RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar os avanços legislativos e jurisprudenciais para a tutela das pessoas em situação de rua enquanto um grupo vulnerável, refletindo sobre formas de operacionalização desse aparato em prol da emancipação de direitos.
Palavras-chave: Pessoas em situação de rua. Decreto 7.053. Direitos Humanos. ADPF 976. Grupo vulnerável.
ABSTRACT: The present work aims to analyze legislative and jurisprudential advances for the protection of homeless people as a vulnerable group, reflecting on ways of operationalizing this apparatus in favor of the emancipation of rights.
KEYWORDS: Homeless people. Decreto 7.053. Human Rights. ADPF 976. Vulnerable group.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A violação maciça de direitos humanos das pessoas em situação de rua e a análise do perfil dessa população. 3. As normativas nacionais, internacionais e a jurisprudência. 4. Conclusão. 5. Referências.
1.INTRODUÇÃO
As pessoas em situação de rua integram grupo vulnerável que sofre com o estigma e a marginalização, o que impede que sejam vistos como sujeitos de direitos com demandas jurídicas e sociais que merecem atenção.
O número de pessoas nessa situação cresceu consideravelmente após a pandemia do Covid-19, acentuada pela crise econômica que assolou o país, de forma que várias pessoas passaram a viver na pobreza extrema e encontraram nas ruas uma espécie de “moradia” que não é oferecida de maneira suficiente e adequada pelo poder público.
Entre as normativas a serem debatidas, destaca-se o Decreto nº 7.053/2009, que institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento; a Resolução nº 40/2020 do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que dispõe sobre as diretrizes para promoção, proteção e defesa dos direitos humanos das pessoas em situação de rua e a Resolução 425/2021 do CNJ, que institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades. Merece destaque, ainda, a ADPF 976, oportunidade em que o Supremo STF determinou que entes federados adotem providências para atendimento à população em situação de rua.
O presente trabalho, portanto, busca compreender e discutir sobre os avanços legislativos e jurisprudenciais para a tutela desse grupo vulnerável, refletindo sobre formas de operacionalização desse aparato em prol da emancipação de direitos.
2.A VIOLAÇÃO MACIÇA DE DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA E A ANÁLISE DO PERFIL DESSA POPULAÇÃO
Na ADPF 976, o STF decidiu que a violação maciça de direitos humanos das pessoas em situação de rua indica um potencial estado de coisas inconstitucional que impele o Poder Judiciário a intervir, mediar e promover esforços para estabelecer uma estrutura adequada de enfrentamento.
Em cumprimento a ADPF 976, o Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania elaborou relatório sobre a população em situação de rua. O diagnóstico exposto no relatório foi feito com base nos dados e informações disponíveis em registros administrativos e sistemas do Governo Federal, entre eles, o Cadastro Único, o Registro Mensal de Atendimentos (RMA), o Censo do Sistema Único de Assistência Social (Centro SUAS), o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) e o Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB).
Segundo relatório do Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania, 221.113 pessoas estão em situação de rua no Brasil, segundo o Cadastro Único registrado em 2023. A maior parte dessas pessoas tem entre 30 e 39 anos (27,77%) e entre 40 e 49 anos (29,04%). Há um especial recorte de gênero e raça dessa população, pois 87,49% são homens e 68% são negros.
Sobre escolaridade e trabalho, constatou-se que 90% sabe ler e escrever e 68% já teve emprego com carteira assinada. Entre os principais motivos indicados para a situação de rua, 44% apontou problemas familiares, 39% ocorreu em razão de desemprego, 29% se deu motivado pelo alcoolismo e/ou uso de drogas e 23% foi justificado pela perda de moradia.
