RESUMO: O presente artigo se debruça sobre a temática dos bloqueios judiciais realizados por Juízes Federais nas contas dos Estados-membros nas ações envolvendo a concretização do direito à saúde, em detrimento de medidas efetivas que constranjam o ente nacional a cumprir seu dever quando de trata de fármacos cujo financiamento é obrigação da União, e a vinculação dessa possibilidade de bloqueio determinado por juízes federais em contas dos Estados-membros com o próprio equilíbrio do pacto federativo. Promove-se uma análise à luz do federalismo de cooperação e dos limites da autonomia e da intervenção de um ente da federação no orçamento dos demais.
Palavras-chave: Direito à saúde. Bloqueio e sequestro de verba pública. Autonomia dos entes políticos. Violação ao pacto federativo.
ABSTRACT: This article focuses on the issue of judicial blocks carried out by Federal Judges in the accounts of Member States in actions involving the realization of the right to health, to the detriment of effective measures that constrain the national entity to fulfill its duty when dealing with pharmaceuticals. whose financing is an obligation of the Union, and the linking of this possibility of blocking determined by federal judges in member states' accounts with the balance of the federative pact itself. An analysis is promoted in light of cooperation federalism and the limits of autonomy and intervention of one entity of the federation in the budget of the others.
Keywords: Right to health. Blocking of public funds. Autonomy of political entities. Violation of the federative pact.
1. INTRODUÇÃO
O direito constitucional social à saúde tem seus pilares constitucionais nos artigos 6º e 196 da Constituição Federal, destacando que o último prevê que “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
A partir das alterações trazidas pelo neoconstitucionalismo, principalmente com o aumento do ativismo judicial, o Poder Judiciário passou cada vez mais a influir em políticas públicas de saúde, maiormente por meio de ações individuais, das mais diversas, em que se pleiteiam medicamentos, internações, cirurgias, e os mais diversos tratamentos.
Por conta da urgência imanente a essas demandas e da própria impossibilidade material de o Estado, por si só, cumprir em tempo hábil a multiplicidade de decisões judiciais, os Tribunais Superiores passaram a vislumbrar a possibilidade de que os magistrados, buscando adotar mediatas equivalentes à tutela do direito, pudessem bloquear verbas públicas para, diretamente, custear os gastos com os medicamentos, tratamentos, cirurgias e transferências requeridas judicialmente.
Tal possibilidade foi cristalizada na tese jurídica do Tema Repetitivo 84 do STJ, que ficou assim delineado: "Tratando-se de fornecimento de medicamentos, cabe ao Juiz adotar medidas eficazes à efetivação de suas decisões, podendo, se necessário, determinar até mesmo o sequestro de valores do devedor (bloqueio), segundo o seu prudente arbítrio, e sempre com adequada fundamentação".
Nesse contexto, mostra-se relevante o debate acerca da possibilidade e limites desse bloqueio quando realizado por um juiz federal em face de um Estado-membro, em detrimento de medidas coercitivas empreendidas contra a União (responsável primária), ente político ao qual os juízes federais estão vinculados.
2. CARACTERÍSTICAS DO FEDERALISMO BRASILEIRO
Uma das principais características das federações, inclusive da brasileira, é a busca pela salvaguarda da unidade nacional em conciliação com a preservação da autonomia e das idiossincrasias regionais.
Nesse passo, cada ente federado é dotado apenas de autonomia, e não de soberania (esta assegurada apenas à República Federativa do Brasil), motivo pelo qual a autonomia de cada ente público tem seus lindes delineados pela própria Constituição Federal.
Assim, a autonomia dos entes federados é substancializada pela auto-organização, pelo autogoverno e pela autoadministração.
