCEITO E CLASSIFICAÇÕES DA EUTANÁSIA
Originada das palavras gregas “eu” (bom) e “thanatos” (morte), a eutanásia refere-se ao ato deliberado de encerrar a vida de uma pessoa que sofre de uma doença incurável ou em estado terminal, com o objetivo de aliviar seu sofrimento (Prado e Bittencourt, 1995).
O conceito de eutanásia passou por diversas mudanças no decorrer dos anos. De acordo com Horta (1999, p. 27-33), na antiguidade os médicos faziam com que a morte acontecesse de forma mais rápida, utilizando práticas culturais de determinados povos arcaicos.
Na Grécia Antiga, era vista como uma morte honrosa, especialmente para aqueles que enfrentavam doenças incuráveis. Por exemplo, os espartanos praticavam a eutanásia em bebês que eram considerados fracos demais para sobreviver (Sá e Naves, 2009).
No entanto, na Idade Média, a Igreja Católica possou a considerar a eutanásia uma heresia, uma violação do quinto mandamento do decálogo, que exortava “não matarás”. Apesar da condenação da Igreja, a prática continuou em segredo, principalmente em casos de dor insuportável e doenças incuráveis (Magalhães, 2014).
Em 1605, a eutanásia passou a fazer parte da medicina, quando o escritor Francis Bacon atribuiu a ela o sentido de “boa morte”. Passou-se a entender, então, que “o ofício médico não só restaura a saúde, mas também mitiga a dor e os sofrimentos” (Marques, 2018, p. 116).
Desde então, a eutanásia ganhou um novo significado, e foi vista como forma de aliviar o sofrimento das pessoas com doenças terminais. Atualmente, a palavra eutanásia possui várias concepções que a diferenciam de outras práticas parecidas, como por exemplo a distanásia.
No entendimento de Dias (2012, p. 148), a eutanásia pode ser entendida como:
[...] o comportamento médico que antecipa ou não adia a morte de uma pessoa, por motivos humanitários, mediante requerimento expresso ou por vontade presumida – mas sempre em atenção aos interesses fundamentais – daquele que sofre uma enfermidade terminal incurável, lesão ou invalidez irreversível, que lhe cause sofrimentos insuportáveis, de ponto de vista físico ou moral, considerando sua própria noção de dignidade. (DIAS, 2012, p. 148).
A prática da eutanásia também pode ser vista como uma forma de realizar as últimas vontades do indivíduo enfermo, sendo este seu pedido final, para pôr fim a todo o sofrimento, ainda mais quando já não existem mais chances de uma cura.
Destarte, a morte ocorrida por meio da eutanásia, de certo modo, é uma morte misericordiosa, pois acata as vontades do paciente que sofre de doença terminal, sem chances de cura, para evitar sofrimentos intensos, fazendo com que ele escolha o processo de encerramento da vida, conforme a sua concepção e de forma digna.
Com o avanço da medicina moderna, a discussão sobre a eutanásia tornou-se ainda mais intensa. No final do século XIX e início do século XX, à medida que a medicina progredia e os cuidados paliativos ainda não estavam tão desenvolvidos, o debate em torno da eutanásia se intensificou. Desde então, essa questão tem sido amplamente discutida em todo o mundo, levantando diversas perspectivas e questões éticas, morais e legais (Sá e Naves, 2009).
É importante diferenciar a eutanásia do suicídio assistido, em que uma pessoa que deseja morrer recebe ajuda de outra pessoa, geralmente um profissional de saúde, para cometer o ato suicida. No caso da eutanásia, o pedido é feito para que alguém execute a ação que levará à morte, enquanto no suicídio assistido é o próprio paciente que realiza o ato, embora precise de ajuda para concretizá-lo.
Quanto às classificações da eutanásia, podemos identificar três tipos principais, de acordo com Kovács (2003): a voluntária, a não voluntária e a involuntária. Na primeira o paciente expressa claramente o desejo de ter sua vida encerrada devido a uma condição incurável ou sofrimento insuportável. Nesse caso, a ação é tomada com o consentimento do paciente. Já a segunda acontece quando o paciente é incapaz de expressar seu consentimento, seja devido a condições mentais, coma ou incapacidade de se comunicar. Nessa última hipótese, outra pessoa, geralmente um representante legal ou médico, toma a decisão em seu nome. Quanto à terceira, ela ocorre quando a morte é provocada sem o consentimento do paciente. Essa forma de eutanásia é altamente controversa e considerada inaceitável do ponto de vista ético e legal, mesmo que a condição do paciente seja considerada incurável.
