RESUMO: O presente estudo busca examinar o papel da Defensoria Pública no ordenamento jurídico brasileiro, cujo papel foi fortalecido com o advento da EC nº 80/14. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica, jurisprudencial e legal como forma de enfatizar a importância do órgão defensorial, na busca pelo amplo acesso à Justiça, analisando-se as alterações provocadas pela EC 80/94 e seus impactos na atuação da Defensoria Pública, encartada no ordenamento jurídico como instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado, que instrumentaliza o regime democrático, incumbindo-lhe, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus (judicial e extrajudicial) dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados. Nesse ínterim, a presente monografia parte do exame das principais características da Defensoria Pública, estabelecendo seus principais avanços, sem descuidar dos aprimoramentos ainda necessários para garantir uma efetiva tutela dos direitos dos assistidos, pessoas vulneráveis nas mais diversas formas. Conclui-se que a Defensoria possui importância destacada no ordenamento jurídico, mas ainda carece de recursos técnicos, financeiros, humanos, relevância política e respeito por parte das autoridades, sobretudo político, que pouco conhecem da instituição. O fortalecimento da Defensoria Pública é um passo necessário para o aprimoramento do Estado Democrático de Direito por viabilizar, em termos concretos, o aperfeiçoamento da prestação da assistência jurídica aos necessitados, sejam eles hipossuficientes no sentido econômico (funções típicas), ou hipossuficientes no sentido jurídico ou organizacional (funções atípicas).
Palavras-chave: Defensoria Pública.. Desafios. Aprimoramentos necessários. Perspectivas. Democracia.
1.INTRODUÇÃO
Embora a história revele experiências embrionárias acerca da instituição defensorial no Brasil, certo é que a Defensoria Pública, enquanto órgão componente do sistema judicial brasileiro, integrante das funções essenciais da justiça, apenas surgiu com a Constituição de 1988, estando prevista no art. 134 do texto constitucional.
Isso porque até 1988, as Constituições até faziam referência expressamente à atividade de assistência judiciária, mas não ao órgão que deveria prestá-la, o que, ao fim das contas, acarretava a sua inoperância e estimulava a ineficiência do serviço.
Com efeito, ao invés da assistência a órgãos inseridos na estrutura do Poder Executivo, o constituinte de 1988 definiu que a assistência jurídica deveria ser prestada por uma instituição independente, especialmente incumbida deste mister, instituição designada pela Lex Legum como Defensoria Pública.
De fato, agora, com a previsão de uma instituição especificamente voltada para prestar a assistência jurídica aos necessitados, o serviço público passa a ser realizado por um corpo especializado de agentes, que possuem estrutura própria e se dedicam exclusivamente a esta tarefa, de certo que a sociedade sai beneficiada deste rearranjo operado, visto que o serviço de assistência jurídica passou a ser prestado de maneira mais eficiente, técnica e por profissionais qualificados, recrutados mediante concurso público de provas e títulos.
Por outro lado, cumpre destacar que a mera previsão constitucional da Defensoria Pública, no fim da década de 80, não significou, sponte propria, a estruturação e o aparelhamento das Defensorias pelo Brasil adentro[1]. Exemplo disso são os inúmeros casos de Estados que ainda hoje não as possuem, sem contar o lamentável quadro de sucateamento em que se encontram muitas delas, cujos governantes infelizmente ainda não despertaram para a importância da instituição e para os benefícios que uma defensoria bem equipada podem trazer à população assistida.
Nesse ínterim, vale destacar que na marcha do processo legislativo pelo qual passou a Emenda Constitucional em comento, foram apensadas à Proposta de Emenda Constitucional n 247/2013 (PEC 4/2014 no Senado Federal, que depois se converteu na EC 80/14), foram apresentadas justificativas pelos deputados Mauro Benevides, Alessandro Molon e André Moura, as quais traduzem de maneira didática e precisa o verdadeiro propósito da citada Emenda Constitucional, revelando a que veio:
A Defensoria Pública é uma instituição pública que representa a garantia do cidadão em situação de vulnerabilidade de ter acesso à justiça, por meio de serviços inteiramente gratuitos e de qualidade.
Elevada à categoria de instituição constitucional em 1988, apenas em 2004 o Congresso Nacional lhe conferia a necessária autonomia administrativa, financeira e orçamentária.
Passadas mais duas décadas, a Defensoria Pública ainda não está instalada em todos os Estados da Federação. Em alguns casos, sequer o primeiro concurso público para o cargo de defensor público foi iniciado ou concluído.
Da modo geral, o panorama da Defensoria Pública no Brasil ainda é marcado por uma grande assimetria, com unidades da federação onde seus serviços abrangem a totalidade das comarcas - com defensores públicos e funcionários em quantidade razoável – e outros onde nem ao meros 10% das comarcas são atendidas.
Recentemente, a exata dimensão da falta do serviço da Defensoria Pública na maior parte das cidades brasileiras foi detectado no estudo denominado 'Mapa a da Defensoria Pública no Brasil", elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea, fundação pública vinculada à Presidência da República, juntamente com a Associação Nacional dos Defensores Públicos — ANADEP e Ministério da Justiça.
De acordo com esse estudo, no Brasil há 8.489 cargos criados de defensor público dos Estados e do Distrito Federal, dos quais apenas 5.054 estão providos (59%). Esses 5.054 defensores públicos se desdobram para cobrir 28% das comarcas brasileiras, ou seja, na grande maioria das comarcas, o Estado acusa e julga, mas não defende os mais pobres.
Na Defensoria Pública da União a situação não é diversa: São 1270 cargos criados e apenas 479 efetivamente providos, para atender 58 sessões judiciárias de um total de 264, o que corresponde a uma cobertura de 22%.
A Constituição Federal de 1988, portanto, precisa ser mais enfática, no sentido de assegurar a todos os cidadãos brasileiros, em todo o seu território, o acesso aos serviços da Defensora Pública.