Além disso, e por óbvio, para o pleno exercício desses três pilares é fundamental que os entes federados tenham liberdade para exercer sua competência tributária, assim como para gerir seus créditos e despesas, é dizer, a autonomia federativa está visceralmente ligada com a capacidade financeira que os entes têm de se autogerir no desempenho das mais diversas atividades públicas necessárias para o atingimento do interesse público. Como bem destacado por Ana Paula de Barcellos (Barcellos, Ana Paula D. Curso de Direito Constitucional, p. 279). Disponível em: Minha Biblioteca, (5th edição). Grupo GEN, 2023.:
Igualmente, as competências de todos os entes decorrem do que dispõe a Constituição Federal. Como já referido, os entes federados não são soberanos, mas autônomos nos termos da Constituição Federal, de modo que é ela que delineia o espaço de autonomia conferido a cada um deles. Isso significa, portanto, que cada ente apenas poderá levar a cabo atividades de qualquer natureza – validamente – caso elas estejam inseridas no espaço de autonomia que lhes foi atribuído pela Constituição.
No que toca especificamente à autoadministração, tem-se que esta advém da capacidade constitucionalmente assegurada aos antes de desempenharem suas competências, o que implica a gestão de seus bens e a prestação dos serviços públicos que lhes compete em sentido amplo, o que demanda, para tanto, o pleno exercício da sua capacidade financeira, máxime em áreas cujo financiamento mínimo já é constitucionalmente delimitado, como ocorre no caso da educação e da saúde.
Daí, verifica-se que um dos pilares para o pleno exercício de um federalismo equilibrado, em que cada ente desempenhe com esmero as atividades de sua competência, é que possua disponibilidade financeira (receita) e que tenha responsabilidade no gasto com as despesas, máxime tendo em vista que as demandas sociais são infinitas, enquanto os recursos são escassos e finitos.
Por fim, não se pode perder de vista que a forma federativa de Estado é cláusula dotada de petrealidade, por força do art. 60, § 4º, I, da Carta da República.
Assim, como bem destacado por Uadi Lammêgo Bulos (Bulos, Uadi L. Curso de direito constitucional, p. 258. Disponível em: Minha Biblioteca, (16th edição). SRV Editora LTDA, 2023.), “o respeito ao princípio federativo constitui uma salvaguarda da autonomia das pessoas políticas de Direito Público Interno, evitando ameaças à organização federal constituída (STF, RE 193.712-2/MG, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ, 1, de 16-5-1996, p. 16124)”.
3. DA POSSIBILIDADE DE BLOQUEIO DE VERBAS PÚBLICAS PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE.
Como exposto, o entendimento atual dos Tribunais Superiores é quanto à possibilidade de o Poder Judiciário, em casos específicos e excepcionais, e frente à inércia do poder público em cumprir a determinação judicial, proceder ao bloqueio de verbas públicas para a aquisição direta de medicamentos, tratamentos e cirurgias diretamente com os fornecedores (Drogarias e Hospitais) sem que haja necessidade sequer de procedimento licitatório, frente à urgência imanente à demanda.
Nesse sentido, além do Tema Repetitivo 84 do STJ, cita-se o seguinte precedente do Tribunal de Cidadania:
ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. LEGITIMIDADE DO JUIZ. SEQUESTROS DE VALORES. EFETIVAÇÃO DAS DECISÕES. RECEBIMENTO DE MEDICAMENTOS. DIREITO FUNDAMENTAL. PLEITEIO EM QUALQUER DOS ENTES FEDERATIVOS. COMPROVAÇÃO DA NECESSIDADE E POSSIBILIDADE. ENTENDIMENTO DO STF. DECISÃO DE ORIGEM QUE ENTENDEU A RAZOABILIDADE DA MULTA DIÁRIA APLICADA. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N. 7/STJ.
I - Quanto à tese de ilegitimidade, importante considerar o entendimento desta Corte Superior sobre o tema, pois tratando-se de fornecimento de medicamentos, cabe ao Juiz adotar medidas eficazes à efetivação de suas decisões, podendo, se necessário, determinar até mesmo, o sequestro de valores do devedor (bloqueio), segundo o seu prudente arbítrio, e sempre com adequada fundamentação.
II - O Supremo Tribunal Federal entende que o recebimento de medicamentos pelo Estado é direito fundamental, podendo o requerente pleiteá-los de qualquer um dos entes federativos, desde que demonstrada sua necessidade e a impossibilidade de custeá-los com recursos próprios. Nesse sentido: REsp 1203244/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/04/2014, DJe 17/06/2014; REsp 1069810/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/10/2013, DJe 06/11/2013.