Além disso, conforme entendimento de Serrano (2021, p. 196), a eutanásia pode ser classificada de acordo com a ação tomada. A eutanásia ativa, envolve a administração de uma substância letal para provocar a morte do paciente, geralmente realizada por um médico ou profissional de saúde. Por outro lado, a eutanásia passiva envolve a retirada ou não administração de tratamentos médicos ou medidas de suporte que mantêm o paciente vivo, permitindo que a morte ocorra de forma natural.
Conforme entendimento de Sá e Moureira (2010, p. 87), a eutanásia é envolvida por dois componentes: a intenção e o efeito da ação. A intenção de realizar a eutanásia pode gerar tanto uma ação (eutanásia ativa), quanto uma omissão (eutanásia passiva ou ortanásia).
A diferença entre a eutanásia ativa e passiva, segundo entendimento de Dias (2012, p. 149), pode ser lecionada da seguinte maneira: “[…] a eutanásia ativa se caracteriza pela adoção de condutas médicas comissivas tendentes a antecipar a morte, enquanto a eutanásia passiva ocorre quando se omitem ou suspendem os tratamentos médicos com vistas a não adiar a morte.”. A eutanásia ativa é caracterizada pela realização de atos que ajudam o paciente a morrer, com o objetivo de aliviar ou cessar com o seu sofrimento. Já a eutanásia passiva consiste na abstenção deliberada da prestação de tratamentos médicos que poderiam prolongar a vida do paciente e cuja ausência antecipa a morte.
Existe, ainda, a mistanásia, que não se trata de uma modalidade ou classificação da eutanásia, pois faz com que a morte aconteça antes e fora de seu tempo, de forma mísera e cruel. A esse respeito, leciona Martin (1998, p. 171-172) que a forma mais popular de mistanásia se trata da omissão de socorro estrutural, que abrange milhares de doentes durante toda uma vida e não apenas nas fases avançadas e terminais. É considerada como a omissão do Estado a respeito de serviços de atendimento médico, saneamento básico, alimentação adequada para o povo entre outros.
Em suma, a eutanásia é um tema de grande complexidade e alvo de controvérsia, envolvendo a ação de encerrar deliberadamente a vida de uma pessoa que sofre de uma doença incurável ou em estado terminal. Suas diferentes definições e classificações, como voluntária, não voluntária, involuntária ativa e passiva, refletem a diversidade de pontos de vista e os desafios éticos e legais que permeiam essa questão. O debate em torno da eutanásia continua a crescer e evoluir, buscando encontrar um equilíbrio entre o respeito à vida e a compaixão diante do sofrimento humano.
3. EUTANÁSIA: ASPECTOS BIOÉTICOS E JURÍDICOS
3.1 Eutanásia e a bioética
A ética, assim como as questões religiosas e sociais, contende sobre o assunto eutanásia, tornando ainda mais complexo seus conceitos e limitações. Nessa linha de raciocínio, Chauí (2005, p. 310) ilustra:
Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto é, valores concernentes ao bem e ao mal, ao permitido e ao proibido e à conduta correta e à incorreta, válidos para todos os seus membros. Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferenças muito profundas de castas ou de classes podem até mesmo possuir várias morais, cada uma delas referida aos valores de uma casta ou de uma classe social.
A bioética é um ramo ético que trata de questões relacionadas à proteção da vida e, mais especificamente, ao uso apropriado do conhecimento e das práticas científicas em defesa dos interesses e da aprendizagem dos seres humanos. A ética envolve uma reflexão sobre a origem, a estrutura e as manifestações dos valores, princípios e normas que orientam a maneira como cada indivíduo deve viver a vida e se relacionar com os outros.
