RESUMO: O artigo tem como objeto o constitucionalismo latino-americano, com foco no hiperpresidencialismo presente na história constitucional da América Latina, buscando evidenciar seus impactos para a transformação constitucional e democrática dos países da América do Sul. Como objetivo, o trabalho buscou revisar o constitucionalismo latino-americano, dividindo-o em períodos históricos definidos, o que permitiu revisar a história constitucional da região sob uma perspectiva crítica. A pesquisa é de cunho sócio-jurídico, a partir do método de análise de fontes históricas, escolhido como o mais apropriado para apreciação e compreensão dos processos sociais, culturais, econômicos e jurídicos envolvidos na história constitucional dos países latino-americanos. Concluiu-se, a partir do desenvolvimento da pesquisa, que mesmo com o advento do chamado “Novo constitucionalismo latino-americano”, que se mostrou inovador em termos de garantia e reconhecimento de direitos indígenas na América Latina, as reformas realizadas apenas na parte dogmática de um texto constitucional não são suficientes para tornar o poder mais descentralizado, tampouco para tornar o contexto político mais estável e atribuir uma mudança efetivamente transformadora na organização do poder nas sociedades latino-americanas.
Palavras-chave: Direito Constitucional; Constitucionalismo latino-americano; História Constitucional; Hiperpresidencialismo; Democracia.
ABSTRACT: The research has as its theme Latin American constitutionalism, focusing on the hyper-presidentialism present in the constitutional history of Latin America, seeking to highlight its impacts on the constitutional and democratic transformation of the countries of South America. As an objective, the work sought to review Latin American constitutionalism, dividing it into defined historical periods, which allowed reviewing the constitutional history of the region from a critical perspective. The research is of a socio-legal nature, based on the method of analysis of historical sources, chosen as the most appropriate for the appreciation and understanding of the social, cultural, economic and legal processes involved in the constitutional history of Latin American countries. It was concluded, from the development of the research, that even with the advent of the so-called "New Latin American constitutionalism", which proved to be innovative in terms of guaranteeing and recognizing indigenous rights in Latin America, the reforms carried out only in the dogmatic part of a constitutional text are not enough to make power more decentralized, nor to make the political context more stable and attribute an effectively transformative change in the organization of power in Latin American societies.
Keywords: Constitutional right; Latin American constitutionalism; Constitutional History; Hyperpresidentialism; Constituent power
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objeto o constitucionalismo latino-americano, com ênfase ao hiperpresidencialismo identificado na história constitucional deste continente e seus impactos para a transformação constitucional e democrática na América Latina. Por englobar essencialmente a história constitucional do continente sul-americano, a interdisciplinaridade foi um fator constante, portanto, a pesquisa foi realizada sob o prisma do Direito Constitucional e da História.
O objetivo geral do trabalho centrou-se em revisar o constitucionalismo latino-americano, em seus mais de 200 anos de existência. Desse modo, buscou-se repensar o constitucionalismo na região sob uma perspectiva crítica do ponto de vista da efetividade democrática.
Como objetivos específicos: (i) buscou-se refazer o caminho do constitucionalismo latino-americano, dividindo-o em períodos, o que permitiu analisar o contexto histórico-econômico e cultural dos países do continente, relacionando-os com suas respectivas Constituições; (ii) a partir da análise da transformação constitucional na América Latina, buscou-se desenvolver as semelhanças e divergências entre a história constitucional chilena, boliviana e equatoriana, nos limites das suas similitudes; e, por fim, (iii) apresentar um estudo crítico das transformações aduzidas a partir da identificação de um hiperpresidencialismo existente na região.
Na pesquisa, foi adotado um método essencialmente interdisciplinar, o sócio-jurídico, para compreender os processos sociais e econômicos envolvidos nas normatividades latino-americanas. Isto faz com que a pesquisa tenha um cunho jurídico-crítico com abordagem histórica, portanto, os questionamentos não podem ser respondidos apenas sob o universo da ciência jurídica e do Direito Constitucional, se fazendo necessário recorrer também à ciência histórica.
Assim, além da revisão bibliográfica de obras literárias, artigos acadêmicos e notícias, também se recorreu ao método de análise de fontes históricas. A partir da compreensão de que a ciência histórica estuda o homem no tempo (BLOCH, 2001), tornou-se possível a apreciação dos textos constitucionais e documentos que envolveram seus processos constituintes como fontes históricas. Essa documentação foi entendida como essencial para formular as análises aqui aduzidas e considerar a mentalidade jurídica do período analisado.
Nesse sentido, a análise das fontes será direcionada a partir do problema construído e proposto por esse trabalho, considerando que as fontes escolhidas trazem especificidades que requerem a realização de uma operação historiográfica, a qual pretende considerar os sujeitos envolvidos em sua integralidade.
Assim, ao discorrer sobre a transformação Constitucional e histórico-social da América Latina, o artigo aborda o primeiro período do Constitucionalismo latino-americano (1810-1850), passando pelo constitucionalismo fundacional e social (1850-1950) e o período do final do século XX, em que os Direitos Humanos, a ditadura e o hiperpresidencialismo são marcas do constitucionalismo na América do Sul. Logo após, abordou-se o constitucionalismo pluralista e a ideia de Estado Plurinacional, introduzida de modo inédito na região sul-americana e que levou a conclusão acerca da existência do hiperpresidencialismo como latente nos modelos constitucionais neste continente.
Ante o exposto, a leitura do presente trabalho permite uma percepção divergente da exposta tradicionalmente no âmbito acadêmico, a qual se prende, em sua maioria, aos estudos com referências e comparações europeias. Ademais, permite uma reflexão sobre o histórico social das Constituições latino-americanas, bem como os seus fatores de impacto tanto em relação ao regime democrático, quanto ao regime autoritário.
