RESUMO: o presente artigo pretende apresentar a posição dos Tribunais Superiores a respeito das ações de saúde, especialmente aquelas em que se busca o fornecimento de medicamentos não padronizados. As ações de saúde sempre foram um gargalo para o Estado, em virtude do ônus financeiro imposto pelas decisões judiciais que determinam o seu fornecimento. Consequentemente, os Tribunais Superiores vêm desenvolvendo formas de operacionalizar e padronizar essas demandas, como no IAC 14 e no Tema 1234 de Repercussão Geral. No entanto, se de um lado se busca preservar o equilíbrio financeiro das contas públicas, por outro, há um contingente de pessoas, em situação de vulnerabilidade, que depende da prestação jurisdicional para ter seu direito à saúde garantido.
INTRODUÇÃO
O direito à saúde consiste em direito social previsto no artigo 6º da Constituição da República:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
O artigo 196, por sua vez, prevê que o direito à saúde é direito de acesso universal, garantido a todos, independente de contribuição ou contraprestação:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Paralelamente a isso, o artigo 23, I, da Constituição, prescreve que é competência comum, de todos os entes, cuidar da saúde e assistência pública:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
Assim, as ações e serviços públicos de saúde devem ser prestadas por todos os entes, integrando uma rede regionalizada e hierarquizada, e constituindo um sistema único de saúde, o SUS (art. 198 da CRFB).
No entanto, quando se trata do fornecimento de medicamentos não padronizados pelo SUS, há uma grande celeuma a respeito de qual ente será o responsável pelo seu fornecimento.
É importante pontuar que há medicamento padronizados e fornecidos pelo SUS gratuitamente, e há medicamentos que não são fornecidos pelo SUS. E é nesse segundo caso em que reside a celeuma, já que, em tese, não há planejamento financeiro para custeio desses medicamentos.
A discussão é antiga, de modo que, no Tema de Repercussão Geral nº 793, o Supremo Tribunal Federal firmou a seguinte tese:
Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
Apesar de o Tema 793 do STF expressamente dispor sobre a responsabilidade solidária dos entes públicos nas demandas prestacionais na área da saúde, a discussão sobre a composição do polo passivo nessas demandas permaneceu.
A primeira grande decisão a respeito do tema veio do Superior Tribunal de Justiça, no Incidente de Assunção de Competência nº 14, e posteriormente no pelo Tema 1234 do Supremo Tribunal Federal, como serão brevemente analisadas a seguir.
1. INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA 14: DIREITO DE O AUTOR ELEGER O ENTE FEDERATIVO A SER DEMANDADO
No Incidente de Assunção de Competência nº 14 (IAC 14), julgado definitivamente em 12.04.2023, restou assentado que cumpre ao autor escolher contra qual ente federativo pretende litigar, nas demandas em que se discute o fornecimento de medicamento não padronizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
Por ocasião do julgamento, foram fixadas as seguintes teses:
a) Nas hipóteses de ações relativas à saúde intentadas com o objetivo de compelir o Poder Público ao cumprimento de obrigação de fazer consistente na dispensação de medicamentos não inseridos na lista do SUS, mas registrado na ANVISA, deverá prevalecer a competência do juízo de acordo com os entes contra os quais a parte autora elegeu demandar.
b) as regras de repartição de competência administrativas do SUS não devem ser invocadas pelos magistrados para fins de alteração ou ampliação do polo passivo delineado pela parte no momento da propositura ação, mas tão somente para fins de redirecionar o cumprimento da sentença ou determinar o ressarcimento da entidade federada que suportou o ônus financeiro no lugar do ente público competente, não sendo o conflito de competência a via adequada para discutir a legitimidade ad causam, à luz da Lei n. 8.080/1990, ou a nulidade das decisões proferidas pelo Juízo estadual ou federal, questões que devem ser analisada no bojo da ação principal.
c) a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da CF/88, é determinada por critério objetivo, em regra, em razão das pessoas que figuram no polo passivo da demanda (competência ratione personae), competindo ao Juízo federal decidir sobre o interesse da União no processo (Súmula 150 do STJ), não cabendo ao Juízo estadual, ao receber os autos que lhe foram restituídos em vista da exclusão do ente federal do feito, suscitar conflito de competência (Súmula 254 do STJ)
O IAC 14 foi muito relevante, sobretudo, porque afastou qualquer tese de incompetência da Justiça Estadual para o julgamento das ações de saúde.
Antes dessa decisão, com certa frequência, remetiam-se os autos à Justiça Federal, ao argumento de que haveria interesse da União na demanda. Isso atrasava a marcha processual e causava muita insegurança ao jurisdicionado, que dependia de uma decisão célere, afinal, o processo tinha como objetivo último a garantia de seu direito à saúde, direito fundamental social.
Assim, o IAC 14 foi um passo muito importante para a garantia de acesso à saúde à população.
Após o IAC 14, sobreveio a decisão do Supremo Tribunal Federal no Tema 1234. Primeiro, a tutela provisória, que seguia a mesma linha do entendimento do STJ. Depois, o julgamento definitivo. Este último, contendo grandes alterações no que já se estabelecia como prática nos Tribunais.