Tal como o nascimento, a morte também faz parte do ciclo da vida das pessoas, ou seja, é algo natural de acordo com o entendimento biológico. No entanto, as pessoas acabam atribuindo novos significados às coisas, e por essa razão, o significado da morte varia ao longo do tempo e de acordo com cada cultura, sendo influenciada pelas crenças e atitudes morais.
No Ocidente, a morte significa, de certa forma, fracasso e impotência. É encarada como algo que deve ser superado e, quando isso não ocorre, acaba gerando vergonha ou sensação de fracasso. Percebe-se que os significados atribuídos ao momento final da vida variam de acordo com o contexto histórico-cultural. Na Idade Média, verbi gratia, a morte era entendida como parte integrante da vida e era tratada com naturalidade pelas pessoas.
Na realidade brasileira, é por meio da vida que se concretiza o princípio da dignidade da pessoa humana, concebido pela Constituição Federal de 1988, sendo ela um direito intransferível. Com efeito, um dos objetivos da bioética é proteger e garantir os Direitos Humanos, a respeito disso Tosi (2005, p. 26) considera que:
Os direitos humanos também implicam algo mais do que a mera dimensão jurídica, por isso, é preciso que eles encontrem um respaldo na cultura, na história, na tradição, nos costumes de um povo e se tornem, de certa forma, parte do seu ethos coletivo, de sua identidade cultural e de seu modo de ser.
A bioética também cuida da conduta dos médicos e profissionais da área da saúde, bem como suas condutas e valores. Desse modo, uma das ideologias médicas é preservar a vida sem dor e sem sofrimento. Contudo, nos casos em que há chance de sobrevivência, é esperado que os profissionais médicos ajam conforme a ética, ou seja, dando prioridade a fazer com que o paciente não sofra.
Por envolver discussões amplas, para solucionais tais casos, a bioética utiliza princípios fundamentais, aplicados a cada situação de acordo com sua complexidade. São eles: beneficência e não maleficência; a autonomia; e justiça.
O princípio da beneficência leciona que o profissional de saúde deve agir conforme os interesses do paciente, proporcionando o seu bem. Já o princípio da não maleficência, preconiza que os médicos auxiliem ou não prejudiquem o paciente. Por sua vez, o mandamento da autonomia consiste na capacidade do paciente escolher de forma livre o destino de sua vida. No âmbito da bioética, a sua aplicação se potencializou com as novas tecnologias utilizadas na medicina, mas ainda não é utilizado no Brasil para a prática da eutanásia como acontece em alguns países como a Holanda e Espanha, por exemplo.
A seu turno, o princípio da justiça informa sobre a obrigatoriedade de garantir uma justa distribuição dos serviços de saúde. Trata-se do dever de promoção do Estado em relação à saúde. Relaciona-se à eutanásia na medida em que propicia a reflexão sobre a justes de manter vivo um indivíduo enfermo, em estado terminal, fazendo-o passar por todo o sofrimento quando o tratamento é inviável ou ineficaz, além de ser frequentemente financeiramente custoso para o paciente e para o Estado.
Dessa forma, este princípio deve trazer a garantia de que todo indivíduo tem acesso aos serviços médicos de forma igualitária, e os profissionais de saúde de acordo com a ética, devem tratar os pacientes de forma adequada e digna.
3.2 Aspectos jurídicos
Em se tratando da eutanásia, o Código Penal não a aponta de forma específica. No mais, o suicídio de forma assistida é mencionado no artigo 122, quando ocorre a indução, instigação ou auxílio para a prática do crime por algum indivíduo. (Carneiro, 2018)
Vários especialistas se concentram na compaixão e piedade que levam o indivíduo a praticar a eutanásia e provocar a morte, com o objetivo de enquadrá-la como homicídio privilegiado. Nesse contexto, o valor moral e social identificado é considerado relevante, permitindo a redução da pena.
De acordo com Especiato e Segatto (2013, n.p.):
A boa morte tem sido considerada o melhor exemplo de homicídio privilegiado, ou seja, aquele em que o autor do fato delituoso é movido por relevante valor social (o qual é aprovado pela moral prática, moral da coletividade) acarretando, assim, diminuição da pena de 1/6 a 1/3 (causa especial de diminuição de pena), ou seja, estando provado o móvel solidário do agente, o juiz tem de aplicar a diminuição presente no artigo 121, § 1º, Código Penal. Resta à crítica ao legislador penal pátrio, que além de não tratar a eutanásia em um parágrafo específico do artigo 121, foi omisso acerca dos critérios de incurabilidade para que se perfaça o homicídio privilegiado (eutanásico), tais como enfermidade terminal incurável, tetraplegia completa e coma crônico.