2. A TRANSFORMAÇÃO CONSTITUCIONAL E HISTÓRICO-SOCIAL DA AMÉRICA LATINA. O CONSTITUCIONALISMO PÓS-COLONIAL (1810-1850).
Como já evidenciado, o Direito se desenvolve essencialmente a partir do desenvolvimento histórico e social de determinado período. Não foi diferente com a história constitucional rica, grandiosa e desafiadora da América do Sul, considerado o continente mais desigual do mundo, segundo o Panorama Social da América Latina 2018 (CEPAL, 2018).
Prima facie, destaca-se que as primeiras Constituições na América Latina foram elaboradas após a declaração de independência dos povos latinos, delineado no período entre 1810 e 1850, em que nota-se resquícios da colonização em seus próprios dispositivos, haja vista ser impossível desvincular a história de colonialidade (QUIJANO, 2005) dos países latino-americanos da colonialidade presente em seus primeiros processos constituintes.
O confronto entre a experiência histórica e jurídica na América Latina, fruto de uma perspectiva eurocêntrica de conhecimento, permite apontar elementos que ajudam na compreensão de como o colonialismo subsistiu mesmo após a independência política, dando lugar ao que Aníbal Quijano definiu como colonialidade do poder (QUIJANO, 2005).
Basta-se olhar para as experiências político-jurídicas dos países latino-americanos para notar a colonização como ponto em comum na construção do sistema jurídico e estatal de países que foram submetidos a espaços subalternos perante o globo. E que, especialmente no Brasil, não enalteceu suas particularidades em seus textos normativos, tampouco objetivou a tutela de sua cultura e de sua população originária, pelo menos até a Constituição de 1988, uma das constituições que marcou o início do constitucionalismo pluralista no continente latino-americano, o qual será desenvolvido no próximo capítulo.
Gargarella contribui significativamente para a compreensão da história constitucional do continente, sobretudo nesse primeiro período do Constitucionalismo, quando apresenta três concepções sobre o constitucionalismo latino-americano pós independência, o qual recebe o nome de constitucionalismo de fusão (2017, p.14).
Esse fenômeno abarca três posições: uma posição republicana, uma posição liberal e uma posição conservadora.
O modelo constitucional conservador teve um símbolo capaz de dar-lhe um conceito muito completo e fidedigno: a cruz e a espada. A cruz representava a necessidade de um projeto moral, e a espada, por sua vez, representava a certeza da necessidade de recorrer à força para que houvesse ordem. Estas premissas podem ser visualizadas nas Constituições do Chile de 1823 e de 1833, por exemplo, e nas da Colômbia de 1843 e 1886, do Equador de 1869 e do México de 1843, em que pese ter sido esse modelo o de maior adaptação e durabilidade nos textos constitucionais da região latina. Essa concepção foi pautada por suas posições: o elitismo político e o perfeccionismo moral, caminhando no sentido de seguir valores “supraindividuais e extracomunitários” (GARGARELLA, 2017, p.14).
A segunda posição, nomeadamente a do modelo republicano, percebe-se uma tendência em reivindicar o ideal do autogoverno, marcado por um modo de organização constitucional totalmente ligado ao momento independentista. Somado a influência das revoluções europeias de 1848, reiterou-se nesse modelo a questão da autodeterminação democrática. Essa onda repercutiu em toda América do Sul, mas teve lugar especialmente na Colômbia, Chile e Peru. Duas importantes vertentes da concepção republicana são reveladas por Gargarella (2017, p. 15) como o majoritarismo político e o populismo moral, as quais advém do radicalismo latino-americano e demonstram oposição ao conservadorismo.
Por fim, a posição liberal privilegiou o ideal da autonomia individual, baseando-se fortemente na ideia do equilíbrio do poder e neutralidade do Estado.
Esse ideal pode ser visto fortemente no processo constituinte brasileiro de 1822, o qual ensejou a Carta Constitucional de 1824. Com inspiração no liberalismo francês, fruto da Revolução Francesa, a Assembleia Constituinte desta época se pautava totalmente no liberalismo colonial, garantindo uma amplitude de direitos individuais nos 35 incisos do art. 179 que refletia um elitismo conservador e censitário de direitos políticos (NETO; SARMENTO, p. 101), uma vez que excluía totalmente indígenas e escravizados, os quais representavam aproximadamente 2 milhões de pessoas. Dessa forma, foi caracterizada por Marco Antônio Villa (2011) como uma Constituição liberal, monárquica e escravista.
Também pôde se ver os traços do liberalismo nas constituições da Argentina, de 1826; do Peru, 1823 e de Nueva Granada, de 1830. Essa manifestação com o compromisso liberal no continente revela um esforço em busca da organização do sistema institucional contra os riscos apresentados pelas concepções conservadora e republicana. Assim, foi a posição liberal que introduziu a descentralização do poder antes concentrado em uma única autoridade política, além de limitar os poderes do Chefe do Executivo.
Em seguimento a essa corrente, os acontecimentos sociais e políticos na América do Sul, vivenciados pelo enfrentamento de liberais e conservadores, cederam espaço para uma fusão liberal-conservadora, impactando as constituições do continente com um conteúdo fundido das duas posições, em sua maioria como expressão de movimentos pró-democráticos, com exceção e destaque ao Chile. Ali, a união de liberais e conservadores foi propiciada pelo aumento do autoritarismo (GARGARELLA, 2017, p. 25), cujas particularidades serão esmiuçadas no terceiro capítulo.