III - Importante considerar ainda que o Tribunal de origem, soberano na análise das circunstâncias fáticas e probatórias da causa, consignou que a multa diária aplicada pelo descumprimento da obrigação era razoável e proporcional, consoante verifica-se dos excerto do voto condutor a seguir transcrito (fls. 143-154): "[...] Finalmente, no tocante à multa diária aplicada pelo togado singular, esta se mostra razoável em função da gravidade e do estágio avançado da doença que acomete o autor/apelado, bem como é amplamente aceita pela jurisprudência pátria a sua aplicabilidade em casos idênticos.
De qualquer sorte, ao contrário do alegado pelo apelante, por se tratar de caso de urgência, enquadra-se no art. 24, da Lei n° 8.666/93, que trata dos casos de dispensa de licitação."
IV - Não há como aferir eventual violação dos normativos apontados sem que se reexamine o conjunto probatório dos presentes autos, tarefa que, além de escapar da função constitucional deste Tribunal, encontra óbice no enunciado n. 7 da Súmula do STJ, cuja incidência é induvidosa no caso sob exame. V - Agravo interno improvido.
(AgInt no AREsp n. 1.201.800/PE, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 7/8/2018, DJe de 13/8/2018.) [Destaquei]
No mesmo sentido é o entendimento do Pretório Excelso, verbis:
Agravo regimental no agravo de instrumento. Direito à saúde. Fornecimento de medicamento. Bloqueio de verbas públicas. Possibilidade. Repercussão geral reconhecida. Precedentes.
1. O acórdão recorrido dá efetividade aos dispositivos constitucionais que regem o direito à saúde.
2. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal fixou-se no sentido da possibilidade do bloqueio de verbas públicas para a garantia do fornecimento de medicamentos, questão que teve, inclusive, a repercussão geral reconhecida nos autos do RE nº 607.582/RS. 3. Agravo regimental não provido.
(AI 639436 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 17-09-2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-221 DIVULG 16-10-2018 PUBLIC 17-10-2018) [Destaquei]
Dessa forma, sopesando o direito à saúde e a indisponibilidade das verbas públicas, entendem os Tribunais Superiores por dar prioridade ao primeiro, flexibilizando as regras de pagamento dos entes públicos (Precatórios e RPV) para assegurar o direito à saúde de forma imediata e, dessa forma, por meio de criação pretoriana, passou-se a admitir, no Brasil, uma nova forma de bloqueio judicial de verbas públicas.
Não obstante tal entendimento, por óbvio que o bloqueio desmesurado das verbas públicas, realizado por diversos juízes em milhares de ações individuais, acaba trazendo problemas para a própria organização das políticas públicas de saúde.
Analisando o perigo da banalização dos bloqueios judiciais e de seus efeitos deletérios nas políticas públicas de saúde, assim se manifestou Fernando Rister de Sousa Lima (Lima, Fernando Rister de S. Decisões do STF em direito à saúde, p. 73. (Coleção teses em doutoramento). Disponível em: Minha Biblioteca, Grupo Almedina, 2020):
Informações do Ministério da Saúde demonstram que, no período de 2010 a 2015, houve um salto nos gastos públicos para cumprimento de ordens judiciais em matéria de saúde – de R$122.600.000,00 (cento e vinte e dois milhões e seiscentos mil reais) para 1.000.100.000,00 (um bilhão e cem mil de reais), totalizando um acréscimo percentual da ordem de 797%. Paralelamente à judicialização, em 2015 o Brasil teve uma queda no seu Produto Interno Bruto (PIB) de 3,8%. Foi o pior índice desde 1990, ou seja, a escassez de recursos já é uma realidade. Diante desses números, pode-se afirmar que é no mínimo incoerente o Judiciário apresentar-se como poder escolhido para ungir uma parte da população para receber uma saúde de nível superior aos países de primeiro mundo, enquanto os cidadãos que procuram o serviço público – a maioria – encontra um sistema de péssima qualidade.