O Brasil, assim como ocorre em outros países, também dedica esforços ao estudo e à tentativa de tipificar a eutanásia em seu ordenamento. O Anteprojeto de reforma do Código Penal de 1984 previa a exclusão da ilicitude nos casos de eutanásia passiva, bem como a redução da pena do autor da eutanásia ativa em determinadas situações.
Outra tentativa de tipificar a eutanásia e nosso ordenamento jurídico, foi através do Projeto de Lei nº 125/1996, promovido pelo Senado, o qual intencionava autorizar a prática da eutanásia (morte sem dor em alguns casos específicos), no entanto não teve seguimento, sendo arquivado (Brasil, 1996).
Em 2012, o Senado promoveu outro Projeto de Lei (236/2012), trazendo o artigo 122 para o Código Penal, em seu texto se pode ler “Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave. Pena – Prisão de dois a quatro anos”. (Brasil, 2012).
Ainda, sobre o projeto de novo Código Penal, que incluiria a eutanásia, Especiato e Segatto explicam que ele:
[...] apresenta uma causa de exclusão de ilicitude para a ortotanásia, desde que sejam preenchidos alguns requisitos: a) previamente atestada por dois médicos, a morte iminente e inevitável, e b) desde que haja o consentimento pelo paciente, ou na sua impossibilidade, sua família – ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.
O projeto mais recente, foi criado em 2019, pelo deputado federal Alexandre Padilha, que apresentou o Projeto de Lei 352/2019, o qual dispunha sobre o consentimento informado e instruções prévias de vontade sobre tratamento de enfermidades em fase terminal de vida, no entanto ainda está em trâmite na Câmara dos Deputados (Brasil, 2019).
Ademais, em qualquer momento da vida, a dignidade da pessoa humana deve ser preservada. Contudo, em muitos casos, os pacientes que vivenciam o estado terminal sofrem com os métodos para tentar prolongar suas vidas, e com isso, surge, o questionamento de se a legislação deveria intervir nessa hipótese, na medida em que o indivíduo, quando mantido em condições artificiais de sobrevivência, não possui mais todas as faculdades para tomar decisões esclarecidas.
Com efeito, é obrigação do Estado proteger e respeitar o bem comum, e fazer com que todos os direitos fundamentais dos cidadãos sejam efetivamente cumpridos. Desse modo, o direito é utilizado como uma ferramenta para que essa obrigação seja de fato cumprida. Sendo assim, ter uma “morte digna”, de certo modo não fere os mencionados princípios, pois garante que o indivíduo tenha sua dignidade respeitada no momento de sua morte, além de respeitar o seu poder de escolha.
3.3 A experiência espanhola na regulamentação da eutanásia
A Espanha tem sido pioneira em muitas áreas ao longo de sua história, e recentemente, em 18 de março de 2021, decidiu trilhar o caminho da regulamentação da eutanásia, aprovando-a em lei específica. A decisão de legalizar a eutanásia representa um avanço significativo na defesa dos direitos individuais e da dignidade humana, bem como permitirá os médicos finalizar o sofrimento de pacientes com a autoadministração de medicações, disciplinando assim o suicídio assistido.
A legalização da eutanásia na Espanha reflete o respeito à autonomia dos indivíduos. Permite que pessoas maduras e conscientes decidam sobre o próprio destino, evitando prolongar o sofrimento em situações irreversíveis e insuportáveis. Isso coloca a decisão nas mãos do paciente, em vez de impor escolhas externas. Desse modo, o legislador espanhol pretendeu dar uma resposta legal, equilibrada e que garanta a demanda da sociedade.