Em síntese, o primeiro constitucionalismo latino-americano pôde ser compreendido como uma verdadeira fusão de ideias variadas, como a definição de um sistema de freios e contrapesos, a definição de uma organização centro-federal, consagração da tolerância de cultos e o triunfo da fusão liberal-conservadora após um período de conflitos, todas particulares fundamentais que o diverge de todos os períodos subsequentes.
3. A TRANSFORMAÇÃO CONSTITUCIONAL DA AMÉRICA LATINA E O CONSTITUCIONALISMO SOCIAL. DIREITOS HUMANOS, DITADURAS E A PRESENÇA DO HIPERPRESIDENCIALISMO.
Muitos foram os impactos dos ideais do constitucionalismo liberal-conservador para os povos latino-americanos, o que gerou significativos percalços até que finalmente surgisse o movimento reformista que deu cabo ao Constitucionalismo social. Apesar de passado o período pós-colonial, o liberalismo fomentou sequelas deixadas pelo período pré-independência e não foi capaz de atribuir liberdade também aos povos subalternizados, fazendo manutenção dos ideais libertários apenas à elite (GARGARELLA, 2017, p. 26).
Quando olhamos para a experiência constitucional brasileira, especialmente para o contexto social que levou a promulgação da Constituição de 1891, verifica-se que a escravidão era a instituição que movia tanto a sociedade quanto a economia no Brasil. O seu fim, na teoria, só ocorreria com a Lei Áurea em 13 de maio de 1888, o que tornou o país o último do Ocidente a abolir oficialmente o trabalho escravo (VERSIANI; NOGUERÓL, 2016).
No entanto, como se reflete até os dias atuais, a Lei Áurea não foi suficiente para inclusão da população escravizada na sociedade, tampouco nos espaços de poder, que já eram extremamente elitizados e dominados maioritariamente por homens, brancos e burgueses.
Foi nesse contexto que a Constituição brasileira de 1891, com seus 90 dispositivos, foi caracterizada como essencialmente liberalista, republicana e moderada (NETO; SARMENTO, 2014).
Para além do contexto brasileiro, o constitucionalismo liberal trazia consigo um projeto de sujeição indígena, em que, à luz do entendimento de Raquel Fajardo (2011), se expressou sob três métodos: o primeiro, com o convertimento dos indígenas em cidadãos civis tutelados por direitos individuais a partir da dissolução dos povos indígenas; o segundo, através da redução e catequização dos indígenas que não haviam sido colonizados, a quem as Constituições os chamavam de “selvagens”, ou “silvícolas”, e, por fim, o método de promoção de guerra ofensiva e defensiva contra as nações indígenas.
O constitucionalismo individualista somente foi questionado com o horizonte do constitucionalismo social, inaugurado pela Constituição mexicana de 1917, a partir de uma revolução popular triunfante, que, pela primeira vez no mundo, incorporou direitos sociais como garantia constitucional. Assim, a onda propagada pelo constitucionalismo social no Sul Global, de certo modo, possibilitou o reconhecimento das comunidades originárias e seus direitos coletivos a terra, dentro de um marco integracionista (FAJARDO, 2011, p. 140), que tinha como objetivo a integração dos indígenas ao Estado e a economia.
Alguns fatores foram determinantes para a ascensão do constitucionalismo social na América e para o impulso de reformas sociais que ocorreram gradualmente, após o protagonismo do México, como a Constituição da República de Weimar em 1919, a criação da Organização Internacional do Trabalho, também em 1919, além do crescimento do Estado de Bem-estar e da visão econômica keynesiana (GARGARELLA, 2017, p. 28).
Contudo, a Constituição do México, promulgada em 5 de fevereiro de 1917, não inaugurou somente questões sociais no constitucionalismo latino-americano, mas também a combinação de modelos constitucionais diversos e contraditórios entre si. Isso porque, embora em seu conteúdo normativo, de modo inédito, tenha sido apresentadas garantias trabalhistas, a robustez da reforma agrária, a garantia de ensino público e gratuito, entre outros, também notou-se que a organização política da Constituição trouxe consigo o velho modelo liberal e individualista do período anterior, mantendo os traços de um hiperpresidencialismo regional (GARGARELLA, 2017, p. 29), característica relevantíssima para a compreensão dos futuro rumo constitucional e político da América Latina.
Apesar desse contraponto, não há como negar o brilhantismo da Constituição mexicana de 1917 para a América Latina e para o mundo. O resultado desse extraordinário passo era reconhecido pelos constituintes, sobretudo pela Comissão responsável pela parte social do texto constitucional (NORIEGA, 1988). Estavam cientes da importância das tutelas transcritas em cada dispositivo daquele documento, como o exemplo do art. 27, que estabeleceu a soberania nacional sobre seus recursos naturais e construiu uma base para uma profunda reforma agrária.
Conquistas como o estabelecimento de duração máxima da jornada de trabalho, condições especiais para trabalhos noturnos e condições mínimas de salubridade também inspiraram as constituições seguintes no continente sul-americano, como a do Brasil em 1934 e 1937; da Bolívia em 1938; da Argentina em 1949, entre outras (GARGARELLA, 2017).
Ocorre que, como reverenciado, ao passo que a América Latina conquistou direitos sociais constitucionais, concomitantemente experienciou um modelo híbrido, repleto de contradição com as recentes conquistas. Assim, notou-se um diálogo entre garantias constitucionais sociais de grande peso para o desenvolvimento latino-americano e um extremo autoritarismo que marcou um período de violência política no Sul Global (GARGARELLA, 2017).
Desse modo pode-se ver a Constituição brasileira de 1934 e de 1937. Na primeira, destaca-se diversas medidas sociais marcantes que foram adotadas, sobretudo para as minorias, como a proibição de diferença salarial pelo mesmo trabalho e a proibição de trabalho para menores. Ademais, editou-se um Código Eleitoral, que foi responsável pela criação da Justiça Eleitoral e do voto secreto, ampliando o direito de voto às mulheres, o qual foi consolidado na Constituição de 1934 (DEPUTADOS, 1934).