Esse é o primordial objetivo dessa Proposta de Emenda à Constituição, estabelecendo uma meta concreta, legítima e plenamente factível de ser alcançada, para que número de defensores públicos na unidade jurisdicional (comarca ou sessão judiciária, conforme o caso) seja proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população. Grifos acrescidos. (BENEVIDES, Mauro; et al. Disponíveleem:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1064561&filename=PEC+247/2013. Acesso em 14.11.2015)
Pois bem, certo é que desde sua criação constitucional, a Defensoria Pública (seja a da União, seja a dos Estados), vem experimentando uma exitosa, profícua e exponencial valorização em nosso ordenamento jurídico. E é importante que assim seja, até mesmo como forma de viabilizar a realização de seu múnus público de maneira plena e escorreita, efetivando-se direitos fundamentais[2], e proporcionando à população assistida uma orientação jurídica adequada, eficiente e capacitada, na tentativa de fornecer um serviço público defensorial de qualidade, em detrimento de prestações deficitárias, que infelizmente ainda é traço marcante no serviço público brasileiro.
Nessa escalada institucional, destaca-se que a Lei Orgânica da Defensoria (LC 80/94) representou um marco na história da Defensoria, porquanto traçou atribuições, princípios e prerrogativas que alicerçam a atuação das defensorias, em geral e dos defensores, em particular.
É que a Lei Complementar 80, de 12 de janeiro de 1994, veio cumprir o mandamento instituído pelo § 1º do art. 134 da Constituição, ao dispor sobre a organização da Defensoria Pública da União e da Defensoria Pública do Distrito Federal, além de traçar normas gerais para a estruturação das Defensorias Públicas estaduais.
Avante, no processo de ascensão institucional da Defensoria, tem-se que em 7 de outubro de 2009 entrou em vigor a LC 132, responsável por operar profundas modificações na sistemática da LC 80/94. Dentre muitas das medidas adotadas, destacam-se a expansão das atribuições da Defensoria Pública, a instituição de novas prerrogativas para os seus membros, além da regulamentação da autonomia funcional, administrativa e financeira da Defensoria Pública dos Estados (LIMA, 2015). De fato, a LC 132/09 detalhou a definição da Defensoria Pública, fortalecendo-a ao intensificar o seu papel na efetivação dos direitos humanos e na defesa coletiva de direitos dos necessitados:
Art. 1º da LC 132/09 - A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal. (Grifos acrescidos)
Nessa onda de valorização da Defensoria Pública, tornou-se premente a necessidade de garantir autonomia administrativa, funcional e administrativa da instituição, as quais foram bem delineadas pelo o professor Márcio André Lopes Cavalcante (2015, p.2) que expõe com a clareza que lhe é peculiar[3]:
a) Autonomia funcional: é a prerrogativa assegurada aos Defensores Públicos de, no exercício de suas funções, não estarem subordinados tecnicamente a ninguém, devendo atuar de acordo com seu convencimento técnico-jurídico e sempre no interesse do assistido, respeitando, obviamente, as leis e a Constituição Federal.
b) Autonomia administrativa: consiste na garantia conferida à Defensoria Pública de que ela própria é quem irá se governar, tomando as decisões administrativas, sem necessidade de autorização prévia ou ratificação posterior por parte de outros órgãos ou entidades.
c) Autonomia financeira: é a própria Defensoria Pública quem, dentro dos limites estabelecidos na LDO, decide qual será a proposta de seu orçamento que será encaminhada ao Parlamento para lá ser votada. (Grifos no original)
No plano constitucional, há de se ressaltar que a Emenda Constitucional 45/2004 trouxe importantes contribuições à Defensoria. Graças a tal emenda, garantiu-se às Defensorias Públicas estaduais a autonomia funcional, administrativa e orçamentária, conquista que apenas seria assegurada às Defensorias do Distrito Federal e da União por força das emendas 69/2012 e 74/2013, respectivamente, e que ainda assim, estão sub judice perante o Supremo Tribunal Federal, por vislumbrarem inconstitucionalidade no deferimento da benfazeja autonomia defensorial[4].
É importante que se diga que as alterações constitucionais foram necessárias, inclusive como forma de adequar o texto da Constituição ao papel que se espera da Defensoria Pública e aos ditames do panorama do sistema jurídico vigente. Sobre essas transformações constitucionais, Adriano Sant’Ana Pedra expõe:
A Constituição deve estar em harmonia com a realidade, e deve se manter aberta e dinâmica através dos tempos. Isto porque uma Constituição não é feita em um determinado momento, mas realiza-se e efetiva-se constantemente. As mudanças constitucionais são necessárias como meio de preservação e conservação da própria Constituição, visando ao seu aperfeiçoamento, buscando, em um processo dialético, alcançar a harmonia com a sociedade. Grifos acrescidos. (PEDRA, 2005, p. 130)
De todo modo, certo é que tais modificações constitucionais foram imprescindíveis à sua desenvoltura institucional, conferindo maior liberdade orçamentária, administrativa e funcional, representando um considerável incremento na liberdade defensorial, porquanto financeira e orçamentariamente desvencilhada do Poder Executivo:
No processo de amadurecimento legislativo da Defensoria Pública, a instituição ganhou novas funções, deixando de se constituir como um mero organismo estatal apto a prestar assistência jurídica individual e se apresentando como um novo vértice do sistema de Justiça, principalmente em razão de sua autonomia concedida pelas Emendas Constitucionais n. 45/04, 69/12 e 74/13. Grifos acrescidos. (SILVA, 2014, p. 13)
Mais recentemente, de novo o número 80 (este número que tem força cabalística para a Defensoria), entrou em cena para resguardar a instituição e arregimentar as prerrogativas e o vigor do órgão público. Com efeito, a Emenda Constitucional 80/2014 deu passos largos nessa trajetória em busca da consolidação de uma Defensoria Pública autônoma, estruturada, militante, forte e hígida, porquanto conformou o órgão defensorial, estabelecendo a simetria constitucional com o Poder Judiciário e o Ministério Público, constitucionalizando a legitimidade para a tutela coletiva (de direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos), atribuindo-lhe ainda a iniciativa de lei, entre outras novações, conforme adiante se verá.
