RESUMO: O artigo aborda a relação entre cinema e direito, usando filmes para ilustrar discussões jurídicas, em especial certos tropos retóricos, como o ‘’Fator Safya’. Além disso, a análise foca no exame do processo pelas lentes da Teoria dos Jogos aplicada ao Direito, da maneira como proposta por Alexandre Morais da Rosa, tratando dos jogos repetitivos e esquemas de tomada de decisão. Como obra cinematográfica a ser referenciada, utilizou-se o filme ‘’Ponte dos Espiões’’, uma trama que envolve um processo criminal de espionagem. A partir da obra, com base na Teoria dos Jogos, discutem-se posturas processuais e métodos de convencimento. O estudo é focado, primariamente, na doutrina jurídica construída a respeito do tema.
Palavras-chaves: Cinema; Direito; Teoria dos Jogos; Processo Penal; Tomada de decisão; Precedentes.
I - Introdução
Não se ignora como o cinema pode ser fonte de inspiração e debates no campo jurídico. Exemplo disso é a criação, por Lenio Streck, do ‘’fator Julia Roberts’’, conforme explicado em sua obra ‘’Compreender Direito – Nas brechas da lei’’’, onde se faz referência ao filme ‘’O Dossiê Pelicano’’. Na trama, durante uma aula de Direito Constitucional, o professor explica à turma uma decisão da Suprema Corte americana que julgou válida a criminalização da sodomia. Durante a discussão, o professor pergunta à classe por qual motivo a Suprema Corte entendeu que a criminalização não ofende o direito à privacidade, ao passo que uma das alunas, interpretada pela atriz Julia Roberts, afirma: ‘’É porque a Suprema Corte está errada’’. Desde então, tem-se usado a frase para indicar que, apesar de as cortes terem fixado um determinado precedente, houve um erro por parte dos julgadores.
II – Desenvolvimento
2.1 – Ponte dos Espiões e o Fator Safya
Com isso em mente, o filme ''Ponte dos Espiões'' (Bridge of Spies, 2015 de Steven Spielberg) traz uma narrativa que pode ser compreendida dentro da Teoria dos Jogos aplicada ao Direito, da forma como proposta por Alexandre Morais da Rosa.
A película, que apresenta uma trama sobre espionagem e justiça, é baseada em fatos e situações verídicas. Muitas das situações retratadas foram vivenciadas pelo próprio Spielberg e muitas outras pessoas que cresceram nos EUA durante o auge da guerra fria. De nota, os filmes propagandísticos e a constante preparação da população para uma guerra atômica de proporções mundiais.
Em síntese, o filme se passa em 1960, nos Estados Unidos, onde acompanhamos a história de Rudolf Abel (Interpretado por Mark Rylance), acusado de ser espião da União Soviética. Após uma operação do FBI, a casa de Rudolf é alvo de busca e apreensão, momento em que são coletadas provas a comprovar o suposto crime de espionagem e traição. Preso e denunciado, Rudolf Abel vai a julgamento no Tribunal do Júri.
Como dativo, o advogado James Donovan (Tom Hanks) é escolhido pela American Bar Association (ABA, equivalente à OAB) para defender Abel e dar ao caso o verniz legalista e de ampla defesa necessários. As autoridades pretendiam mostrar ao mundo que na América havia direito ao julgamento justo e à ampla defesa( ''Right to a fair trial'', ''Due Process of Law'') não importando quem o acusado fosse.
Apesar da trama ficcionalizada, James Donovan foi uma pessoa real, tendo participado do julgamento de Nuremberg, como assistente da acusação, bem como participado de negociações com o governo de Fidel Castro para a soltura de prisioneiros de guerra americanos.
Não obstante, o juiz e a polícia pouco preocupados estavam com aspectos procedimentais e legais atinentes ao caso, pois convencidos estavam que Abel era realmente um espião. As provas eram aparentemente irrefutáveis, ao melhor estilo ‘’verdade sabida’’. Em tempos de Macarthismo, o desejo da opinião pública era por um julgamente rápido e a aplicação da pena de morte.