Apesar desse último representar um grande avanço na democratização dos espaços de poder por mulheres, os traços da colonialidade se fizeram presentes nesse processo. Isso porque, mais uma vez, o estruturante de raça foi determinante. Praticamente só as mulheres brancas votavam, haja vista que as mulheres negras ainda estavam em uma luta para serem consideradas como pessoas (RIBEIRO, 2018, p. 52). Então, apesar do mérito que esse marco merece, evidencia-se que o racismo estrutural mais uma vez teve lugar nesse processo.
Ainda sobre os avanços sociais, uma maior consciência decolonial foi identificada na Carta de 1934, em que houve o reconhecimento de falhas advindas da ausência de políticas voltadas para a cultura e particularidades do povo brasileiro, conforme se vê dos Anais da Assembleia Nacional Constituinte de 1933 (1936, p. 249):
Se a Constituição de 91 se tivesse inspirado mais nos nossos costumes e nas características da nossa raça; se tivesse preocupado mais com o Brasil, com a administração pública, do que com a técnica e a pureza do regime, teríamos tido governos bons e teríamos vivido melhores dias.
Na mesma Assembleia Nacional Constituinte, na fala do constituinte Sr. Lauro Passos (1936, p. 374), pode-se verificar também uma crítica ao eurocentrismo:
Enquanto se não criarem esses núcleos culturais que honram a civilização americana, que elevam hoje a raça mexicana e para que se volveram, com toda a intensidade, os governos revolucionários da Rússia Soviética, todo o esforço brasileiro é baldado por mais que se ergam nos centros administrativos, industrias e comerciais do País, toda sorte de escolas que reflitam apenas o brilho da intelectualidade europeia ou americana.
Esse pensamento crítico pôde ser visto nos dispositivos da Constituição. Pela primeira vez na história constitucional brasileira, os indígenas foram citados. No artigo 5º, inciso XIX, alínea “m”, versou-se sobre a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional (DEPUTADOS, 1934). Por silvícolas entende-se aquele que vive nas florestas, indígena.
Ademais, tratou-se sobre o reconhecimento das terras indígenas no artigo 129, destinando, ainda, uma quantia orçamentária fixa para a defesa contra os efeitos das secas do Norte no artigo 177 (DEPUTADOS, 1934).
Muito embora tenha apresentado diversas rupturas e avanços sociais, a Constituição de 1934 vigorou apenas até novembro de 1937, quando foi outorgada a Carta do Estado Novo, por ocasião do golpe de Estado de Getúlio Vargas. Para o então Presidente, a Constituição de 1934 enfraquecia o poder político (MENDES; BRANCO, 2008, p. 168) e detinha falhas ensejadas pela influência do liberalismo e do sistema representativo. Essa conexão entre a potencialidade proporcional do constitucionalismo social com o reforço do presidencialismo (GARGARELLA, 2017, p. 33) começa a revelar conclusões acerca dos processos democráticos cíclicos na América Latina.
Tal relação pode ser compreendida sob a ótica dos marcos que levaram a Constituição de 1934 e a de 1937. A primeira, motivada pela ascensão política de Luís Carlos Prestes, pela Guerra Civil de 1932 e pelos levantes trabalhistas, teve como oposição a Constituição de 1937, que pode ser lida como uma reação à ideia comunista fomentada e liderada por Prestes em 1935. Dessa comparação pode-se compreender os ciclos latino-americanos marcados por regimes políticos centralizados em subsequência a conquista de direitos sociais.
Essas reações autoritárias ao constitucionalismo social impactaram um terceiro período do constitucionalismo extremamente importante para compreensão da história constitucional da América Latina em sua amplitude: o constitucionalismo no final do Século XX.
A vivência da crise política e dos direitos humanos marcou o avanço das ditaduras e governos autoritários na América Latina que, por sua vez, deu cabo ao constitucionalismo militar. Destaca-se os casos do Chile e do Brasil, que são capazes de ilustrar a influência direta desse constitucionalismo sobre a vida política da região (GARGARELLA, 2017, p. 37).
O mesmo efeito visto no constitucionalismo chileno à época, entre o período da ditadura e pós-ditadura, também pode ser identificado na experiência brasileira, que teve desafios e trilhos semelhantes.
A Constituição Federal de 1967, promulgada por ocasião do golpe civil-militar de 1964, também adveio da ideia de reorganização da vida política do país, tendo como principal característica a concentração do poder (NETO; SARMENTO, 2014).
Após longos meses de retrocesso democrático, foi outorgada uma nova Constituição em 1969, através da Emenda Constitucional nº 1. Nesse texto, que manteve expressamente o AI-5, houve modificações significativas em relação ao funcionamento dos poderes e no campo dos direitos fundamentais, com claros retrocessos para o Estado Social de Direito (NETO; SARMENTO, 2014).
Assim, quando recuperada a democracia, seguindo o efeito chileno de tentativa de ruptura com o constitucionalismo militar e suas duras consequências, os brasileiros também impulsionaram uma reforma para repassar e corrigir as sequelas autoritárias marcadas pelo texto constitucional militar. No entanto, a solução encontrada pelo Brasil divergiu ao promulgar uma nova Constituição democrática, ao invés de tão somente reformar os dispositivos já existentes. Desse modo, a Constituição de 1988 pode ser lida como uma reação diante do constitucionalismo promovido pelos militares (GARGARELLA, 2017, p. 38).