Em doutrina, Franklyn Roger, Defensor Púbico do Estado do Rio de Janeiro e estudioso empenhado nos assuntos defensoriais, esclarece:
O universo da Defensoria Pública foi presenteado com a aprovação e promulgação Emenda Constitucional n. 80, de 29 de maio de 2014, fruto da Proposta de Emenda à Constituição n. 04/14 do Senado Federal, também conhecida como PEC n. 247/13, em razão de sua numeração na Câmara dos Deputados.
Em linha de síntese, a alteração do texto constitucional culminou na reformulação do art. 134 da Constituição Federal e na reestruturação das Seções atinentes ao Capítulo das Funções Essenciais à Justiça. Além disto, a estrutura funcional e administrativa da Defensoria Pública ganham novas funções, em consequência da aplicação das normas constitucionais que regulam matérias administrativas aos tribunais. (SILVA, 2014, p. 8)
Cumpre, ainda, destacar que as alterações proporcionadas pela novel Emenda 80/14 atendem aos preceitos de uma Hermenêutica Contemporânea, notadamente o Método Hermenêutico Concretizador, cujo expoente máximo é Konrad Hess. Para o jurista alemão, notável pelo ensaio intitulado “A Força Normativa da Constituição”, quanto mais o texto constitucional respeitar a realidade fática ao prescrever suas determinações, devidamente acompanhado por um processo de conscientização e respeito normativo por parte de seus destinatários, maior será a eficácia das normas constitucionais e a sua capacidade de influenciar a realidade. O jurista alemão arremata:
A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra despertar “a força que reside na natureza das coisas”, tornando-a ativa. Ela própria converte-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social. Essa força impõe-se da forma tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição, quanto mais forte mostra-se essa convicção entre os principais responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a intensidade da força normativa da Constituição apresenta-se em primeiro plano como uma questão de vontade normativa, de vontade da Constituição (Wille zur Verfassung)
(...) a tendência parece encaminhar-se para o malbaratamento (...) do respeito à Constituição. Evidentemente, essa tendência afigura-se tanto mais perigosa se se considera que a Lei Fundamental não está plenamente consolidada na consciência geral, contando apenas com um apoio condicional. Grifos acrescidos. (HESSE, 2009, p. 137)
Feito esse breve apanhado geral, a partir de agora, a análise do presente estudo centrar-se-á no apontamento de algumas dessas modificações, registrando a importância delas para a consolidação da Defensoria Pública enquanto instituição permanente de relevância ímpar para a ordem jurídica brasileira e, sobretudo, para a população assistida, que necessita dos préstimos da valorosa Defensoria Pública.
2. AS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA EC 80/14 E O FORTALECIMENTO DA DEFENSORIA PÚBLICA
2.1 DA POSIÇÃO ESTRUTURAL DA DEFENSORIA PÚBLICA NO TEXTO CONSTITUCIONAL. UMA SEÇÃO PRÓPRIA COMO ESTANDARTE DE SUA AUTONOMIA
A primeira alteração digna de nota dentre aquelas que foram implementadas pela Emenda Constitucional em apreço diz respeito à posição estrutural da Defensoria Pública no plano das funções essenciais à justiça, uma vez que a Seção III – Da Advocacia e da Defensoria Pública, integrante do Capítulo IV, trazia a equivocada idéia de que a Defensoria Pública faria parte do mesmo regime jurídico da Advocacia. A partir de agora, a Defensoria ganhou seção própria (Seção IV), apartada da Advocacia, o que enfatiza a distinção havida entre ambas.
De fato, é intensa a cizânia doutrinária e jurisprudencial acerca do enquadramento das funções da advocacia e da Defensoria Pública. É dizer: discute-se com calor e fôlego se o defensor público pode ou não ser enquadrado no gênero “advogado”, considerando-se que o Estatuto da OAB (Lei 8.906/94), especificamente em seu art. 3°, prevê que os membros da Defensoria Pública estão sujeitos ao regime jurídico ali estatuído.
A bem da verdade, desde a criação do órgão defensorial em 1988 e, principalmente, após a promulgação da LC 80/94 evidenciou-se uma discrepância entre as duas categorias, de sorte que, por mais que o defensor exerça atividades típicas de advogado (peticionamento, acompanhamento processual, orientação e assessoramento jurídico), as figuras do Defensor e do Advogado não se confundem entre si.
Tanto é assim que o art. 4º, § 6º da LC n. 80/94 assegura que a capacidade postulatória do Defensor Público é obtida por meio de sua nomeação e consequente posse no cargo, revelando a total desnecessidade de vinculação dos defensores públicos aos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. Em outras palavras, uma pessoa aprovada no concurso para o cargo de “defensor público”, depois de ultimadas todas as etapas e devidamente nomeada, possuirá capacidade postulatória, ainda que não ostente vínculo anterior com a Ordem dos Advogados do Brasil. O defensor não precisa ter sido advogado previamente, não precisa sequer ter feito o Exame de Ordem; eis a intelecção da LC 80/94.
Nem se diga que o defensor é advogado porque exerce atividade típica de advocacia. Não. Isso porque os promotores de justiça e procuradores da República, por exemplo, exercem iguais atividades típicas de advocacia e nem por isso são denominados “advogados” ou se submetem ao regime da advocacia, estabelecido pela Lei 8906/94. Também, na esteira do que preconiza o art. 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, qualquer um do povo pode impetrar Habeas Corpus, instrumento ordinariamente manejado pelos causídicos e que nem por isso se revela suficiente a legitimar ao cidadão do título de “advogado”.
Isto é, embora próximas, as atividades de Defensoria e Advocacia não se confundem. Talvez por isso, por ser tão freqüente o baralhamento de conceitos, o Constituinte reformador cuidou, agora, de segregar a Defensoria Pública da Advocacia, franqueando-lhe uma seção própria, ponderando-a como função essencial autônoma, destinada à assistência jurídica gratuita daqueles que dela necessitam. Tanto é assim que no Parecer 312/2014, acerca da proposta de Emenda Constitucional, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal afirmou[5]:
Em termos de juridicidade, não há ofensa a outras normas ou princípios jurídicos em vigor, sendo a Proposta a via jurídica adequada ao fortalecimento da instituição da Defensoria Pública, em relação às demais funções essenciais à Justiça, e à efetividade do direito fundamental dos necessitados à assistência judiciária. (...) No que se refere ao mérito, entendemos que as alterações propostas ao texto constitucional são de extrema importância para a sociedade brasileira, pois a Defensoria Pública é uma instituição que promove a, garantia dos necessitados ao acesso à justiça, por meio de democráticos e modernizantes introduzidos no Poder Judiciário através da Reforma Constitucional do Judiciário (EC n. 45, de 2004).