Se a possibilidade do bloqueio judicial para assegurar o direito à saúde judicialmente já traz questões controversas e ainda em desenvolvimento pela Jurisprudência, maior importância ganha a questão, ainda pouco debatida doutrinária e jurisprudencialmente, da possibilidade de Juízes Federais, órgãos da União, priorizarem bloqueios Judiciais de outros entes federativos, especialmente dos Estados-membros, mesmo quando o cumprimento da obrigação, pela descentralização e regulação administrativa do SUS, competente ao ente nacional. Problemática essa que ensejou o presente artigo e que será analisada no próximo item.
3. DOS BLOQUEIOS DE VERBAS PÚBLICAS PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO ÂMBITO DOS PROCESSOS NA JUSTIÇA FEDERAL. DA INTOCABILIDADE DAS CONTAS FEDERAIS E DO DIRECIONAMENTO EXCLUSIVO AOS ENTES ESTADUAIS. VIOLAÇÃO AO PACTO FEDERATIVO.
Como exposto alhures, a possibilidade dos bloqueios das contas públicas para a concessão de medicamentos/tratamentos em ações individuais relativas ao direito à saúde já é uma realidade no Judiciário brasileiro.
Contudo, no âmbito da Justiça Federal, há uma especificidade que demanda uma melhor análise da comunidade jurídica.
No que toca às ações de saúde, só tramitam na Justiça Federal as causas em que a União compõe o polo passivo da ação, por força do art. 109, I, da CF.
Isso pode ocorrer em três situações.
A primeira, quanto se tratar de fármaco não registrado na ANVISA, situação em que o STF entendeu que haverá litisconsórcio passivo necessário com o ente nacional, atraindo a competência da Justiça Federal. Pela importância, destaco a tese do TEMA 500 do STF (com destaque para o item 4):
1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.
2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União.
A segunda situação se trata dos casos em que há fármacos padronizados cujo financiamento é de competência da União, como ocorre, por exemplo, com os medicamentos oncológicos incorporados ao SUS e com os medicamentos que compõe o GRUPO 1 da lista do RENAME (cuja competência pelo financiamento é da União, através do Ministério da Saúde), que assim dispõe:
I - Grupo 1: medicamentos sob responsabilidade de financiamento pelo Ministério da Saúde, sendo dividido em:
a) Grupo 1A: medicamentos com aquisição centralizada pelo Ministério da Saúde, os quais são fornecidos às Secretarias de Saúde dos Estados e Distrito Federal, sendo delas a responsabilidade pela programação, armazenamento, distribuição e dispensação para tratamento das doenças contempladas no âmbito do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica; e
b) Grupo 1B: medicamentos financiados pelo Ministério da Saúde mediante transferência de recursos financeiros para aquisição pelas Secretarias de Saúde dos Estados e Distrito Federal, sendo delas a responsabilidade pela programação, armazenamento, distribuição e dispensação para tratamento das doenças contempladas no âmbito do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica;
Por fim, há os casos de medicamentos não padronizados em que a parte autora, voluntariamente, opta por ajuizar a ação exclusivamente contra a União, ou contra a União e outro ente federativo em litisconsórcio passivo.
E são exatamente nos casos em há litisconsórcio passivo entre a União e outro ente federativo, usualmente o Estado-membro, é que surge o problema da legitimidade do bloqueio das contas estaduais determinada por um juiz federal, órgão da União, mesmo nos casos em que a responsabilidade pelo financiamento do fármaco é do ente nacional, como se dá, por exemplo, com os medicamentos não padronizados, por força do art. 19-Q da Lei do SUS.
Nessas ações, na maioria das vezes, conquanto o juiz federal reconheça a obrigação primária da União, no momento do cumprimento da decisão a direciona para o Estado-membro.
Nesse ponto, ao direcionar o bloqueio exclusivamente em face do Estado-membro, a despeito de se tratar de atribuição afeta à União (TEMA 793 do STF), a decisão centraliza a responsabilidade financeira pelo custeio do medicamento não padronizado em face dos Estados-membros.