Ao mesmo tempo que manteve o presidencialismo reforçado da Constituição militar (LIMONGI, 2008), a nova Constituição democrática brasileira se diferenciou significativamente da anterior por meio de mudanças paradigmáticas e garantias que marcaram o início do constitucionalismo pluralista na América Latina.
4. CONSTITUCIONALISMO PLURALISTA E ESTADO PLURINACIONAL: NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO?
As reformas constitucionais ocorridas entre o final do século XX e início do século XXI, especificamente dos anos de 1980 a 2010, marcam uma fase de pluralismo jurídico na América Latina, a qual pode ser compreendida sob a luz da sistematização desenvolvida por Raquel Fajardo (2011) em três ciclos: do constitucionalismo multicultural, constitucionalismo pluricultural e do constitucionalismo plurinacional.
A partir da promulgação dessas Cartas Constitucionais, acreditou-se que houve a promoção da ressignificação do Estado e da reconfiguração da ordem constitucional existente até então (ACUNHA, 2017, p. 19), firmando o que havia sido nomeado como Novo Constitucionalismo Latino-americano. Entretanto, conforme passará a se demonstrar, alguns fatores podem ser considerados impeditivos fortes o suficiente para criarem um óbice a uma verdadeira reforma constitucional no continente Sul-Americano.
A Constituição brasileira de 1988 é uma das Cartas que marcam o primeiro ciclo de reformas constitucionais na América Latina: o constitucionalismo multicultural. Esse ciclo abarca as reformas constitucionais ocorridas de 1982 a 1988, em que verifica-se a introdução do conceito de diversidade cultural e é reconhecida a configuração multicultural e multilíngue da sociedade, bem como o direito à identidade cultural, como pode ser visto na Constituição Federal brasileira de 1988.
De forma inédita, essa Constituição efetivou o sentimento de pertencimento latino-americano, dispondo, em seu 4º artigo, sobre a busca pela “integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina”. Mais que um princípio, este dispositivo significou a determinação do início do processo de formação de uma comunidade de nações (VILLA, 2011, p. 82).
Como modo de retificação da Constituição autoritária anterior, a Carta de 1988 foi responsável por uma série de evoluções a nível de direitos fundamentais sociais, além de ter marcado o início de um processo de rompimento com a colonialidade do poder no que diz respeito à tutela de povos originários, uma vez que rompeu, finalmente, com a utilização do termo “silvícola”, presente nas Constituições anteriores para se referir aos indígenas.
De forma inovadora, os povos originários receberam atenção especial dos constituintes, como a determinação de exclusividade da União para legislar sobre as populações indígenas, que se depreende da Constituição Federal de 1988.
Atualmente, um total de 11.079.252,74 hectares são terras indígenas tradicionalmente ocupadas, segundo a FUNAI (2020). Esse número expressivo demonstra não somente a relevância da atribuição de direitos constitucionais aos povos originários, mas também marca o primeiro ciclo do constitucionalismo pluralista na América Latina (FAJARDO, 2011, p. 141): o ciclo do constitucionalismo multicultural.
Não obstante as conquistas em termos de direitos fundamentais e representatividade originária que a Constituição de 1988 trouxe, surgindo na história constitucional brasileira como um “marco zero de um recomeço” (BARROSO; BARCELLOS, 2005), destaca-se que o potencial presidencialismo herdado da ditadura não foi de todo ressignificado nessa Carta.
Esse ponto demonstra a influência indireta dos governos autoritários do constitucionalismo militar sobre os desenvolvimentos constitucionais subsequentes, não somente no Brasil, mas em toda a região latino-americana. Essa influência justifica e auxilia na identificação do hiperpresidencialismo presente na América do Sul, o qual pode ser apontado como um dos responsáveis pela instabilidade política da região (GARGARELLA, 2017).
Surge, a partir disso, a indagação acerca da responsabilidade do texto constitucional promulgado, ou nomeadamente do próprio constitucionalismo, sobre a instabilidade política que se via sempre subsequente a reformas constitucionais na região sul-americana. No entanto, essa questão somente poderá ser respondida por completo no fim deste capítulo, haja vista que as reformas constitucionais advindas nos próximos ciclos do constitucionalismo pluralista são essenciais para a compreensão da relação entre o hiperpresidencialismo e o constitucionalismo latino-americano (GARGARELLA, 2017).
As reformas constitucionais desenvolvidas entre 1989 e 2005 dão espaço ao constitucionalismo pluricultural. Nesse segundo ciclo, é desenvolvido, de modo inédito, o conceito de Estado pluricultural, em que se enquadram as Constituições da Bolívia de 1994 e do Equador de 1996 e 1998 (FAJARDO, 2011).
Nessa fase, o pluralismo e a diversidade cultural são convertidos em princípios constitucionais, a fim de efetivar os direitos originários, tanto de indígenas, como de afrodescendentes, quilombolas, e demais populações originárias. As Constituições que estão neste ciclo do pluralismo jurídico, incorporam em seus textos normativos uma gama de direitos indígenas, sobretudo pela adoção ao Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais em países independentes, ocorrido em 1989 (FAJARDO, 2011).
Tais direitos indígenas vão de encontro a garantias mais efetivas aos povos originários, como a oficialização de idiomas indígenas, a educação bilíngue intercultural e o direito sobre as terras povoadas por esta população. Além disso, as Constituições que se enquadram neste ciclo reconhecem as próprias normas indígenas, concedendo-lhes autoridade e reconhecimento, de modo a colocar em causa a soberania clássica conhecida pelo monopólio estatal de produção de direitos (FAJARDO, 2011).
As Constituições da Colômbia de 1991, do Peru em 1993, da Bolívia de 1994 e do Equador de 1996 e 1998 se enquadraram neste ciclo pluricultural do constitucionalismo latino-americano (FAJARDO, 2011, p. 143), incluindo em seus textos normativos o reconhecimento do pluralismo jurídico interno.