Através das alterações ao art. 93, a EC n. 45/2004 estabeleceu a regra da fixação dá residência do juiz na respectiva comarca, salvo com autorização do tribunal. Também criou normas mais objetivas para aferir a promoção por merecimento' — seja de entrância para entrância ou na carreira —, inclusive com a obrigatoriedade de participação de cursos e aperfeiçoamento e a aferição por meio de critério de desempenhe e produtividade.
Aliás, o art. 93 da CF — introduzido pela EC n. 45/2004 já dispõe que “o número de juízes na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população”, norma essa que em boa hora deve ser aplicada também à Defensoria Pública.
Por fim, a PEC estabelece uma sessão própria para a Defensoria Pública. Como se sabe, o capítulo que trata das ‘Funções Essenciais à Justiça’ (Cap. IV do Título III) se divide em três sessões: ‘Do Ministério Público’, ‘Da Advocacia Pública’ e ‘Da Advocacia e da Defensoria Pública’.
Portanto, assim como a Advocacia Pública constitui uma sessão própria, com suas normas e estatuto jurídicos próprios, o mesmo ocorre com a Defensoria Pública.
Com a nova formatação introduzida pela Emenda Constitucional 80/14, criou-se uma nova Seção (Seção IV), no Capítulo IV do Título III da Constituição, destinada exclusivamente ao regramento da Defensoria Pública, demonstrando-se a sua total autonomia e desvinculação ao regime jurídico da Advocacia, harmonizando-se desta forma o texto Constitucional aos apelos da doutrina militante em prol da valorização institucional, na esteira do que já vinha reconhecendo entusiasta jurisprudência.
2.2 O APRIMORAMENTO CONCEITUAL E O INCREMENTO FUNCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA NA NOVA SISTEMÁTICA IMPLEMENTADA PELA EC 80/14.
Outra alteração a ser comentada diz respeito ao novo texto do art. 134 da Constituição Federal, que doravante segue em sintonia com o art. 1º da LC n. 80/94, ao estipular que:
A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.
Assim, com a nova Emenda, foi reconhecido o caráter permanente da Defensoria Pública, na esteira do que já se delineara para o Ministério Público no art. 127 do texto constitucional, desde o texto originário de 1988. Disso decorre o fato de que, em virtude do caráter perene da instituição, a Defensoria Pública não poderá ser objeto de qualquer norma jurídica tendente à sua extirpação do ordenamento jurídico, circunstância que representa uma inaudita conquista à instituição, apesar de a doutrina majoritária já alertar para a proibição de tal retrocesso, à míngua de expressa previsão constitucional.
Ademais, é válido reiterar o fato de que, consoante o novo arranjo textual do art. 134, a Defensoria Pública passa a encorpar o papel de instrumentalizadora do regime democrático brasileiro, alteração que pode ser encarada sob duas óticas (LIMA, 2015). Isto é, sob o ponto de vista institucional (interna corporis), reforça-se a necessidade de aprimoramento de mecanismos democráticos no seio da Defensoria Pública, em especial no tocante à figura a Ouvidoria-Geral, órgão auxiliar da estrutura das Defensorias Públicas.
Sob outro prisma, o reflexo do regime democrático nos obriga a reconhecer que a Defensoria Pública deve, no desempenho de suas funções, potencializar a sua atuação, fortalecendo-se a democracia e a própria cidadania, na tentativa de assessorar juridicamente a população assistida que, além da hipossuficiência econômica, jurídica ou organizacional, é quase sempre deficitária de atenção política, marginalizada por muitos gestores e carente de políticas públicas verdadeiramente inclusivas e eficientes.
Pois bem, o fortalecimento da Defensoria Pública, manifesto nas alterações realizadas pela EC 80/14, caminha no sentido de aprimorar o amplo Acesso à Justiça, nos moldes antevistos por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, que já na década de 60, doutrinaram acercas das ondas renovatórias do acesso à Justiça. Pedro Lenza pontua a importância dos citados professores italianos ao resumir:
A primeira onda teve início em 1965, concentrando-se na assistência judiciária. A segunda referia-se às reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses difusos, especialmente nas áreas de proteção ambiental e do consumidor. O terceiro movimento ou onda foi pelos autores chamado de ‘enfoque do acesso à justiça’, reproduzindo e buscando as experiências anteriores, mas indo além, tentando atacar as barreiras de acesso de modo mais articulado e compreensivo. (LENZA, 2014, p. 893)
Com escólio também na doutrina de Cappelletti e Garth, mas com os olhos voltados para a sistemática processual brasileira, Teori Albino Zavascky leciona:
As modificações do sistema processual civil operaram-se em duas fases, ou “ondas”, bem distintas. Uma primeira onda de reformas, iniciada em 1985, foi caracterizada pela introdução, no sistema, de instrumentos até então desconhecidos do direito positivo, destinados (a) a dar curso a demandas de natureza coletiva, (b) a tutelar direitos e interesses transindividuais, e (c) a tutelar, com mais amplitude, a própria ordem jurídica abstratamente considerada. E a segunda onda reformadora, que se desencadeou a partir de 1994, teve por objetivo não o de introduzir novos, mas o de aperfeiçoar ou de ampliar os já existentes no Código de processo, de modo a adaptá-lo às exigências dos novos tempos” (ZAVASCKI, 2014. p. 14-15).