2. TEMA 1234 DE REPERCUSSÃO GERAL
Como mencionado anteriormente, na tutela provisória proferida no bojo do Tema 1234 de Repercussão Geral, o Supremo Tribunal Federal manteve o posicionamento do STJ para os medicamentos não padronizados: vedou a declinação da competência ou determinação da inclusão da União no polo passivo:
“(...) nas demandas judiciais relativas a medicamentos não incorporados: devem ser processadas e julgadas pelo Juízo, estadual ou federal, ao qual foram direcionadas pelo cidadão, sendo vedada, até o julgamento definitivo do Tema 1234 da Repercussão Geral, a declinação da competência ou determinação de inclusão na União no polo passivo.”
Logo, nas ações de saúde em que se pleiteavam medicamentos não padronizados, tanto o IAC 14, quanto o Tema 1234 (tutela provisória), garantiam ao autor o direito de eleger o ente federativo a ser demandado.
Em recente decisão, contudo, o STF entendeu que as demandas relativas a medicamentos não incorporados na política pública do SUS, mas com registro na ANVISA, tramitarão perante a Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal, quando o valor do tratamento anual específico do fármaco ou do princípio ativo for igual ou superior ao valor de 210 salários mínimos, na forma do art. 292 do CPC.
Apesar de o STF ter estabelecido uma barreira de acesso aos jurisdicionados que buscam medicamentos de alto custo, também é relevante notar que o valor fixado é bem alto, de modo que grande parte dos medicamentos não incorporados requeridos judicialmente permanecerão sob a competência da Justiça Estadual.
Ocorre que o STF trouxe mais requisitos para as ações de saúde. Esses sim muito difíceis de serem atendidos e, talvez, até impraticáveis para grande parte da população. Vejamos o que diz o item IV da decisão:
IV – Análise judicial do ato administrativo de indeferimento de medicamento pelo SUS.
4) Sob pena de nulidade do ato jurisdicional (art. 489, § 1º, V e VI, c/c art. 927, III, § 1º, ambos do CPC), o Poder Judiciário, ao apreciar pedido de concessão de medicamentos não incorporados, deverá obrigatoriamente analisar o ato administrativo comissivo ou omissivo da não incorporação pela Conitec e da negativa de fornecimento na via administrativa, tal como acordado entre os Entes Federativos em autocomposição no Supremo Tribunal Federal.
4.1) No exercício do controle de legalidade, o Poder Judiciário não pode substituir a vontade do administrador, mas tão somente verificar se o ato administrativo específico daquele caso concreto está em conformidade com as balizas presentes na Constituição Federal, na legislação de regência e na política pública no SUS.
4.2) A análise jurisdicional do ato administrativo que indefere o fornecimento de medicamento não incorporado restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e da legalidade do ato de não incorporação e do ato administrativo questionado, à luz do controle de legalidade e da teoria dos motivos determinantes, não sendo possível incursão no mérito administrativo, ressalvada a cognição do ato administrativo discricionário, o qual se vincula à existência, à veracidade e à legitimidade dos motivos apontados como fundamentos para a sua adoção, a sujeitar o ente público aos seus termos.
4.3) Tratando-se de medicamento não incorporado, é do autor da ação o ônus de demonstrar, com fundamento na Medicina Baseada em Evidências, a segurança e a eficácia do fármaco, bem como a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS.
4.4) Conforme decisão da STA 175-AgR, não basta a simples alegação de necessidade do medicamento, mesmo que acompanhada de relatório médico, sendo necessária a demonstração de que a opinião do profissional encontra respaldo em evidências científicas de alto nível, ou seja, unicamente ensaios clínicos randomizados, revisão sistemática ou meta-análise.
Em suma, aquele que requerer o fornecimento de medicamento não incorporado pelo SUS deverá demonstrar: (i) a negativa de fornecimento na via administrativa, (ii) a segurança e a eficácia do fármaco, bem como a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS, com fundamento na Medicina Baseada em Evidências e (iii) que a opinião do profissional encontra respaldo em evidências científicas de alto nível.
3. IMPACTOS NA ATUAÇÃO PRÁTICA
A antiga discussão sobre o mínimo existencial e a reserva do possível[1] ainda é muito atual. Apesar de já sedimentado o entendimento de que o princípio da reserva do possível não poderá ser utilizado como obstáculo à realização dos direitos sociais, a realidade prática demonstra que as contas públicas são sim muito relevantes para decisões judiciais. E, muitas vezes, prevalecem em detrimento dos direitos sociais.
O Tema 1234 de Repercussão Geral, de fato, trouxe significativas alterações para as demandas de saúde em que são pleiteados medicamentos não incorporados pelo SUS.
Se, por um lado, a tutela provisória concedida no Tema 1234 estava alinhada com o entendimento do STJ (IAC 14), a decisão definitiva do Tema 1234 traz novos requisitos para o pedido médico, complementando o quanto previsto no Tema 106 do STJ, que assim dispõe:
A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:
i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;
iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.
