ÉRICA MOLINA RUBIM[1]
(orientadora)
RESUMO: O aborto é um assunto que fomenta debates, disputas éticas, morais, filosóficas e religiosas. Há registros de sua prática desde a antiguidade, sendo aceito em determinadas culturas e rejeitado por outras. Apesar do avanço da civilização e de seu afastamento de práticas violentas anteriormente normalizadas, ainda não há consenso sobre sua criminalização em diversos países. No século XX, o tema ganhou maior destaque no Brasil e desde então, uma simples menção a discussão do tema pode causar uma mobilização nacional. O presente trabalho tem como objetivo explanar quanto o direito à vida, a proteção do nascituro, e a contraposição deste direito à dignidade da pessoa humana e à autonomia da mulher. Esta é a contenda central na arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 442, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A pesquisa inclui análises históricas, jurídicas, doutrinárias e jurisprudenciais, examina o impacto e as implicações da descriminalização do aborto para o sistema jurídico brasileiro, considerando tanto aspectos normativos quanto possíveis consequências sociais. Por fim, ao analisar o voto da Ministra Rosa Weber na ADPF 442, o trabalho destaca pontos de discordância ética e jurídica, apresentando argumentos que reforçam a necessidade da criação de políticas públicas eficientes.
PALAVRAS-CHAVE: Aborto. Supremo Tribunal Federal. Descriminalização. ADPF 442.
ABSTRACT: Abortion is a subject that fosters debates, ethical, moral, philosophical, and religious disputes. There are records of its practice since antiquity, being accepted in some cultures and rejected by others. Despite the advancement of civilization and the abandonment of previously normalized violent practices, there is still no consensus regarding its criminalization in many countries. In the 20th century, the topic gained greater prominence in Brazil, and since then, even a simple mention of the subject can cause a national mobilization. This paper aims to explain the right to life, the protection of the unborn, and the counterbalance of this right to human dignity and women's autonomy. This is the central issue in the Argument of Noncompliance with a Fundamental Precept No. 442, proposed by the Socialism and Liberty Party (PSOL). The research includes historical, legal, doctrinal, and jurisprudential analyses and examines the impact and implications of decriminalizing abortion for the Brazilian legal system, considering both normative aspects and potential social consequences. Finally, by analyzing the vote of Minister Rosa Weber in ADPF 442, the paper highlights points of ethical and legal disagreement, presenting arguments that reinforce the need for the creation of effective public policies.
KEYWORDS: Abortion. Supreme Court. Decriminalization. ADPF 442.
1 INTRODUÇÃO
Dilemas éticos e morais marcam a história e a partir de sua discussão, consolidam garantias inerentes a condição do ser-humano. Ao se levantar questões ligadas a bioética, é justo que o homem, atribua a ciência o papel de ponderar tal debate. Outorgar tal discussão apenas a opinião de um grupo ou ao meio jurídico pode afastar o indivíduo da moral e sujeitá-lo a ética do positivismo, promotor dos maiores desastres humanitários do século XX.
No Brasil, quando a inviolabilidade do direito à vida foi consagrada como direito constitucional, é de considerar pela moral da época que o constituinte certamente pensou no aborto. Anos mais tarde, o Código Civil de 2002, explicitamente fez referência a proteção do nascituro em seu texto. Portanto, se uma lei brasileira ou uma decisão de uma corte superior, através de uma interpretação extensiva da norma constitucional, vier propor a instituição da prática abortiva, tal norma seria inconstitucional?
Todas essas considerações, foram levadas a mais alta corte do país, o Supremo Tribunal Federal, através da Arguição de Preceito Fundamental (ADPF) nº442. Nela, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), reivindica que o aborto seja descriminalizado no Brasil, através da não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal pela Constituição da República.
Neste contexto, está posto a problemática deste trabalho. Diante do legislador e do judiciário, está evidentemente colocada a contraposição de direitos, os do nascituro e os da autonomia feminina.
A justificativa da proposição da ADPF 442, alinhada ao voto da ministra Rosa Weber, sustenta-se pela afirmativa de que o nascituro não é pessoa constitucional, mas criatura intrauterina e; ainda, que direito à vida não prevaleceria ante a colisão com direitos fundamentais femininos, como a liberdade, a dignidade, a autonomia e o direito ao planejamento familiar.
É legitimo, portanto, que se promovam análises aprofundadas sobre o tema, visando à formulação de soluções que conciliem a proteção dos direitos do nascituro com o respeito à dignidade da mulher, bem como à implementação de políticas públicas voltadas ao acolhimento materno-infantil.
No desenvolvimento deste trabalho, foi aplicado o método dedutivo, tendo como ideia central a controvérsia proposta na ADPF 442 e seu primeiro voto, o da ministra Rosa Weber. Para alcançar o questionamento proposto, foram realizadas pesquisas na legislação, doutrinas e jurisprudências, com o objetivo de encontrar respostas e/ou soluções efetivas que conciliem a proteção do nascituro com os direitos fundamentais das mulheres, especialmente no que tange à sua dignidade e autonomia reprodutiva.
2 HISTÓRIA E INÍCIO DO MOVIMENTO ABORTISTA: OPINIÕES E TEORIAS.
Uma pesquisa realizada no Brasil em 2024 pelo Instituto Datafolha, mostrou que 8% dos brasileiros acreditam que a terra é plana (Datafolha, 2024). Outra pesquisa, realizada pela Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica em 2017 revelou que 67% dos brasileiros acreditam que terapias alternativas ajudam a vencer o câncer, apesar da falta de evidências científicas robustas que sustentem essas afirmações (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, 2017).
Um fato como o primeiro, em nada altera a vida cotidiana social, embora deponha contra o conhecimento de seu interlocutor. Já no segundo caso, e em diversos outros, a crença de uma parcela da população poderá exercer efeitos imediatos na vida de outras pessoas.