Certo é que o recrudescimento institucional da Defensoria Pública, verdadeiramente, significa considerável melhoria no acesso à Justiça e aos mecanismos jurídicos disponíveis à população (inclusive extrajudicial). Destaque-se, no entanto, como bem adverte Vânia Márcia Damasceno Nogueira que já não basta peticionar:
O acesso à justiça compreende uma gama de princípios paralelos a serem cumpridos. Celeridade, contraditório, ampla defesa, decisões justas, ações afirmativas que possam, no caso concreto, transformar a realidade, buscar a redução das desigualdades e a erradicação da pobreza, que é origem de todas as mazelas sociais adjacentes à violência urbana. (NOGUEIRA, 2011, p. 29)
Nesse ponto, importa registrar o fato de que a Constituição Federal passa a tratar de funções defensoriais de natureza típica e atípica em seu próprio texto, expressando de forma nítida que a Defensoria Pública é uma instituição com uma nova estrutura, atuando na promoção de direitos humanos e na tutela em caráter individual e coletivo, dos direitos dos necessitados.
Acerca das funções típicas, Silvio Roberto de Mello Moraes aduz:
as funções típicas seriam aquelas exercidas pela defensoria Pública na defesa de direitos e interesses dos hipossuficientes, ao passo que as funções atípicas seriam aquelas outras, exercidas independentemente da situação econômica daquele ou daqueles beneficiários com a atuação da Instituição. (MORAES, 1995, p. 28)
Em outras palavras, o divisor de águas entre as atribuições típicas e atípicas da Defensoria passa pela análise da hipossuficiência da parte assistida, de forma que, em sem tratando de atuação fomentada pela capacidade econômica (incapacidade econômica, na verdade), estar-se-á diante de uma atuação típica. Quando a hipossuficiência for jurídica, organizacional ou outra que o valha (que não econômica, frise-se), poder-se-ia falar em função atípica (v.g a atuação no processo penal para réus abastados que não constituem advogados, a curadoria especial de réus revéis, etc).
Nesse passo, a Constituição Federal, por meio da nova Emenda, cuidou de abarcar tais distinções, estabelecendo de maneira taxativa que a Defensoria Pública exerce atribuições típicas e atípicas, todas elas igualmente legítimas e consentâneas com o ordenamento jurídico. Em doutrina, Ada Pellegrini Grinover aborda a temática de maneira pontual e acertada, quando expõe[6]:
Mesmo que se pretenda ver nas atribuições da Defensoria Pública tarefas exclusivas – o que se diz apenas para argumentar -, ainda será preciso interpretar termo necessitados, utilizado pela Constituição.
Pois é nesse amplo quadro, delineado pela necessidade de o Estado propiciar condições, a todos de amplo acesso á justiça que eu vejo situada a garantia da assistência judiciária. E ela também toma uma dimensão mais ampla, que transcende o sentido primeiro, clássico e tradicional. Quando se pensa em assistência judiciária, logo se pensa na assistência aos necessitados, aos economicamente fracos, aos ‘minus habentes’. É este, sem dúvida, o primeiro aspecto da assistência judiciária: o mais premente, talvez, mas não o único.
Isso porque existem os que são necessitados no plano econômico, mas também os necessitados do ponto de vista organizacional. Ou seja, todos aqueles que são socialmente vulneráveis: os consumidores, os usuários de serviços públicos, os usuários de planos de saúde, os que queiram implementar ou contestar políticas públicas, como as atinentes à saúde, á moradia, ao saneamento básico, ao meio ambiente, etc. (Grifos acrescidos)
Acima disto, há de ressaltar que a promoção dos direitos humanos independe da condição econômica ou social de seus titulares, em razão do caráter universal que estes exprimem (NETO, 2014), motivo pelo qual a Defensoria Pública no desempenho desta função institucional de natureza atípica, buscará conceder a mais ampla assistência, não apenas jurídica, mas de qualquer outra vertente que se afigure necessária para a salvaguarda destes direitos.
2.3 A INCORPORAÇÃO DOS PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS DA DEFENSORIA AO TEXTO CONSTITUCIONAL
Outra alteração implementada pela recente Emenda versa sobre a inclusão do § 4º ao art. 134 da Constituição, o qual passou a prever de maneira taxativa como “princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, aplicando-se também, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96”.
Como bem assinala a doutrina, trata-se de um reforço hermenêutico aos princípios norteadores da Defensoria Pública, de molde que o enxerto dos princípios institucionais ao texto constitucional apenas fortalece a importância destes postulados normativos no seio da instituição, sendo certo que tais máximas já se encontravam presentes no art. 3º da Lei Complementar n. 80/94, e que agora foram transportados para o texto Constitucional.
É importante que assim seja, uma vez que, embora se questione a elasticidade e a prolixidade do texto constitucional, não há negar que muitas das discussões jurídicas partem da premissa de que se determinada norma jurídica (seja ela regra ou princípio) não se encontram cravadas no texto constitucional, ela não deveria merecer respaldo jurídico, na tentativa de infirmar seu valor.
Quem assim pensa, sustenta a ausência de previsão constitucional, como forma de minorar a importância de determinados institutos, como se apenas tivesse importância ou valor jurídico os dispositivos contidos no texto constitucional. Em palavras mais simples, só valeria o que está na Constituição.
Ou seja, desde a promulgação da LC 80/94, e apesar das reformas pontuais por ela sofridas (com a LC 132/09, por exemplo), havia uma renitente corrente doutrinária que insistia em negar à Defensoria Pública a nuance de instituição permanente, negando-lhe, a reboque, o reconhecimento dos princípios institucionais da unidade, indivisibilidade e independência funcional que alicerçam sua atuação.
Alegava-se, para tanto, o fato que, em se tratando do Ministério Público, o Constituinte desde a gênese da atual Constituição previra tais princípios, na tentativa de encampar a tese de que a Defensoria não mereceria tratamento análogo, em virtude da calada constitucional. Vislumbrava-se como silêncio eloqüente o que não passava de atecnia do Constituinte.
Por sorte, e como forma de suplantar quaisquer dúvidas sobre o tema, a EC 80/14, na esteira do que previra a Lei Orgânica da Defensoria, alçou à casta constitucional os princípios que antes habitavam as orbes legais, sepultando-se de uma vez por todas os argumentos no sentido de negar importância ou enfraquecer os princípios institucionais da Defensoria, pelo simples fato de não estarem, até agora, dentro do texto Constitucional.
Bem assim, a Unidade, a Indivisibilidade e a Independência Funcional, princípios a partir de agora elevados à dignidade constitucional, no sistema normativo brasileiro, tornam a Defensoria Pública uma instituição diversa das Procuradorias Jurídicas e revela que a atividade por ela prestada não se confunde com a advocacia, conforme já exposto anteriormente.