Por qual motivo?
Porque não se efetiva, na prática, bloqueios em face da União Federal, já que suas contas simplesmente são “blindadas” pelo Banco Central, enquanto as contas dos Estados-membros não possuem a mesma proteção, razão por que são escolhidas, pela decisão de bloqueio, nas incontáveis ações de saúde ajuizadas na justiça estadual e na justiça federal.
Em outras palavras: o Estado-membro desembolsa valores, por meio de sequestro de verba pública, de forma imediata, ficando privado de recursos para atender as obrigações próprias da sua competência, para somente e supostamente se ressarcir futuramente da União.
Trata-se, ao final, de verdadeira burla ao sistema de competências e repasses financeiros regulares do SUS, o que consubstancia um “Robin Hood às avessas”, até porque a alegação normalmente feita de que haverá ressarcimento no âmbito administrativo simplesmente não existe na prática, já que não há ressarcimento administrativo, ficando o ente subnacional em prejuízo ao arcar com o fornecimento de fármaco cuja competência de financiamento é do ente nacional.
No caso, há o melhor dos dois mundos para a União: além de furtar-se a responder pelos medicamentos não padronizados, ainda terá o Estado como seu fiador.
Essa é a regra que sois acontecer nos processos perante a Justiça Federal. O ente nacional simplesmente não cumpre a decisão judicial, se furta com alegações genéricas, embargos protelatórios, sem que nada aconteça, já ciente que haverá bloqueio nas contas do ente estadual, o qual, diversamente do ente nacional, não tem sua conta protegida de bloqueios judiciais.
Como exemplo, reproduz-se o dispositivo da decisão liminar proferida pelo Juízo Federal da 2ª Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Montes Claros-MG no processo n. 1015910-66.2023.4.06.3807:
Pelo exposto, DEFIRO o pedido de tutela provisória de urgência, para determinar que a parte ré forneça ao autor, de forma solidária, o medicamento Vismodegibe (Erivedge) 150 mg, a ser administrado via oral em uso contínuo de 1 (um) comprimido ao dia, por tempo indeterminado ou até progressão da doença, na forma prescrita pelo médico assistente, sob pena de multa diária no importe de R$300,00 (trezentos reais), em caso de recalcitrância.
INTIMEM-SE para cumprimento, no prazo de 15 (quinze) dias, e CITEM-SE os réus.
Caso os entes federativos não cumpram a decisão no prazo consignado, proceda-se ao imediato lançamento de bloqueio, via sistema SISBAJUD, em nome preferencialmente do Estado de Minas Gerais (sem prejuízo de eventual ressarcimento segundo as regras do SUS), no valor de R$28.100,00 (vinte e oito mil e cem reais), suficientes para a primeira caixa. Frutífera a constrição, transfira-se o montante para conta judicial. [Destaquei]
Nesse passo, no que toca à efetivação da medida liminar, é de se destacar que não só pode, como deve o Juiz valer-se de inúmeras outras medidas (art. 139, IV, CPC) para compelir a União a cumprir as decisões judiciais.
No entanto, não pode, por comodidade, centralizar o cumprimento da obrigação apenas em face dos Estados-membros, que passam por notórias dificuldades financeiras, além de sofrer intermináveis bloqueios judiciais em suas contas, advindos tanto da justiça estadual como da justiça federal.
Veja-se que na decisão supracitada, como na maioria das demais provenientes da Justiça Federal, sequer consta o motivo por que a única medida constritiva determinada para o cumprimento da liminar foi o bloqueio das contas estaduais (o que deve ser uma medida excepcional), sem proceder sequer a uma tentativa de compelir o ente nacional, responsável pelo fármaco não padronizado, a cumprir a determinação judicial, em dissonância com o disposto pelo STF ao fixar a tese do TEMA 793.