Pouco antes do caso ir a julgamento, James peticiona ao juiz da causa, Mortimer W. Byers (Dakin Matthews), para que desconsidere as provas apreendidas no apartamento de Abel. Isso porque, os policiais apreenderam bens e objetos sem mandado, logo o produto da busca era ilegal e deveria ser excluído. Jim traz o precedente que os direitos fundamentais previstos na Constituição Americana, dentre eles, a inviolabilidade da casa são extensíveis também aos estrangeiros. Sem dúvida, um precedente forte e aplicável ao caso. Vale também lembrar a vinculação dos precedentes na justiça americana. Em gabinete, Juiz Byers de plano nega o pedido, deixando claro o desejo de terminar logo o julgamento.
O resultado do julgamento, como já se esperava, é pela condenação. É marcada em data futura a audiência de sentenciamento. Ao que se avizinha, também é praticamente certo o destino de Abel à pena de morte.
Uma análise dessa situação dentro da Teoria do Jogos é deveras interessante.
A Teoria dos Jogos origina da ciência da matemática e Administração, sendo que, já há alguns anos, tem sido aplicada também ao Direito, visualizando o processo através da metáfora do jogo, com a presença de jogadores, estratégias, perdas e recompensas.
Para Alexandre Morais da Rosa, pioneiro na importação da Teoria ao terreno jurídico, o tema é colocado da seguinte forma:
‘’A pretensão não é a de simplesmente aplicar – diretamente – o instrumental da Teoria dos Jogos ao Processo Penal. Pretende-se uma abordagem que dialogue com as especificidades do Direito e reconheça os limites da Teoria dos Jogos. Isso porque não se pretende substituir a Teoria do Direito e sim apresentar novo instrumental para leitura do contexto de interação processual.’’ [1]
Desde o início, a decisão do julgador já está pronta. Não há presunção de inocência. Não importam os precedentes aduzidos, o texto constitucional posto, o julgador tem sua consciência ab initio formada a partir do que sabe pela mídia ou outras fontes dentro e fora dos autos, conformando seu julgamento ao que é denominado Sistema S1. A atmosfera hostil a qualquer ideia vista como comunista ou socialista igualmente pesou para a conformação do julgador.
Quanto a isso, os sistemas S1 e S2 são apresentados por Alexandre Rosa e baseados em estudos de psicologia cognitiva, capitaneados por Daniel Kahneman e Nassim Taleb, e podem auxiliar na compreensão de como se toma decisões[2].
O sistema S1 é o utilizado por Juiz Byers. Em uma explicação brevíssima, nesse conjunto o raciocínio opera de forma a ter respostas quase instantâneas, as questões complexas viram simples. É o oposto do Sistema S2, onde as decisões são tomadas mais lentamente, a partir da reflexão. Não cair no engano de acreditar que ambos se excluem, uma situação possível ocorre quando o Sistema S1 passa a alimentar respostas ao S2, o que ocorre no contexto dos chamados ''jogos repetitivos''.
Para exemplificar, dentro do Sistema S1, o raciocínio toma os seguintes contornos: ''Abel foi acusado da infração? Porque a polícia mentiria sobre isso? Abel é culpado. Abel deve morrer pela segurança do país''. Para todos estes questionamentos a resposta do julgador é positiva e quase instantânea. O processo decisório é tomado a partir de uma zona de conforto e se adequa a estereótipos e situações anteriormente vividas ou conhecidas pelo julgador.
Nesse viés, o pensamento do Juiz Byers é claramente consequencialista. Abel é espião. A morte de Abel seria boa para a segurança do país. James, porém, não desiste.