Por Unidade, deve-se compreender o fato de que a Defensoria Pública compõe-se de um todo orgânico, repleto de membros que agem em seu nome, regidos todos eles por uma única chefia e um mesmo regime jurídico, tendo como norte a consecução das funções institucionais previstas em lei. Isto é, os defensores integram um mesmo órgão, regidos pela mesma disciplina, por diretrizes e finalidades próprias, e sob o pálio de uma mesma chefia. Como bem elucidou Paulo Galliez (1995, p. 39), “todos os membros da carreira fazem parte de um todo, que é a Defensoria Pública”.
No entanto, muito embora a atividade prestada pela Defensoria Pública não seja passível de interrupção, os membros que compõem o seu corpo estão sujeitos a intempéries da vida (férias, licenças, afastamentos, aposentadoria, morte, etc.), razão por que surge a Indivisibilidade como princípio capaz de autorizar que os membros da Defensoria Pública possam substituir-se uns aos outros, mediante critérios objetivos previamente estabelecidos em lei ou atos normativos internos, assegurando-se aos seus membros a não vinculação às manifestações de seus antecedentes durante o desempenho da função (BARROS, 2015).
Assim, em linhas gerais, a Indivisibilidade indica que os membros da Defensoria podem ser substituídos uns pelos outros sem que haja prejuízo ao exercício das funções do órgão, tanto que “podem alternar entre si sem que haja paralisação do serviço jurídico prestado pela Defensoria Pública” (LIMA, 2015, p. 89).
Por fim, a Independência Funcional sobreleva-se como princípio dos mais valiosos para a Instituição, porquanto, para bem cumprir seu dever constitucional de manutenção do Estado Democrático de Direito, necessita guardar uma posição de independência e autonomia em relação aos demais poderes e organismos estatais e ao próprio Poder ao qual se encontra, de certa forma, vinculada.
Talvez por isso Ronald Dworkin (2010, p. 233) tenha concluído que “o Direito Constitucional não poderá fazer um verdadeiro progresso enquanto não isolar o problemas dos direitos contra o Estado e tornar esse problema parte de sua própria agenda”. Assim, torna-se imperioso que a Defensoria Pública esteja imune a eventuais ingerências políticas, para que possa atuar com autonomia e liberdade:
seria um contra-senso (sic) que estas funções não gozassem de independência, porque qualquer pressão oriunda de um Poder do estado poderia cercear a promoção, ou seja, a atuação do órgão de provedoria de justiça. A independência destas funções é essencial á justiça. (NETO, 2005, p. 114)
Em reforço a tal entendimento, vale destacar que no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.903/PB, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu na esteira do voto do relator, ministro Celso de Mello do seguinte modo:
A Defensoria Pública, enquanto instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, qualifica-se como instrumento de concretização dos direitos e das liberdades de que são titulares as pessoas carentes e necessitadas. É por essa razão que a Defensoria Pública não pode (e não deve) ser tratada de modo inconseqüente pelo Poder Público, pois a proteção jurisdicional de milhões de pessoas - carentes e desassistidas -, que sofrem inaceitável processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada organização e da efetiva institucionalização desse órgão do Estado.
De nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apóiam - além de desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares - também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional (CF, art. 134), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da norma inscrita no art. 5º, inciso LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no art. 134, ambos da Constituição da República. (...)
É por esse motivo que a Defensoria Pública foi qualificada pela própria Constituição da República como instituição essencial ao desempenho da atividade jurisdicional do Estado. Não se pode perder de perspectiva que a frustração do acesso ao aparelho judiciário do Estado, motivada pela injusta omissão do Poder Público - que, sem razão, deixa de adimplir o dever de conferir expressão concreta à norma constitucional que assegura, aos necessitados, o direito à orientação jurídica e à assistência judiciária, culmina por gerar situação socialmente intolerável e juridicamente inaceitável. Grifos acrescidos. (STF. ADI 2903/PB. Min Celso de Mello. Julgamento em 08/10/2008)
Com efeito, parece acertado inferir que a matéria dos princípios institucionais da Defensoria Pública, trazidas agora para o texto constitucional, contribui para uma melhor atuação institucional, permitindo a organização da Defensoria Pública de modo que a assistência jurídica prestada pelos seus membros seja a mais completa possível, atendendo-se à sua vocação, bem pontuada pelo ministro Celso de Mello no julgamento da ADI 2903 acima referenciada.
2.4 A INICIATIVA DE LEI CONFERIDA À DEFENSORIA PÚBLICA
Outra importante alteração trazida à lume pela EC 80/94 tangencia a questão da legitimidade para a iniciativa das leis que a estruturam, visto que o § 1º do art. 134 preconiza que “Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira(...)”.
De fato, a partir de agora, o Defensor Público Geral Federal terá iniciativa legislativa para editar normas específicas da Defensoria Pública da União, através do processo legislativo constitucional, observando-se a exigência de Lei Complementar e a relação com as normas apontadas no art. 93.
Em se tratando das defensorias estaduais e distrital, tem-se que os respectivos Governadores terão legitimidade concorrente com os Defensores Públicos Gerais para a proposição de normas específicas, seguindo a mesma linha acima apontada para o âmbito federal. Consoante aponta Guilherme Freire de Melo Barros:
Com essa alteração da EC 80/2014, as Defensorias Públicas passam a deter um grau de autonomia ainda maior, pois, nos termos do artigo 96, lhes compete privativamente propor ao respectivo Poder Legislativo alteração de número de membros, bem como a criação e extinção de carreiras de apoio. Isso significa que a Defensoria Pública agora não possui a garantia apenas de li orçamentária, mas sim de leis que regem a carreira como um todo. (BARROS, 2015, p. 31)
Desta feita, os respectivos chefes institucionais poderão propor diretamente ao Poder Legislativo respectivo a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares, bem como a fixação do subsídio de seus membros (alínea ‘b’), e também a alteração das atribuições previstas em lei (alínea ‘d’).