O relatório auxilia no combate à histórica invisibilidade sofrida por esse grupo no tocante à coleta e análise dados, eis que os últimos Censos Demográficos incluíam apenas pessoas com domicílio, conforme STF, em Decisão Liminar na ADPF 976:
Nos últimos anos, a crise da rua tornou-se cada vez mais evidente na realidade dos brasileiros, seja vivida, seja testemunhada. Essa condição de emergência social é conhecida pelo Estado brasileiro, mas a grave escassez de dados estatísticos sobre a população em situação de rua (PSR) e a ausência de dados oficiais recentes sobre esse grupo social dificultam a suplantação desse problema. Com efeito, os últimos Censos Demográficos realizados ignoraram essa população e incluíram somente a população domiciliada. O único levantamento oficial de que se tem ciência foi realizado em 2009. Trata-se da “Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua”, promovida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (STF. Plenário. ADPF 976 MC-Ref/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 22/8/2023 (Info 1105).
A população em situação de rua tem sofrido um aumento vertiginoso nas violências sofridas. Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da cidadania houve um aumento de 24% nas suspeitas de violência contra essas pessoas, entre janeiro e abril de 2024, conforme denúncias feitas à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, por meio do Disque 100.
Segundo o relatório do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, a maior parte das violências ocorrem em via pública, em 88% dos casos, a violência é física e em 84% dos casos há violência psicológica/moral.
Uma das formas de violência mais comuns contra esse segmento da população são as remoções forçadas, proibidas pela ADPF 976, exigindo-se, também, a garantia da segurança pessoal e dos bens de pessoas em situação de rua, disponibilização de vigilância sanitária, abrigo para as pessoas e seus animais, entre outras medidas a serem aprofundadas em momento oportuno no presente artigo.
Assim, segundo o STF, os direitos das pessoas em situação de rua estão sendo violados de forma maciça e reiterada, a indicar um potencial estado de coisas inconstitucional, o que demanda atuação conjunta de diversos atores e atrizes, em especial, dos integrantes do sistema de justiça, do sistema de saúde e de assistência social, em atuação intersetorial e articulada.
3.AS NORMATIVAS NACIONAIS, INTERNACIONAIS E A JURISPRUDÊNCIA
De maneira mais ampla, o primeiro instrumento normativo a tutelar as pessoas em situação de rua foi a Constituição Federal de 1988, ao prever o direito à dignidade humana, à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, à erradicação da pobreza, marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais, à não discriminação e à igualdade. A Constituição também destacou direitos sociais como educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade, infância e assistência aos desamparados. (BRASIL, 1988).
Outra importante inovação legislativa foi a Lei nº 11.258 de 2005, que incluiu a necessidade de criação de programas de amparo às pessoas em situação de rua na Lei nº 8.742/1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social. Tal previsão permaneceu após as alterações promovidas pela Lei nº 12.435/2011 (BRASIL, 2005).
O Decreto nº 7.053/2009, por sua vez, foi um verdadeiro marco jurídico na proteção das pessoas em situação de rua, pois traçou os princípios, as diretrizes e os objetivos para a Política Nacional para a população em situação de rua (BRASIL, 2009), de adesão obrigatória por todos os entes federados, conforme ADPF 976.
Em 2020, foi editada a Resolução nº 40 pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), reconhecendo que:
A experiência brasileira de mais de 10 anos de implantação da Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR), que visa garantir o respeito e a dignidade para as pessoas em situação de rua e assegurar o acesso amplo, simplificado e seguro aos serviços e programas que integram as diversas políticas públicas e a análise dos dados produzidos pelo governo federal mostram que, apesar do grande esforço da gestão pública, dos organismos internacionais e da sociedade civil em ações de promoção e defesa de direitos, combate à violência, ampliação de vagas nos serviços públicos e do aumento no número de atendimentos às pessoas em situação de rua, a violência não diminuiu em relação ao referido público. Destaca-se ainda que as violações de direitos sofridas por essas pessoas estão relacionadas à sua condição de população em situação de rua, ou seja, a motivação ou a exposição à violência ocorrem no espaço da rua e porque as pessoas encontram-se nesta situação. Portanto, mesmo considerando que devem ser mandas e ampliadas as ações de defesa de direitos e combate à violência, já é reconhecido no Brasil e em diversos países norte-americanos, europeus e latino-americanos que a solução para uma diminuição mais significava das violações geradas no espaço da rua e para a garanta dos direitos fundamentais se dá a partir da superação da situação de rua através do acesso à moradia. (BRASIL, 2020).