Sem embargo, Raquel Fajardo demonstra, ainda, que o multiculturalismo e a tutela indígena adotada pelas Constituições nesse ciclo foram paralelos a outras reformas constitucionais ocorridas na América Latina. Com o marco da globalização, essas reformas objetivavam facilitar a implementação de políticas neoliberais responsáveis pela flexibilização do mercado e a abertura das transnacionais, conforme ocorrido na Bolívia (FAJARDO, 2011).
Assim, se por um lado foram reconhecidas maiores garantias aos povos originários, por outro, possibilitou a instalação de corporações transnacionais em territórios indígenas com o objetivo de realizar atividades extrativas, dando espaço para maiores violações e consequente subtração dos direitos conquistados nesse ciclo constitucional. Essa contradição, nesse momento do constitucionalismo, pode ser vista como uma faísca que futuramente ensejará um incêndio na possibilidade de uma estabilidade política na região, conforme se verá no desenvolvimento histórico subsequente.
As Constituições promulgadas entre 2006 e 2009 englobam o terceiro ciclo do constitucionalismo pluralista, em que são abordados especificamente os processos constituintes da Bolívia e Equador. A contextualização histórica e social desse ciclo é relevante especialmente para compreender o caminho percorrido até se redigirem e promulgarem essas Constituições, que sinalizam o que muitos consideraram como o “Novo Constitucionalismo latino-americano”.
As reformas ocorridas neste horizonte pluralista se dão no contexto da aprovação da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, ocorrido entre 2006 e 2007.
Neste ciclo, as Constituições da Bolívia e do Equador promovem uma ressignificação do Estado através do reconhecimento das raízes indígenas que foram ignoradas em marcos históricos anteriores, como o da república. A partir deste ciclo, os povos originários são reconhecidos como nações originárias ou nacionalidades com autodeterminação, demonstrando a evolução quanto ao reconhecimento anterior que os classificavam apenas como “culturas diversas” (FAJARDO, 2011, p. 149).
Esse acontecimento proporciona aos povos originários o reconhecimento enquanto sujeitos políticos coletivos, com direito a definir seu destino, a terem governos autônomos e a participarem de pactos estatais, configurando o Estado como um Estado plurinacional (FAJARDO, 2011).
A definição de Estado plurinacional não diz respeito somente a um Estado que reconhece direitos indígenas. Esse reconhecimento já ocorria desde o primeiro ciclo do constitucionalismo pluralista, do qual a Constituição do Brasil de 1988 faz parte. Mais do que isso, o Estado plurinacional corresponde ao resultado de acordos entre povos e coletivos, que, por sua vez, se erguem como sujeitos constituintes no Estado a que pertencem. Desse modo, junto a outros povos e de forma coletiva, são detentores do poder de definição de um novo modelo de Estado e de relações entre povos (FAJARDO, 2011).
Assim, os cidadãos podem não somente recorrer ao Estado por direitos sociais, mas participar do processo de atribuição de direitos que incorporam a perspectiva indígena, como o direito à água, ao “buen vivir” e a segurança alimentar (FAJARDO, 2011.p. 149). Não obstante, o conceito de “Buenvivir” como elemento estruturante dos novos textos certamente é uma das maiores e mais relevantes mudanças incorporadas às novas reformas constitucionais na América Latina.
Para Roberto Viciano Pastor e Rubens Martínez Dalmau (2010), esse momento constitucional é especial sobretudo pelas mudanças substanciais na cultura constitucional experienciada até então. As Cartas de países como Equador e Bolívia, os quais se destacaram nesse ciclo constitucional, demonstram uma maior preocupação em atender às demandas locais, do que em seguir as teorias constitucionais clássicas, como tradicionalmente visto.
O constitucionalismo pluralista colocou em evidência não somente a inclusão de povos indígenas, mas também ampliou os direitos de outras minorias, de forma que alcançassem setores sociais até então sem possibilidade de participação na vida política.
Desse modo, os novos conceitos incluídos nos textos constitucionais latino-americanos, promulgados desde a década de 1980, firmaram um compromisso social e trouxeram esperança de reduzir as desigualdades e reconhecer direitos dos que estiveram durante toda a história ocupando espaços subalternos.
Portanto, percebe-se que, para além do grande impacto social para a América Latina, alguns outros fatores, os quais serão desenvolvidos no subcapítulo posterior, determinaram que a promulgação das Cartas Constitucionais do terceiro ciclo, denominado constitucionalismo plurinacional, dessem cabo ao que foi considerado como o “Novo constitucionalismo latino-americano”.
5.NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E HIPERPRESIDENCIALISMO
Um marco fundamental da ruptura com o modelo tradicional de Constituição, que fez jus a titulação de “Novo Constitucionalismo latino-americano”, para Gladstone Júnior (2018), seria a ocupação de espaços de poder centrais por atores políticos tradicionalmente subalternizados na história constitucional, como os povos originários, que foram protagonistas da grande transformação da concepção de Estado no Sul Global.
Sob outra ótica, Viciano Pastor e Martínez Dalmau (2010, p. 12) afirmam que o Novo Constitucionalismo no Sul global significaria uma necessidade da sociedade latino-americana de novos marcos jurídicos, de modo que os novos processos constituintes plurinacionais tinham em comum uma ativação do poder constituinte originário da população. A partir dessa ativação, sustentam que o novo modelo constitucional traz consigo, sobretudo, a simbologia do rompimento com o estado de coisas anterior, atribuindo legitimidade aos processos democráticos vivenciados.