O regulamento da eutanásia visa aliviar o sofrimento físico e emocional de pacientes terminais, proporcionando uma opção legal para aqueles que enfrentam dores insuportáveis, permitindo que passem por um processo de morte digna e tranquila, cercado por entes queridos. Sendo assim, a legalização e a regulamentação da eutanásia, conforme a discussão legislativa espanhola, é baseada na compatibilidade de princípios essenciais que estão na base dos direitos das pessoas, sendo assim consagrados na Constituição Espanhola. Tratam-se de direitos fundamentais à vida e à integridade física e moral, além da dignidade, liberdade e autonomia da vontade, também protegidas pela mencionada Constituição.
Ademais, essa regulamentação desafia a ética médica tradicional, que prioriza a preservação da vida a qualquer custo. Assim, reconhece que, em alguns casos, prolongar a vida pode ser cruel e inútil, enquanto a eutanásia oferece a possibilidade de uma despedida digna.
Como já mencionado, Espanha se juntou a um grupo crescente de países que regulamentaram a eutanásia, incluindo a Holanda, Bélgica e Canadá, indicando dessa forma, uma mudança global em direção a uma maior autonomia do paciente e uma abordagem mais compassiva para o final da vida. Embora a regulamentação seja um marco importante, a implementação bem-sucedida da eutanásia, requer treinamento adequado para profissionais de saúde, acesso a cuidados paliativos de qualidade e uma cultura que respeite as decisões individuais.
A lei espanhola é composta de alguns tópicos, sendo os principais: os requisitos para as pessoas solicitarem ajuda para morrer e as condições para seu exercício; a regulação desse procedimento de maneira isonômica; a criação de comissões especializadas; o apoio aos cidadãos e profissionais da medicina; e a alteração do Código Penal espanhol. Destarte, o constituinte espanhol foi taxativo quando ao procedimento médico a ser adotado, a exemplo disso têm-se o artigo 3º da Lei Orgânica de Regulamentação da Eutanásia (Ley Orgánica 3/2021), que prevê as definições técnicas, apresentadas da seguinte forma:
Art. 3º. [...] “Prestación de ayuda para morir”: acción derivada de proporcionar los medios necesarios a una persona que cumple los requisitos previstos en esta Ley y que ha manifestado su deseo de morir. Dicha prestación se puede producir en dos modalidades: 1.ª) La administración directa al paciente de una sustancia por parte del profesional sanitario competente. 2.ª) La prescripción o suministro al paciente por parte del profesional sanitario de una sustancia, de manera que esta se la pueda auto administrar, para causar su propia muerte.
(Espanha, 2021, n. p.).
Além disso, foram implementadas as seguintes modificações no Código Penal espanhol:
4. El que causare o cooperare activamente con actos necesarios y directos a la muerte de una persona que sufriera un padecimiento grave, crónico e imposibilitante o una enfermedad grave e incurable, con sufrimientos físicos o psíquicos constantes e insoportables, por la petición expresa, seria e inequívoca de esta, será castigado con la pena inferior en uno o dos grados a las señaladas en los apartados 2 y 3. 5. No obstante lo dispuesto en el apartado anterior, no incurrirá en responsabilidad penal quien causare o cooperare activamente a la muerte de otra persona cumpliendo lo establecido en la ley orgánica reguladora de la eutanasia. (Espanha, 2021, n. p.).
Introduziu-se, então, uma causa de diminuição de pena no artigo 143 da lei penal espanhola atenuando as sanções do suicídio assistido e da eutanásia que não seguirem os ditames da lei, mas que contarem com um pedido inequívoco do sujeito passivo que padeça de grave sofrimento, crônico e impossibilitante ou uma enfermidade grave e incurável, cujo sofrimento físico ou psíquico seja insuportável. Além disso, prevê uma causa excludente de ilicitude que afasta a responsabilidade penal daquele que praticar tais atos seguindo os ditames legais, o que traz maior segurança jurídica ao profissional que estiver envolvido nesse processo.
Com isso, a Espanha enfrentará desafios nessa jornada, mas sua decisão de legalizar a eutanásia é uma prova do compromisso com a dignidade e autonomia dos cidadãos. Em suma, a experiência espanhola na regulamentação da eutanásia representa um avanço significativo na direção da autonomia individual. Ao estabelecer um quadro legal cuidadosamente elaborado, o referido país se une a outros em busca de uma abordagem mais compassiva para o fim da vida, respeitando a dignidade e a vontade dos indivíduos.