A Resolução nº 40/2020 do CNDH estabeleceu importantes diretrizes para a promoção, proteção e defesa dos direitos humanos das pessoas em situação de rua. Destaca-se a vedação da remoção de pessoas em espaços públicos pelo fato de estarem em situação de rua, a inviolabilidade da moradia em domicílio improvisado, a vedação de recolhimento de qualquer documento e objeto pessoal de pessoa em situação de rua e o planejamento de ações no estudo de experiências exitosas do modelo Moradia Primeiro.
O projeto Moradia Primeiro é importante instrumento a ser utilizado na busca por emancipação das pessoas em situação de rua. Segundo o Ministério da Cidadania e dos Direitos humanos, esse projeto compreende que a superação da vulnerabilidade causada pela situação de rua deve priorizar o acesso imediato e permanente a uma moradia segura, individual, dispersa no território do município e integrada à comunidade.
O modelo "moradia primeiro" aporta importantes paradigmas que devem informar as políticas públicas voltadas para a pessoa em situação de rua: primeiramente, a moradia entendida como um direito humano básico, implicando o fornecimento imediato de habitação, que deve ser incondicional e permanente; atendimento prioritário aos mais necessitados e não aos mais "aptos" (atendimento não-meritocrático); escolha do usuário; redução de danos. Tais princípios devem nortear uma renovada política habitacional voltada às populações mais vulneráveis, com foco não apenas em financiamento habitacional, mas também em soluções diferenciadas como locação social. (MENEZES, 2022).
A Resolução nº 425/2021 do CNJ, por sua vez, instituiu, no âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades. A Resolução assegura amplo acesso à justiça às pessoas em situação de rua, visando eliminar ou atenuar óbices comumente enfrentados por essa parcela da população, como a vestimenta, as condições de higiene pessoal, a identificação civil, o comprovante de residência, os documentos que alicerçam seu direito e o não acompanhamento por responsável, em caso de crianças e adolescentes.
A Resolução nº 425/2021 é instrumento apto a viabilizar um tratamento desburocratizado e humanizado, com um olhar intersetorial sobre os problemas que assolam as pessoas em situação de rua, em especial, no combate à aporofobia (aversão contra os pobres).
Na ADPF 976, o STF entendeu que a aporofobia é prática violadora dos objetivos fundamentais da República Federativa, em especial o relacionado ao combate a todas as formas de discriminação (CF/1988, art. 3º, IV) e exigiu a elaboração de programas educacionais e de conscientização pública sobre a aporofobia e sobre a população em situação de rua.
A ADPF 976 representou marco jurídico relevante para a tutela das pessoas em situação de rua, pois determinou que a Política Nacional para a População em Situação de Rua, prevista no Decreto federal 7.053/2009, é de adesão obrigatória aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, independentemente de adesão formal.
Na oportunidade, o STF também entendeu que o Poder Executivo deve formular, no prazo de 120 dias, um Plano de Ação e Monitoramento para a Efetiva Implementação da Política Nacional para a População em Situação de Rua.
O plano deve conter um olhar intersetorial sobre a temática, com elaboração de diagnóstico atual da população em situação de rua, elaboração de diretrizes para a intervenção do Poder Público, pautadas no tratamento humanizado e não violento, capacitação de agentes públicos, incorporação das demandas na Política Nacional de Habitação, análise de programas de transferência de renda, entre outras medidas de suma importância para o enfrentamento global das vulnerabilidades desse grupo.
No âmbito internacional, não há um tratado temático específico sobre essa população. Há previsão sobre pessoas sem teto no sistema interamericano, no art. 5º da Convenção Interamericana sobre os Direitos das Pessoas Idosas, assinada, porém não ratificada pelo Brasil (OEA, 2015).
Dada a incipiência de normativa temática internacional, a jurisprudência do sistema interamericano também merece menção. Destaca-se o Caso dos Meninos de Rua (Villagrán Morales e outros) vs Guatemala, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (PAIVA e HEEMANN, 2020).