Destarte, quando se tratar de medicamento cuja competência pelo financiamento é do ente nacional, deve ser priorizado o cumprimento da obrigação em face da União, não podendo servir os entraves burocráticos de escusas para o descumprimento, pela União, das decisões judiciais, o que tem ocorrido reiteradamente na Justiça Federal, na qual o ente nacional repetida e sistematicamente deixa de cumprir as medidas liminares, sabedor de que nada sofrerá, já que os bloqueios judiciais inevitavelmente recairão sobre as contas dos Estados-membros.
Nesse passo, e com apoio na LINDB, é importante que as decisões proferidas pelos Juízes federais se atentem para as consequências materiais de suas determinações, que tendem a escudar o ente nacional e onerar excessivamente os entes subnacionais, mesmo quando se trata de obrigação primária do ente nacional.
Destacando, com precisão, a importância da noção do consequencialismo jurídico, assim se posicionou Camilla Japiassu Brum (Brum, Camilla Japiassu D. Série IDP - Direito à Saúde: Questões Teóricas e a Prática dos Tribunais, p. 141. Disponível em: Minha Biblioteca, SRV Editora LTDA, 2021.):
Gostemos ou não, o direito positivo brasileiro, a partir da edição dessa lei, passa a impor a análise das prováveis consequências das deliberações administrativas ou judiciais em matéria de políticas públicas. Os juízes, portanto, necessitarão –abordar as “consequências práticas” possivelmente derivadas de suas decisões. Mas como pensar, no ambiente da jurisdição constitucional, em “consequências práticas”? Se o que legitima o atuar do juiz constitucional é a dimensão da democracia reflexiva, ou seja, o plano dos princípios, não será possível dar uma resposta a essa questão sem reconduzir a discussão das consequências da política pública à linguagem do Direito. Isto é, deixando de traduzir a mecânica da política e de seus desejáveis resultados em questão de princípio constitucional. Não cabe, portanto, adotar algum critério utilitarista do tipo “é o que melhor promove o interesse geral”. O consequencialismo com que uma corte constitucional (o STF, no caso do Brasil) irá trabalhar deverá ser necessariamente jurídico.
O desafio se torna, então, desmistificar a ideia de análise de consequências como algo avesso ao Direito. Na resposta que Ronald Dworkin ofereceu às críticas feitas por Kent Greenawalt25 sobre sua conhecida distinção entre questões de política e questões de princípio, há um robusto desenvolvimento teórico sobre a inexistência de uma relação necessária entre, de um lado, política e consequencialismo e, de outro, Direito e não consequencialismo. Dworkin aproveitou a oportunidade dessa resposta para esclarecer seu pensamento sobre o papel das consequências na argumentação judicial26, fazendo-o a partir de casos hipotéticos27 que demonstrariam a independência entre os dois conjuntos de argumentos. Será necessário remeter o leitor a esse texto para que o presente artigo permaneça nos limites de seu objeto. O que interessa discutir por ora é a defesa do consequencialismo feita por um autor que efetivamente parte dessa intuição de Ronald Dworkin.
Refiro-me a Neil MacCormick, para quem “qualquer leitura universalizada de qualquer norma jurídica possui consequências potenciais, uma vez que implica uma determinada abordagem ao decidir tanto o caso presente quanto casos futuros similares”28. MacCormick entende, nessa linha, que devem ser verificadas as opções hermenêuticas para resolução de um caso à luz de suas consequências, que hão de corresponder àquelas consequências ditas universalizáveis, que ocorreriam em todos os casos que fossem decididos dessa ou daquela forma.
O consequencialismo na teoria de MacCormick é complexo. Para bem entendê-lo, não podemos perder de perspectiva que as consequências da deliberação devem ser consideradas pelo juiz não apenas com os olhos para a lide de que cuida, mas universalmente. O que sua decisão provocaria no mundo fático se fosse universalizada? Se todos os casos judicializados fossem decididos da mesma maneira? A avaliação das consequências pertinentes depende de critérios de justiça, ou seja, de referência a princípios constitucionais que, por sua vez, recorrem a pressupostos fundamentais sobre filosofia política29. MacCormick insiste em que esse procedimento – a aferição das prováveis consequências da deliberação genérica que sempre está envolvida na decisão do caso específico – é exigido necessariamente pelo elemento prospectivo do princípio da igualdade formal: o mesmo tratamento para casos semelhantes.