4. IMPACTO PSICOLÓGICO E CUIDADOS PALIATIVOS
4.1 Impacto psicológico
Como já mencionado, a eutanásia é praticada para evitar sofrimentos futuros por indivíduos acometidos de doenças terminais. No entanto, tal prática levanta questionamentos éticos, morais e legais, que podem afetar a sociedade, além das demais pessoas envolvidas.
Do ponto de vista social, a eutanásia pode ter efeitos influentes no quesito social e nas relações interpessoais. A legalização ou proteção da eutanásia pode gerar divisões e debates no meio social, refletindo diferentes valores, crenças e visões de mundo. Grupos religiosos, filosóficos e médicos muitas vezes têm posicionamentos diferentes sobre a eutanásia, o que pode gerar alguns conflitos sociais.
Ademais, a eutanásia pode afetar também as relações familiares, pois decidir pelo fim da vida de um ente querido é uma decisão extremamente difícil e desafiadora emocionalmente. Isso pode acabar gerando conflitos familiares, especialmente quando há discordância entre os membros familiares em relação à escolha ou não da eutanásia.
Quanto ao âmbito psicológico, tantos os pacientes quanto seus familiares, que também enfrentam a possibilidade da realização da eutanásia, sofrem com as questões emocionais. O diagnóstico de uma doença grave e incurável já é por si um desafio para o equilíbrio emocional, e a perspectiva da eutanásia acrescenta ainda mais sentimentos de estresse, ansiedade e angústia. Lidar com a ideia de encerrar a própria vida ou a vida de um ente querido pode trazer sentimento de culpa e tristeza profunda.
Para os profissionais de saúde envolvidos na eutanásia, há também consequências psicológicas. Eles podem se deparar com dilemas éticos e emocionais ao participar do processo de auxiliar na morte de um paciente.
O psicólogo pode apontar possíveis lapsos na conduta emocional dos médicos, assim como dos pacientes que ainda estejam conscientes. Já os pacientes que estão inconscientes, o psicólogo faz uma avaliação da condição psicológica dos seus familiares e como eles poderão vir a lidar com o sofrimento.
4.2 Cuidados paliativos
Os cuidados paliativos são de grande importância para um paciente. Defender a autonomia para morrer não significa dizer que todas as pessoas devam acatar a prática da eutanásia ou o suicídio assistido. O que se defende é o direito de escolha, e para os indivíduos que optam por viver, os cuidados paliativos são essenciais, para que assim possam garantir que a vida do paciente seja finalizada da melhor forma, e que o processo seja menos árduo tanto para o paciente quando para seus entes queridos.
Arantes (2019, p. 42-43) em relação aos cuidados paliativos, disserta:
Ter uma morte natural pressupõe a existência de uma doença que segue seu curso natural de evolução, independentemente dos tratamentos que possam ser oferecidos, mesmo os mais modernos. Morte natural é aquela que acontecerá em decorrência de uma doença incurável, que está piorando e para a qual a medicina esgotou suas possibilidades de tratamento. Nada impedirá a pessoa que tem tal doença de chegar à morte; é uma condição inexorável para aquela situação. É a essa pessoa, a esse paciente, que ofereço os Cuidados Paliativos. Os Cuidados Paliativos que pratico há vinte anos são esse processo de assistência para quem está na reta final.
O objetivo principal dos cuidados paliativos não é buscar a cura para a enfermidade sofrida pelo paciente, mas sim trazer melhora para a sua qualidade de vida. Trata-se dos cuidados oferecidos aos pacientes em sua fase final, para que se sintam confortáveis e possam passar pela doença de uma forma mais tranquila.
Quando se trata de um cuidado integral, é necessária uma equipe de profissionais da saúde que sejam capazes de realizar o tratamento e aliviar os sintomas do paciente, bem como os desconfortos por ele enfrentados, como os emocionais, sociais, físicos, espirituais e familiares.
Os tratamentos com objetivo de cura são complementares aos cuidados paliativos, já que um melhor controle dos sintomas permite que o paciente e sua família enfrentem os tratamentos de forma mais eficaz, mesmo que esses tratamentos sejam mais agressivos. De modo geral, à medida que a doença progride, há uma necessidade maior dos cuidados paliativos, e em algum momento do curso da doença, a prioridade do cuidado se concentra exclusivamente no conforto e na qualidade de vida.