Desse modo, o Novo Constitucionalismo latino-americano representa “uma marginalização do poder constituinte constituído ou derivado em prol de mecanismos que reclamem a participação popular para a modificação da Constituição.” (ACUNHA, 2017, p. 83).
Assim, o Novo Constitucionalismo latino-americano, para Fernando Acunha, traria consigo a pretensão de alterar a base material de suas sociedades através da transformação da realidade socioeconômica das populações, e, por outro lado, a pretensão de reconfigurar a ordem democrática no exercício do poder político e no modo de produção do direito, por intermédio de uma mudança da organização hierárquica dessas sociedades, invertendo a lógica de ocupação de poder no sistema político, jurídico e econômico (ACUNHA, 2017, p. 19).
Entretanto, é inegável que o atual contexto político e social de países que foram enquadrados no constitucionalismo plurinacional, como a Bolívia e o Equador, enseja o questionamento acerca do avanço das instituições democráticas, haja vista que apesar das importantes reformas constitucionais, continuam atravessando crises econômicas e instabilidade política. Esses processos constituintes, em que pese tenham garantido uma ruptura colonial e a ocupação de espaços de poder por atores tradicionalmente subalternizados, não teriam trazido consigo práticas políticas de concentração exacerbada de poder, e consequente afastamento da democracia?
É paradoxal que o mesmo processo constituinte que conferiu pluralidade ao Estado, assegurou e aumentou exponencialmente os direitos constitucionais dos povos originários, também tenha fortalecido a concentração de poder nesses países.
Apesar da legitimidade conferida ao processo constituinte que deu à luz o Novo Constitucionalismo latino-americano, é necessário indagar se houve, de fato, um rompimento com o modelo constitucional.
Isto porque as reformas de regime na América Latina, de um modo geral, sempre mantiveram a centralização do exercício do poder constituinte. Esse resultado pode ser explicado pelo fato de que, nem mesmo o Estado Plurinacional e a nova ordem constitucional foram capazes de alterar a parte mais sensível dos textos constitucionais, em que possibilita a reforma na organização do Estado e de seu poder.
Para Gargarella (2011), existe a compreensão de que a Constituição se divide em duas partes complementares: A parte orgânica e a parte dogmática. A primeira é responsável pelas disposições normativas que estruturam o poder e o Estado. Em contrapartida, a segunda dispõe as normas que regulamentam e garantem os direitos constitucionais fundamentais. Assim, entende-se que as reformas efetivas ocorrem com uma mudança efetiva na primeira parte, a orgânica, em que ele define como “a sala de máquinas” da Constituição.
Aplicando os ensinamentos de Gargarella para a compreensão das transformações trazidas pelo Novo Constitucionalismo Latino-Americano, conclui-se que este não foi realmente capaz de estabelecer um novo modelo constitucional no continente, haja vista que não alterou a “sala de máquinas”, como ele conceitua, das Constituições.
Recorre-se a Landau para compreender que, a reforma da parte dogmática, ignorando a necessidade de reforma na parte orgânica, seja através da limitação do poder, seja através da descentralização deste, incorre em grande risco para as instituições democráticas. Isto porque a ausência de preocupação com a limitação dos poderes ou sua descentralização, aduz em uma acumulação autoritária, cedendo espaço para um constitucionalismo abusivo (2012, p. 936).
Sob o prisma da Economia, a concentração de poder político na realidade latino-americana, sobretudo na Bolívia e no Equador, em conjunto com a desigualdade social presente na região, são fatores capazes de dificultar a continuidade de governos e provocar crises institucionais, ainda que a região tenha passado por reformas que transformaram o modelo constitucional em termos de direitos fundamentais. A partir desse entendimento, pode-se concluir pelo crescimento proporcional da concentração de poder em paralelo com as reformas orgânicas do texto constitucional (GARGARELLA, 2017).
A partir dessas conclusões, torna-se possível responder à indagação feita no início deste capítulo acerca da responsabilidade do constitucionalismo sobre a instabilidade política na região sul-americana:
O presidencialismo – ou mais precisamente o hiperpresidencialismo –, foi considerado o fator fundamental e mais importante que ajudava a explicar, a partir do constitucionalismo, os níveis de instabilidade política que haviam sido registrados durante todo o século na região (NINO, 1987; LINZ; STEPAN, 1978; LINZ; VALENZUELA, 1994 apud GARGARELLA, 2017).
Assumindo, a partir disso, uma resposta afirmativa acerca da responsabilidade do constitucionalismo sobre a concentração de poderes que gera instabilidade política de um país, qual papel teria o constitucionalismo ou a própria Constituição em uma possível limitação de poder? Viciano Pastor e Martínez Dalmau consideram que as formalidades jurídicas são apenas o meio para aquele fim: o da limitação do poder:
Al fin y al cabo, el Derecho constitucional no es otra cosa que la actividad jurídica que ha seguido a un modelo histórico de limitación y legitimidad del poder (constituido); esto es, del gobierno. Y, en este sentido, por la propia naturaleza de la legitimidad y la limitación de este poder, debe más a los procesos políticos que a las formalidades jurídicas, que sólo son un medio para aquel fin (PASTOR; DALMAU, 2011, p. 2)
Essas conclusões apenas ratificam o quão contraditórias foram as reformas do período analisado, uma vez que, por um lado, ter-se-ia “uma constituição que propicia a democratização da sociedade por meio de direitos horizontais, mais expandidos; e, por outro, uma constituição que bloqueia esses impulsos democratizadores, mantendo uma organização do poder verticalizado e concentrado em poucos” (GARGARELLA, 2017, p. 47).