Não se cuida, portanto, de um consequencialismo meramente econômico ou de algum tipo de utilitarismo. A consideração das consequências, uma vez que se relacionam à solução universal fixada na deliberação judicial, deverá estar sempre ligada a uma exigência de isonomia, ainda que tal consideração venha – como inevitável – impregnada de uma concepção específica de justiça defendida pelo órgão decisor como adequada para a solução daquela controvérsia. Em todos os casos, estar-se-á lidando com problemas jurídicos, não apenas com questões morais, econômicas ou políticas tomadas em estado bruto30. Daí por que o consequencialismo maccormickiano é denominado precisamente de “consequencialismo jurídico”, sendo suas respectivas consequências chamadas de “implicações jurídicas” da decisão31. Como ele próprio refere: “[...] o que eu chamo de Direito da argumentação consequencialista é focado não tanto em estimar a probabilidade de mudanças comportamentais, mas na conduta possível e em seu determinado status normativo à luz da decisão que está sendo considerada”32. Para melhor compreender essa proposição teórica de consequencialismo, penso ser possível sua divisão em dois requisitos.
Para além desse problema orçamentário (proteção das contas da União em detrimento das contas dos Estados-membros), há o problema maior, que é a própria fonte de preocupação que ensejou a elaboração do presente artigo, que no caso é a quebra do pacto federativo.
Isso porque, o que se tem, em última instância, é uma violação do pacto federativo.
Tal afirmativa se dá porque se tem um órgão da União (Juiz Federal) bloqueando, exclusivamente, verbas do orçamento da saúde de outro ente federativo, sem tomar qualquer medida prevista no art. 139, IV, do CPC, em desfavor do ente a que está vinculado e que é o responsável primário pelo fornecimento daquele medicamento/tratamento vindicado em juízo.
Imagine-se o contrário: um juiz estadual bloqueando contas da União e se terá a noção da complexidade e magnitude do problema.
Nesse ponto, cabe ressaltar que ainda que os bloqueios exclusivos nas contas dos Estados-membros decorram de mera comodidade para concretizar o direito com maior celeridade (o que também é duvidoso), tal agir, sem qualquer fundamentação jurídica (como no dispositivo da sentença supracitada), e sem antes se tentar qualquer medida do art. 139, IV, do CPC para compelir o ente nacional a cumprir a decisão judicial, torna induvidoso o direcionamento exclusivo da responsabilidade para os Estados-membros, o que é feito por um órgão da União, que é parte no processo.
Tal situação assemelha-se a uma verdadeira "imunidade de execução" em favor do ente nacional, concedida por juízes federais, a ele umbilicalmente vinculados, tanto que a União simplesmente deixou de cumprir decisões liminares, ciente de que os juízes federais direcionarão o bloqueio contra o Estado-membro, o que se mostra manifestamente inconstitucional, principalmente porque as decisões sequer são fundamentadas, como várias proferidas pela Justiça Federal.
5. CONCLUSÃO
Como exposto, o bloqueio judicial para a concretização do direito à saúde foi uma criação pretoriana, excepcionando a indisponibilidade das verbas públicas, a fim de garantir o direito social à saúde.
Por outro lado, obviamente o excesso de bloqueios, numa verdadeira “banalização do sequestro de verbas públicas”, pode gerar uma crescente desorganização das políticas públicas de saúde, passando o Poder Judiciário a exercer grande controle das verbas públicas de saúde, o que traz consideráveis dificuldades para os gestores do Sistema Único de Saúde.
Por sua vez, nas ações que tramitam perante a Justiça Federal, frente à intocabilidade e proteção dada pela legislação às contas federais, que não são atingidas pelos bloqueios, as determinações de sequestro das contas dos Estados-membros realizadas por Juízes Federais, além de gerar a desorganização acima mencionada, também consubstanciam verdadeira violação ao pacto federativo, que é cláusula pétrea, já que um Juiz Federal, que é órgão da União, interfere diretamente no orçamento da saúde de outro ente da federação, mesmo quando a obrigação primária pelo cumprimento da ordem judicial é da União, protegendo, assim, as contas do ente nacional e minando as já combalidas contas dos Estados-membros. Para se vislumbrar a gravidade da situação basta imaginar a situação contrária, ou seja, se um juiz estadual determinasse o bloqueio de verbas nas contas da União.