A inovação simboliza verdadeira conquista à autonomia da Defensoria Pública, cujos chefes, mais próximos da realidade da instituição e dos problemas enfrentados pelos seus membros, poderão propor leis destinadas ao aprimoramento do órgão, adequando as Defensorias às suas necessidades, viabilizando melhorias na prestação da assistência jurídica fornecida aqueles cidadãos que dela necessitam (BARROSO, 2012, p. 315).
2.5 A EXIGÊNCIA DE TRÊS ANOS DE ATIVIDADE JURÍDICA E A QUESTÃO DA PROPROCIONALIDADE DO NÚMERO DE DEFENSORES PÚBLICOS NAS COMARCAS BRASILEIRAS
No atual panorama jurídico-institucional da Defensoria, o ingresso na carreira pressupõe a realização de concurso público de provas e títulos, com a participação da Orem dos Advogados do Brasil (OAB), a demonstração da atividade jurídica pelo prazo de 3 (três) anos e o respeito à ordem de classificação nas nomeações. Em breve análise acerca do assunto, Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires e Paulo Gustavo aduzem:
Os profissionais do Direito que ocupam cargo de Defensor Público a ele ascendem por meio de concurso de provas e títulos. Com vistas à eficiência das suas relevantes funções, têm garantida a inamovibilidade e vedada a advocacia fora das atribuições institucionais. A importância das Defensorias Públicas foi acentuada com a atenção que lhe votou a Emenda Constitucional n. 45/2004. (MENDES, 2009, p. 1047)
Destaque-se que a realização do concurso público de provas e títulos e a participação da OAB em todas as suas fases não apresenta novidade no ordenamento jurídico posto, visto que a Lei Complementar n. 80/94 em seus arts. 24 (União), 69 (Distrito Federal) e 112 (Estados), já determinava tais exigências como condicionantes ao ingresso na carreira de defensor público.
Justamente por isso, a grande inovação da Emenda reside na exigência dos 3 (três) anos de atividade jurídica para ingresso no cargo, na esteira do que já se exigia para carreiras da Magistratura e do Ministério Público, por exemplo. Neste aspecto, a doutrina aponta um conflito de normas, considerando-se que a Lei Complementar 80/94 exigia a comprovação de 02 (dois) anos de atividade jurídica, prazo este agora alargado pelo texto constitucional, sem que tal ampliação esteja acoimada de qualquer vício de inconstitucionalidade.
A mudança mostra-se relevante, uma vez que aproxima a carreira de Defensor Público das carreiras da Magistratura e do Ministério Publico, valorizando-se os membros das fileiras da Defensoria Pública. Tanto é assim que no parecer 312/2014 acerca da Proposta de Emenda convertida no texto da EC 80/2014, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal assinalou[7]:
Destaque-se que, no atual estágio do nosso Estado Democrático de Direito, não podemos conceber que as instituições que compõem a Justiça brasileira (Estado-Juiz, Estado-Acusação e Estado-Defesa) estejam em patamares diferenciados, em desequilíbrio, sob pena de uma das funções se esvaziar em relação às demais e restar desfigurado sistema concebido pelo constituinte originário. Portanto, é imperioso que seja assegurada a' "paridade de armas" entre essas funções, com instrumentos, garantias e prerrogativas, dentro e fora do processo, que viabilizem o efetivo acesso à Justiça aos que dela necessitam. Grifos acrescidos.
Avante, no que concerne à estipulação de um número proporcional de defensores pelas comarcas brasileiras, frise-se que a real intenção da Emenda à Constituição foi a ampliação da estrutura de pessoal da Defensoria Pública, uma vez que diversos estudos apontaram a carência de profissionais nas diversas unidades federativas, o que afeta diretamente o cumprimento do múnus constitucional para o qual a Defensoria foi vocacionada, isto é, a assistência jurídica aos necessitados, sejam eles hipossuficientes econômicos, jurídicos ou organizacionais.
Na esteira do que aponta Ana Paula Barcellos são dois os maiores obstáculos físicos que separam o Judiciário do indivíduo no Brasil: o custo e a desinformação. Senão vejamos:
No que diz respeito ao custo, a Constituição de 1988 procurou eliminar os obstáculos e pavimentar o melhor possível, quanto a este aspecto, a via que leva ao Poder Judiciário, consagrando a assistência jurídica gratuita para os necessitados, bem como institucionalizando a Defensoria Pública, e ainda criando os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, com a finalidade de baratear e tornar mais célere a resposta jurisdicional. Que eficácia jurídica, entretanto, têm os comandos que prevêem essas estruturas?
A assistência jurídica gratuita certamente apresenta a modalidade positiva ou simétrica, que aliás vem sendo amplamente utilizada no âmbito dos processos judiciais. (...) Quando à organização propriamente dita da Defensoria Pública e dos Juizados Especiais, bem como seu adequado aparelhamento, há algumas observações a fazer. Em primeiro lugar é preciso remarcar que tais providências são um dever constitucional da Administração – não lhe cabe decidir acerca de sua conveniência ou oportunidade”. (BARCELLOS, 2008, p. 325)
Bem assim, a recente mudança aprimora o acesso à Justiça, materializando em termos práticos o dever constitucional. Logo, o número de defensores na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população, de sorte que a Defensoria Pública se organizará a fim de que nas localidades onde existe maior demanda institucional, deverá haver uma maior distribuição de órgãos de atuação e, por consequência, de Defensores Públicos.
Agora, a referida previsão encontra-se encapsulada no art. 98 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, em cujo texto é assegurado que o número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população.