Outro termo utilizado envolvendo a eutanásia e o suicídio assistido, é o duplo efeito, que é quando uma ação de cuidados é realizada e acaba desencadeando um efeito secundário, ao óbito. A exemplo disto, têm-se a analgesia e a sedação, ambas aplicadas em pacientes com enfermos graves, onde o principal objetivo é aliviar os sintomas e melhorar a qualidade de vida, e não provocar a morte. Desse modo, quando o medicamento é administrado para determinada finalidade, mas acaba acarretando a morte do paciente, o óbito é analisado como um efeito colateral da ação médica.
CONCLUSÃO
Existem diversas maneiras de se respeitar a sacralidade da vida, pois trata-se de algo particular, onde cada indivíduo tem uma perspectiva diferente sobre tais questionamentos. Cada religião enxerga a vida e a morte de formas e significados diferentes, desse modo o Estado não pode impor apenas uma forma de respeitá-las, devendo garantir a liberdade sobre a escolha de cada um.
A escolha de ter uma “morte digna” não viola o princípio da dignidade da pessoa humana, pois assegura a permanência de uma pessoa apenas enquanto estiver saudável, evitando quaisquer sofrimentos que possa vir a acometê-la em decorrência de uma doença terminal.
O adequado é garantir que o indivíduo, mesmo em seu momento final, tenha sua motivação preservada e o poder de escolher se deseja passar por um tratamento intenso e cheio de agonia, que inevitavelmente o levará a morte, ou se preferir antecipá-la e poupar-se de tanto sofrimento. Ao antecipar a morte, não apenas se respeita a pessoa, mas também se leva em consideração outros valores que possuem igualmente importância, como a liberdade, a autonomia e o fim de seu sofrimento.
Impedir que uma pessoa escolha quando se dará sua morte significa ferir integralmente a sua dignidade, principalmente quando está passando por condições de sofrimento em sua saúde, fazendo com que sua existência se torne insuportável.
O direito à vida não se limita apenas à sobrevivência física da pessoa e ao ato de respirar. Como mencionado nesse breve ensaio, esse direito implica também em uma noção de uma qualidade de vida melhor. No contexto constitucional, os princípios e valores são indispensáveis, a exemplo disso temos o princípio da dignidade da pessoa humana, a liberdade, a autonomia e o direito à vida. Como demonstrado, tais princípios não se contrapõem ao direito à eutanásia, pelo contrário, acabam formando uma base para defender o conceito de “morte digna”.
É válido mencionar que a busca pela legalização da eutanásia dever ser feita com cautela para evitar a banalização do procedimento e a ocorrência de mortes desnecessárias. Existem diversos critérios a serem levados em consideração antes de tomar uma decisão a respeito da permissibilidade da prática da eutanásia, como por exemplo ter o paciente uma doença incurável, cientificamente comprovada, que sua cura seja impossível ou que a busca por ela apresente um custo muito alto ao enfermo; sofrimentos e doeres insuportáveis e o principal deles, que é a vontade do paciente. A solicitação do paciente representa o consentimento, que deve ser livre, devendo este estar consciente de toda a situação e de suas opções de tratamentos e cuidados paliativos disponíveis, além de receber informações corretas para embasar sua decisão final de forma coerente.
Caso seja legalizada a autonomia para praticar a eutanásia, como no recente exemplo da legislação espanhola, deverão ser realizadas diversas pesquisas e intensas reflexões, para que assim possa ser regulamentada e evitar riscos que possam surgir, a fim de propiciar segurança jurídica aliada à promoção da dignidade.
REFERÊNCIAS
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NOTA:
[1] doutor em direito penal pela USP, professor do Centro Universitário de Jales - UNIJALES.
graduando em Direito pelo Centro Universitário de Jales - UNIJALES
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Antonio Esquina. Eutanásia: o direito de escolha entre o viver e o morrer Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 nov 2023, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/63806/eutansia-o-direito-de-escolha-entre-o-viver-e-o-morrer. Acesso em: 22 nov 2024.
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