Por conta disso, e tentando amenizar os problemas concretos decorrentes da própria “banalização do bloqueio das contas dos entes públicos, leia-se, dos entes públicos subnacionais”, já que a conta da União é protegida, como já se expôs, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação 146/2023, na qual, além de traçar diversos parâmetros para racionalizar as decisões nas ações envolvendo o direito à saúde, previu expressamente a possibilidade de ressarcimento no bojo dos próprios autos, o qual deve ser feito pelo ente responsável pela obrigação em favor daquele que efetivamente arcou com os custos durante o processo.
Pela pertinência, reproduz-se o art. 17 da Recomendação 146/2023:
“O ente federado que tenha custeado o medicamento, insumo, produto ou serviço poderá pleitear o ressarcimento nos próprios autos em desfavor do ente responsável, desde que ambos tenham figurado no polo passivo do processo de conhecimento”.
Dessa forma, em nosso sentir, esse gargalo institucional e verdadeira violação ao pacto federativo, com o direcionamento das decisões de Juízes Federais exclusivamente em desfavor dos Estados-membros, sem qualquer medida constritiva contra a União, que tem suas contas legalmente protegidas, demanda séria e profunda análise legal e jurisprudencial, inclusive com o apoio do Conselho Nacional de Justiça, buscando criar instrumentos que não apenas viabilizem, como efetivem o federalismo cooperativo, para criar imposições legais que tornem o ressarcimento previsto no art. 17 da Recomendação 146/2023 do CNJ uma realidade concreta nas ações judiciais que tramitam na Justiça Federal, para que a União efetivamente arque com o custo dos tratamentos que são de sua competência, ressarcindo nos próprios autos, e de imediato, os gastos feitos pelos entes subnacionais com medicamentos e tratamentos que cabem à União.
Tal medida mostra-se urgente e necessária, sob pena de se aprofundar ainda mais o federalismo centrípeto e assimétrico, com o crescente enfraquecimento das contas estaduais nas infinitas ações de saúde ajuizadas na justiça estadual e na justiça federal, já que em sua maioria os custos das ações de saúde recaem sobre os Estados-membros, que já apresentam notória crise fiscal, máxime em área tão fundamental como no orçamento destinado à saúde, que tem especial proteção constitucional.
BIBLIOGRAFIA:
Barcellos, Ana Paula D. Curso de Direito Constitucional. Disponível em: Minha Biblioteca, (5th edição). Grupo GEN, 2023.
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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 37ª ed. Barueri: Atlas, 2023.
Lima, Fernando Rister de S. Decisões do STF em direito à saúde. (Coleção teses em doutoramento). Disponível em: Minha Biblioteca, Grupo Almedina, 2020).
https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&sg_classe=REsp&num_processo_classe=1069810 acesso em 30/04/2024.
STJ. Segunda Turma. AgInt no AREsp n. 1.201.800/PE, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 7/8/2018, DJe de 13/8/2018.
STF. Segunda Turma. AI 639436 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 17-09-2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-221 DIVULG 16-10-2018 PUBLIC 17-10-2018).
Decisão de tutela provisória proferida no processo n. 1015910-66.2023.4.06.3807 da 2ª Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Montes Claros-MG (Processo Eletrônico – ID 1473047861).
Graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Direito com pós graduaçao em Direito Constitucional. Procurador do Estado de Minas Gerais.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LAPORTE, RODRIGO COELHO. O problema dos bloqueios feitos por juízes federais nas contas dos estados-membros e a possível violação ao pacto federativo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 jun 2024, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/65565/o-problema-dos-bloqueios-feitos-por-juzes-federais-nas-contas-dos-estados-membros-e-a-possvel-violao-ao-pacto-federativo. Acesso em: 21 nov 2024.
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