Trata-se, na realidade, da efetiva execução de uma obrigação estatal, ou melhor dizendo, da constitucionalização de política pública[8], qual seja, a estruturação, aparelhamento e interiorização da Defensoria Pública, o que, além de firmar o compromisso constitucional do Estado Brasileiro, concretiza o princípio do acesso à Justiça, nos termos franqueados pela Constituição e desestimula o legislador infraconstitucional de atuar em sentido contrário, sob pena de inconstitucionalidade. Não sem razão, Samir Dib Bachour alerta:
Entende-se que uma política pública é constitucionalizada quando suas principais medidas já estão traçadas em nível constitucional, de modo que não cabe mais falar propriamente em sua formulação pelo Poder Público, mas somente no seu desenvolvimento e execução. Grifos acrescidos. (BACHOUR, 2015, p. 59)
Mais ainda. É possível dizer que o art. 98 § 1º da ADCT foi ousado e certeiro ao estabelecer o prazo de 8 (oito) anos, para que a União, os Estados e o Distrito Federal realizem todos os atos necessários a fim de equipar as unidades jurisdicionais com defensores públicos, regra cujo cumprimento fortalecerá as estruturas da Defensoria Pública Brasil adentro, a significar verdadeiro superávit democrático para a sociedade assistida e também para o sistema judiciário Brasileiro, que sai fortalecido deste rearranjo institucional havido nas Defensorias Públicas.
3.CONCLUSÃO
Ante todo o exposto, pode-se verificar que a EC 80/14 representou significativo avanço da Defensoria Pública no ordenamento jurídico brasileiro e contribui para a metamorfose constitucional por que passou a instituição ao longo das últimas décadas. No passar do tempo, a Defensoria empreendeu uma verdadeira escalada institucional, de sorte que hoje alcançou um patamar sobranceiro na sistemática jurídica, presenteando a sociedade com uma assistência jurídica digna, prestada por um órgão cada vez mais forte, independente e estruturado.
As alterações provocadas pela EC 80/14 analisadas ao longo desta monografia são prova disso e revelam um quadro de valorização institucional, transportando para o texto Constitucional os princípios que a embasam, estabelecendo novas prerrogativas e atribuições funcionais, redefinindo-se a Defensoria Pública enquanto instituição permanente e instrumento da democracia brasileira, a qual em um prazo de 8 anos deverá estar instalada em todas as comarcas brasileiras. Um sonho.
Bem assim, a EC 80/14 perfectibiliza a Defensoria Pública, aprimora o Estado Democrático de Direito e viabiliza, em termos concretos um aprimoramento na prestação da assistência jurídica aos necessitados, sejam eles hipossuficientes no sentido econômico, jurídico ou organizacional, na construção de um país melhor.
É que o Brasil que o povo sonha, a Constituição preconiza e a democracia requer necessita de uma Defensoria Pública estruturada, bem equipada, combativa e hígida, munida de membros capacitados e de uma estrutura administrativa condizente com sua importância. Em um país subdesenvolvido como o nosso, com desigualdades sociais históricas e aparentemente insuperáveis, a valorização de uma instituição como a Defensoria Pública, vocacionada à proteção dos necessitados (em sua grande maioria, carentes de quase tudo) representa verdadeiro incremento democrático e social, partilhando ao povo o acesso à justiça, de forma técnica, eficiente e plena.
Não é demais dizer que o fortalecimento da Defensoria Pública resgata a dignidade do povo brasileiro, historicamente castigado por serviços públicos inoperantes e ineficientes, quando não inexistentes. A valorização da Defensoria é um importante passo para a consolidação do regime democrático e, acima de tudo, representa a esperança de dias melhores para esse povo brasileiro, que tanto batalha, sofre e espera.
REFERÊNCIAS
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[1] Problema análogo foi diagnosticado por Norberto Bobbio, na clássica obra A Era dos Direitos, no instante em que pontificou: “Para a realização dos direitos do homem, são frequentemente necessárias condições objetivas que não dependem da boa vontade dos que os proclamam, nem das boas disposições dos que possuem os meios para protegê-los. Mesmo o mais liberal dos Estados se encontra na necessidade de suspender alguns direitos de liberdade em tempos de guerra; do mesmo modo, o mais socialista dos Estados não terá condições de garantir uma retribuição justa em épocas de carestia. Sabe-se que o tremendo problema diante do qual estão hoje os países em desenvolvimento é o de se encontrarem em condições econômicas que, apesar dos programas ideais, não permitem desenvolver a proteção da maioria dos direitos sociais. O direito ao trabalho nasceu com a Revolução Industrial e é estreitamente ligado à sua consecução. Quanto a esse direito, não basta fundamentá-lo ou proclamá-lo nem tampouco basta protegê-lo. O problema a sua realização não é nem filosófico nem moral. Mas tampouco é um problema jurídico. È um problema cuja solução depende de um certo desenvolvimento da sociedade e, como tal, desafia até mesmo a Constituição mais evoluída e põe em crise até mesmo o mais perfeito mecanismo de garantia jurídica. Grifos acrescidos. (BOBBIO, 1992, p. 44-45)
[2] Na definição de Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis (2011, p. 49), “direitos fundamentais são direitos públicos-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual”.
[3] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Disponível em http://www.dizerodireito.com.br/2014/03/governador-do-estado-nao-pode-reduzir.html. Acesso em 14. 01.2024.
[4] Vide ADI 5296
[5] Parecer 312/2014. Disponível em http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/116436. Acesso em 10.01.2024.
[6] Defensoria Pública: da Defensora dos Pobres à Defensoria da Sociedade. Disponível em hhttp://www.defensoria.pa.gov.br/files/DefensoriaPublica%20dos%20pobres520dos%pobres20%e%20da%20sociedade.pdf. Acesso em 05 de março de 2024.
[7] Parecer 312/2014. Disponível em http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/116436. Acesso em 21.01.2024.
Bacharel em Direito e mestre em Direito Constitucional, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Possui pós-graduação em Direito Público, tendo exercido o cargo de Assessor de Juiz Federal, com atuação na 2ª Vara Federal da Seccional do Rio Grande do Norte. Atuou como professor Acadêmico na UFRN durante os anos de 2009-2012, lecionando disciplinas como Direito Constitucional, Processo Penal e Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Tendo atuado como Consultor Jurídico do Tribunal de Contas entre os anos de 2012 e 2021, é atualmente Defensor Público do Estado do Rio Grande do Norte
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GUDSON BARBALHO DO NASCIMENTO LEãO, . A Defensoria Pública brasileira: desafios, avanços e aprimoramentos necessários para a efetivação de direitos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jun 2024, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/65702/a-defensoria-pblica-brasileira-desafios-avanos-e-aprimoramentos-necessrios-para-a-efetivao-de-direitos. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: Maria Vitória de Resende Ladeia
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