Veja-se que, se antes era suficiente a demonstração da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento requerido, bem como da ineficácia dos fármacos fornecidos pelo SUS; agora, o médico deverá indicar, também, estudos científicos que demonstrem a segurança e a eficácia do fármaco.
É inegável que os medicamentos devem ser prescritos com segurança, garantindo-se, verdadeiramente, a saúde do paciente.
Na prática, todavia, há milhares de pessoas que somente tem acesso aos médicos do SUS. Os profissionais que trabalham na rede pública lidam com um grande fluxo de atendimento. Muitas vezes, não é fácil sequer pegar um laudo médico, já que as consultas são difíceis de serem agendadas e, quando o são, demoram meses para o dia chegar.
Se pedir um laudo médico é difícil, pedir um laudo médico que cite “ensaios clínicos randomizados, revisão sistemática ou meta-análise”, pode ser tornar uma realidade verdadeiramente impraticável.
Não surpreende o fato de o Tema 1234 ser constantemente anunciado como um acordo entre o STF e os entes públicos[2], sem qualquer menção à participação da sociedade civil.
CONCLUSÃO
As ações de saúde sempre foram um gargalo para o Estado, em virtude do ônus financeiro imposto pelas decisões judiciais que determinam o fornecimento de medicamentos não padronizados.
Consequentemente, os Tribunais Superiores vêm desenvolvendo formas de melhor operacionalizar essas demandas. Exemplos disso são as decisões proferidas no IAC 14 e no Tema 1234, mencionados neste artigo.
Se, por um lado, a discussão a respeito da competência parece estar melhor sedimentada; por outro lado, o cumprimento dos requisitos para a concessão dos medicamentos não padronizados parece estar cada vez mais inalcançáveis.
Não se pode esquecer quem são os maiores impactados por essas decisões: a população mais vulnerável, principal usuária dos serviços do SUS. Os diversos requisitos a serem atendidos e demonstrados no laudo médico, apesar de compreensíveis, têm um efeito colateral inevitável: o cerceamento do direito de muitos brasileiros que vão precisar desses medicamentos.
É importante que o Judiciário não se mantenha distante da realidade social experienciada no Brasil. E a última decisão do STF certamente deixou de lado essa parte tão importante de seu labor.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Incidente de Assunção de Competência 14. Disponível em https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=I&cod_tema_inicial=14&cod_tema_final=14. Acesso em 20 de out. 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Tema 106. https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=106&cod_tema_final=106. Acesso em 20 de out. 2024
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 1234 de Repercussão Geral. https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6335939. Acesso em 20 de out. 2024.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 793 de Repercussão Geral. https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4678356&numeroProcesso=855178&classeProcesso=RE&numeroTema=793. Acesso em 20 de out. 2024
MITIDIERO, Daniel F.; MARINONI, Luiz Guilherme B.; SARLET, Ingo W. Curso de direito constitucional. 12th ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2023. E-book. p.440. ISBN 9786553624771. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786553624771/. Acesso em: 20 out. 2024.
[1]MITIDIERO, Daniel F.; MARINONI, Luiz Guilherme B.; SARLET, Ingo W. Curso de direito constitucional. 12th ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2023. E-book. p.440. ISBN 9786553624771. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786553624771/. Acesso em: 20 out. 2024. Por tudo isso, é possível sustentar a existência de uma obrigação, por parte dos órgãos estatais e dos agentes políticos, de maximizarem os recursos e minimizarem o impacto da reserva do possível, naquilo que serve de obstáculo à efetividade dos direitos sociais. A reserva do possível, portanto, não poderá ser esgrimida como obstáculo intransponível à realização dos direitos sociais pela esfera judicial, devendo, além disso, ser encarada com reservas. Também é certo que as limitações vinculadas à reserva do possível não são em si mesmas uma falácia – o que de fato é falaciosa é a forma pela qual o argumento tem sido por vezes utilizado entre nós, como óbice à intervenção judicial e desculpa genérica para uma eventual omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais, especialmente daqueles de cunho social.
[2] [...] no julgamento do Tema 1234, analisado no RE 1366243, o STF homologou acordo que envolveu a União, estados e municípios para facilitar a gestão e o acompanhamento dos pedidos de fornecimento. Ele prevê a criação de uma plataforma nacional com todas as informações sobre demandas de medicamentos. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-celebra-conclusao-de-julgamento-sobre-fornecimento-de-medicamentos-de-alto-custo/#:~:text=Naquele%20mesmo%20m%C3%AAs%2C%20no%20julgamento,informa%C3%A7%C3%B5es%20sobre%20demandas%20de%20medicamentos.. Acesso em 20 de out. 2024.
Bacharel em Direito com Pós Graduação Lato Sensu. Servidora pública .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BALDAN, Hannah Sayuri Kamogari. Judicialização da saúde: medicamentos não padronizados Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 out 2024, 04:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66823/judicializao-da-sade-medicamentos-no-padronizados. Acesso em: 13 nov 2024.
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