No caso, as vítimas eram crianças e adolescentes em situação de rua sequestrados, torturados e assassinados por agentes de segurança sem a devida e adequada investigação dos fatos pelo Estado. Na sentença, a Corte ressaltou que
O direito à vida não compreende apenas o direito de todo ser humano de não ser privado da vida arbitrariamente, mas também o direito a que não se lhe impeça o acesso às condições que lhe garantam uma existência digna. Ou seja, a privação arbitrária da vida não se limita ao ilícito do homicídio, estendendo-se igualmente à privação de se viver com dignidade, razão pela qual concluem que o direito à vida pertence, ao mesmo tempo, ao domínio dos direitos civis e políticos, assim como ao dos direitos econômicos, sociais, culturais, ilustrando assim a inter-relação e indivisibilidade de todos os direitos humanos. (PAIVA e HEEMANN, 2020).
Na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, foram concedidas medidas cautelares em favor do Padre Júlio Lancellotti e Daniel Guerra Feitosa. A Comissão entendeu que os beneficiários teriam sido objeto de vários atos de violência e ameaças, inclusive por autoridades das forças de segurança do Estado, em razão das atividades em defesa dos direitos humanos em benefício das pessoas em situação de rua.
A Comissão recomendou ao Brasil a adoção de medidas necessárias para proteger os direitos à vida e integridade pessoal do Padre Júlio e de Daniel para que possam dar continuidade ao trabalho livre de ameaças e violências.
4.CONCLUSÃO
Com o crescimento da população em situação de rua no país, em especial, após a pandemia do Covid-19, as demandas desse segmento da população pressionaram cada vez mais os atores e atrizes do sistema de justiça a uma resposta legislativa e jurisprudencial.
A coleta e análise de dados pelo Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania produziram importante documento para retirar esse segmento da população da invisibilidade e articular políticas públicas efetivas e de qualidade, em cumprimento a decisão da ADPF 976.
As normativas nacionais têm ganhado relevo, em especial, com a decisão do STF sobre a adesão obrigatória dos entes federados à Política Nacional para a População em Situação de Rua, prevista no Decreto nº 7.053/2009. Há, além disso, importantes instrumentos do CNDH e do CNJ para operacionalização dos direitos das pessoas em situação de rua.
Há incipiência de normativa internacional específica, de forma que as decisões da Corte e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos estabeleceram importantes reflexões sobre o tema.
Destaca-se o Caso dos Meninos de Rua (Villagrán Morales e outros) vs Guatemala, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em que a vida digna e o mínimo existencial estão inter-relacionados com a concretização dos direitos civis, políticos, sociais e econômicos.
Ressalta-se, ainda, a medida cautelar concedida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em favor do Padre Júlio Lancelotti e de Daniel Guerra Feitosa, recomendando ao Brasil a proteção dos direitos à vida e à integridade pessoal dos beneficiários, para que possam continuar o trabalho em prol das pessoas em situação de rua.
Todo o aparato legislativo e jurisprudencial levantado pode ser operacionalizado, em especial, através do sistema de justiça, buscando-se a garantia de direitos de uma vida digna e livre de violência, com acesso à direitos individuais e sociais garantidos pela Constituição Federal e pela normativa internacional.
5.REFERÊNCIAS
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OEA (2015). Convenção Interamericana sobre os Direitos das Pessoas Idosas, de 15 de junho de 2015. Disponível em: https://www.oas.org/en/sare/documents/CIPM_POR.pdf. Acesso em 03 de setembro de 2024.
graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Advogada .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARNEIRO, Lívia Batista Sales. Aspectos sobre a vulnerabilidade das pessoas em situação de rua, a jurisprudência e a normativa nacional e internacional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 set 2024, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66402/aspectos-sobre-a-vulnerabilidade-das-pessoas-em-situao-de-rua-a-jurisprudncia-e-a-normativa-nacional-e-internacional. Acesso em: 03 dez 2024.
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