Vai até o Juiz Byers no momento certo e utiliza o argumento vencedor para o caso: A sentença não pode ser de morte pois se algum dia um americano for capturado pelos soviéticos não teremos ninguém para trocar. Tal argumento pode parecer absurdo sob o prisma jurídico. Afinal, conceder esse pensamento seria dar vazão a uma decisão pensada unicamente sob o prisma utilitário ou até mesmo de ''futurologia''. No entanto, esse é o argumento que convence o julgador. Quando do sentenciamento, Juiz Byers condena o réu a trinta anos de prisão e não à morte como queria o público, que resta horrorizado com a ''leniência'' dada ao espião.
Pode-se sim argumentar que o juiz desrespeitou precedentes ou o texto legal, no entanto, em certas ocasiões, o processo pelo qual o julgador formula sua decisão passa por mecanismos que não são meramente jurídicos, ou até racionais!
No caso, Juiz Byers estava ''surdo'' aos argumentos jurídicos e à resposta constitucionalmente adequada, nos dizeres de Lenio Streck. O jogo era de carta marcadas e o destino de Abel certo, mas o que finalmente convenceu o julgador foi um argumento consequencial porque o modelo de decisão judicial daquele juiz possuía o mesmo viés. Nesse ponto, entram também os fatores de contingência e sorte.
Tais fatores podem ser pensados ao caso como: 1. Argumento plausível e possível (Os EUA também possuíam espiões, havia real possibilidade de algum ser capturado) 2. Advogado que fez a jogada estratégica no momento correto 3. O argumento (consequencialista e político) dentro do modelo de decisão do Juiz.
Em ''Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal'', Alexandre Rosa encaixa tal tipo de situação como o ''Fator Safya'', em razão da história de Safya Hussaini Tungar Tudu, que foi absolvida da pena de apedrejamento em razão de argumento religioso, o único a convencer os magistrados da Suprema Corte Nigeriana, os quais julgavam primeiramente com fundamento na Sharia, a lei islâmica, tendo por fonte maior o Quorão e outros textos fundamentais da fé islâmica[3].
III – Considerações finais
Por tudo isso, temos que o foco principal da Teoria dos Jogos é permitir esta visão diferenciada da dinâmica processual. Se o modo de pensar de um determinado julgador encontra-se fincado em um certo referencial teórico, é de utilidade ao jogador procurar, dentro daquele referencial, algum argumento que possa ser útil no convencimento.
Não se pode desistir de tentar convencer o magistrado que seus referenciais teóricos não se aplicam ao caso, ou que estão flagrantemente errados, mas o importante do caso apresentado é ilustrar como o advogado, em determinados contextos, através da teoria dos jogos, deve buscar e utilizar do argumento que ''entre pelos ouvidos'', aquele que pode ser o vencedor.
Referências
Rosa, Alexandre Morais da. Guia Compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3ª ed. Revista, atualizada e ampliada – Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/Empório do Direito, 2015.
Streck, Lenio. Compreender Direito – Nas brechas da lei – Vol. 3.1ª edição, São Paulo, 2015.
BRIDGE OF SPIES. Direção: Steven Spielberg. 2015. [Filme].
[1] 1: Rosa, Alexandre Morais da. Guia Compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3ª ed. Revista, atualizada e ampliada – Florianópolis: Empório do Direito, 2016, p. 41.
[2] 2: MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/Empório do Direito, 2015, p.81-88
[3] 3: Ob. cit. p. 79-81.
Advogado especialista em Direito Público, ênfase em Processo Administrativo Disciplinar
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Maurício Sousa da. Pontes do Espiões e o Fator Safya: A Teoria dos Jogos aplicada ao Direito e o Processo Penal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 out 2024, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66608/pontes-do-espies-e-o-fator-safya-a-teoria-dos-jogos-aplicada-ao-direito-e-o-processo-penal. Acesso em: 05 out 2024.
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Thaisa Barbosa Souza de Araújo
Por: Euripedes Clementino Ribeiro Junior
Por: Jéssica Cristina Vitorino da Silva
Por: Wellington Santos de Almeida
Precisa estar logado para fazer comentários.