Diante disso e à luz dos dados demonstrados pelos estudos em Direito Constitucional Comparado, depreende-se que o período marcado pelo “Novo constitucionalismo latino-americano” e todas as reformas que dele foi fruto, insistiram em um poder político concentrado, o que passou a definir o constitucionalismo na América Latina no geral.
Assim, afirma-se a existência de um “modelo de poder presidencial propriamente latino-americano, que inclui um poderoso papel do presidente na área legislativa e ao mesmo tempo amplos poderes de emergência” (CHEIHUB; ELKINS; GINSBURG, 2011, p. 1730).
A concentração do poder em poucos, mantendo uma organização em sentido vertical, ao mesmo passo que há uma proporção de direitos horizontais, que abrangem a pluralidade de todo um povo, é minimamente contraditório, o que enseja na indagação do por que, ao longo do tempo, os constituintes da América Latina tiveram iniciativas de constituições que trariam ciclicamente e insistentemente esse tipo de iniciativa, trazendo uma grande tensão para a estabilidade política dos Estados.
Antes mesmo de tentar-se responder a esse questionamento, reafirma-se o que já havia sido introduzido na primeira fase do constitucionalismo pluralista, quando da adoção do multiculturalismo nos anos de 1980 a 1990: as Constituições que assumem compromissos contraditórios geram tensões internas inenarráveis. Assim foi pontuado por Raquel Fajardo (2011) ao identificar a contradição entre o multiculturalismo e a tutela indígena adotada pelas Constituições desse período, em paralelo ao marco da globalização, que trouxe reformas facilitadoras da implementação de políticas neoliberais responsáveis pela flexibilização do mercado e a abertura das transnacionais, como foi o caso da Bolívia.
Assim, retomando o questionamento acerca das causas que levaram constitucionalistas latino-americanos a optarem continuamente por modelos de Constituições contraditórias, mesmo quando já havia se identificado as problemáticas do hiperpresidencialismo, recorre-se, mais uma vez, a Gargarella, que identifica um fator relevantíssimo por meio de uma analogia à “sala de máquinas” da Constituição (GARGARELLA, 2017, p. 57):
Todo o analisado anteriormente nos fala da significativa e – ao mesmo tempo – da limitada tarefa exercida por aqueles que trabalharam nos recentes processos de reforma constitucional: eles não puderam e não quiseram ir tão longe como, talvez, seria necessário fazê-lo para assegurar a tais reformas a potência transformadora que se pretendia que tivessem.
Portanto, concluído que as reformas na parte dogmática, não obstante sua necessária relevância social, não são suficientes para tornar o poder mais descentralizado, e consequentemente estável do ponto de vista político, e, ainda, que as mudanças efetivamente transformadoras ocorrem com a mudança na parte orgânica da Constituição (GARGARELLA, 2011), a omissão dos constituintes acerca da necessidade de reforma na organização do poder deixa o futuro das sociedades democráticas sob a iminência do mesmo elitismo que era presente no constitucionalismo latino-americano pós colonização.
De toda sorte, o mundo contemporâneo atual, apesar de instável politicamente, nos traz esperança de alcançar a estabilidade a partir da transformação na organização do poder na América Latina.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
À luz de todo o exposto durante o desenvolvimento da pesquisa, buscou-se demonstrar a relação existente entre o Direito e a História, mas, sobretudo, o quanto o poder está conectado a estes.
Assim, desde o constitucionalismo pós-colonial, iniciado em 1810 no continente latino-americano, até o constitucionalismo atual, vislumbra-se que o poder, o Direito e a História estiveram relacionados. Desse modo, todo o desenrolar dos textos normativos no continente sul-americano ocorreu mediante reflexo do contexto histórico-econômico e cultural vivido à época.
O primeiro ciclo do constitucionalismo latino-americano foi fortemente marcado pelo liberalismo, fruto da inspiração da Revolução Francesa, mas também pôde ser compreendido pela fusão de ideias variadas que surgiram a partir da demanda social do período marcado entre 1810 e 1850. Em seguida, o constitucionalismo fundacional e social também demonstra o reflexo social vivido e a relação do Direito, História e poder do constitucionalismo que, no período entre os anos de 1850 e 1950, teve como protagonista na América Latina a Constituição do México de 1917.
Isso pois, o individualismo presente no contexto social do passado passou a ser questionado, possibilitando o reconhecimento de comunidades originárias e demais direitos sociais coletivos pela primeira vez na história da América Latina. Assim, o constitucionalismo pós-social, especificamente do final do Século XX, teve como marca a concentração de poder e o nacionalismo, conforme pôde-se aferir das experiências constitucionais da Argentina, Brasil e Chile, que experienciaram o constitucionalismo militar.
Em ato contínuo, as reformas constitucionais ocorridas para restabelecimento da democracia e garantia de Direitos Humanos, em conjunto com o poder dos movimentos sociais, impactaram uma fase pluralista na região, a qual, em atenção à sistematização de Raquel Fajardo (2011) teve três ciclos: o constitucionalismo multicultural, constitucionalismo pluricultural e o constitucionalismo plurinacional.
Concluiu-se, desse modo, que o constitucionalismo pluralista, ao mesmo tempo que foi determinante para a garantia e reconhecimento inédito de direitos indígenas, apresentou-se contraditório, haja vista que também ensejou em uma organização de poder concentrado e verticalista, responsável por diversas crises institucionais no continente. Nessa linha, concluiu-se que o “Novo Constitucionalismo latino-americano”, portanto, transpareceu um modelo de poder presidencial característico do povo latino-americano, qual seja, o hiperpresidencialismo.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Poliane Carvalho. O hiperpresidencialismo presente na história constitucional latino-americana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 abr 2024, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/65017/o-hiperpresidencialismo-presente-na-histria-constitucional-latino-americana. Acesso em: 22 nov 2024.
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