Para Nietzsche, a mulher foi o “segundo erro de Deus” (Nietzsche, 2017), segundo Kant “Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo” (Kant, 2005). Não conseguiríamos conviver em plenitude no mundo de hoje compartilhando as duas últimas afirmações sem que isso afetasse nossas relações sociais. Opiniões podem saltar da irrelevância a um alto custo moral a ser pago no futuro.
Não é diferente o preço de uma opinião no século XXI. Ao norte de Long Island, em Nova York, encontra-se o vilarejo de Cold Spring Harbor, sede do laboratório de mesmo nome, dirigido pelo geneticista James Watson, um dos descobridores da estrutura de dupla hélice do DNA. O biólogo, Nobel de medicina em 1962, já opinou que negros são menos inteligentes e declarou que é “pessimista” com relação ao futuro da África (The Guardian, 2007). Anteriormente, o jornal o jornal Sunday Telegraph já havia compartilhado uma matéria em que Watson defendia que mulheres deveriam realizar abortos por conter genes ligados a homossexualidade no feto (Folha de S. Paulo, 2011).
Pessoas que compartilham da crença de que um bebê pode ser facilmente arrancado do ventre, pelas mais diversas situações, ou que existam raças inferiores e essas precisam ser extirpadas, se colocam em uma discussão bem mais grave do que aquelas que acreditam que a terra é plana. “O erro acontece de vários modos, enquanto ser correto é possível apenas de um modo”, aduz Aristóteles (Aristóteles, 1987).
Todo debate e expressão da opinião individual, por mais polêmicos que possam ser, devem ser permeados por argumentação e raciocínio. Mais ainda, se tal debate alcança a mais alta esfera do poder judiciário. O debate brota da liberdade, e essa, implica responsabilidade. Se assim fosse contrário, toda discussão moral, incluindo o aborto estaria fadada ao relativismo ou dogmatismo, religioso ou político.
O bom debate, aliado ao bom senso, confere as pessoas mais comuns o impulso para a superação de sua vontade, em busca do bem comum. Se assim não fosse, e se os cidadãos comuns vivessem à mercê de seus impulsos ou os de seus parlamentares e governantes, criaríamos de pouco em pouco uma aristocracia totalitária.
Um dos grandes debates do século XX deu-se no dia 22 de janeiro de 1973. Em uma decisão de 7 a 2 a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu a legalidade do direito da mulher escolher realizar o aborto de acordo com a décima quarta emenda da constituição do país.
Em 24 de junho de 2022 a corte suspendeu a mesma decisão, sustentando que não há um direito constitucional federal com relação ao aborto.
Toda ação de uma corte superior exercerá efeitos imediatos na vida de uma nação, e toda mudança de entendimento ou demonstrará um novo consenso entre a nação, ou que a anterior deixou-se levar por uma falsa premissa. A chave está em entender o que se passa nos acontecimentos de cada sociedade e o que faria a população desde o cidadão comum até ao ministro da suprema corte, rever aquilo que outrora tinha como verdade. Antônio Gramsci ao tentar explicar a mudança nos valores sociais, sustenta que a mídia exerce constante influência sob os debates:
Os jornais são aparelhos ideológicos cuja função é transformar uma verdade de classe num senso comum, assimilado pelas demais classes como verdade coletiva - isto é, exerce o papel cultural de propagador de ideologia. Ela embute uma ética, mas também a ética não é inocente: Ela é uma ética de classe (Gramsci, 1975, p. 1382).
É notório que a mídia exerceu um papel crucial na decisão “Roe X Wade”, que descriminalizou o aborto nos Estados Unidos. A propaganda e o apelo emocional podem convencer toda uma população a ter o mesmo entendimento que certa classe.
No contexto brasileiro, a pobreza do atual debate acadêmico e público sobre o aborto, aliado ao domínio da grande mídia tende a desprezar a tarefa da ética e produzir apenas efeitos psicológicos e emocionais na população. De qualquer lado do debate, há uma tendência a produção de tais apelos, esvaziados de rigor intelectual e propensos a convencer o interlocutor seja pela comoção de que o feto está em risco, ou de que o direito a escolha da mulher em abortar, é inerente apenas de sua vontade. Todo apelo a emoção relativiza o debate, e no caso do aborto isso se torna ainda mais grave, vidas estarão em jogo.
Desconsiderar a análise do aborto sugere uma diminuição do valor intrínseco da vida humana, e é um equívoco se envolver em tal debate, esquecendo que todos compartilhamos a condição de seres mortais.
2.1 O ABORTO NO DECORRER DOS SÉCULOS
A humanidade entrou no terceiro milênio levando do final do segundo três grandes feitos: O projeto Manhattan, o projeto Apollo e o projeto genoma humano. O primeiro, na fissão de núcleos de átomos como urânio-235 ou o plutônio-239 descobriu o horrendo efeito da bomba atômica, responsável por 210 mil mortos nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. O segundo, levou o homem a pisar pela primeira vez na superfície da lua, “um grande salto para a humanidade”. E por fim, a descoberta de James Watson, dando início a terceira revolução industrial, a revolução biológica.
O grande sucesso de Watson, lhe rendeu o prêmio Nobel em 1962, o que mais tarde lhe foi tirado em razão de seus comentários racistas. O dilema de Watson, o homem que impulsionou o terceiro maior projeto do século, repete-se na história, pois nem sempre o debate tecnológico e científico foi pacífico e neutro, mas quase sempre esteve aliado a opiniões sem nenhum embasamento, explicações religiosas, místicas ou artísticas.
No caso do aborto, existem registros que sugerem que o mesmo era primordialmente realizado em tais situações, quase que misticamente através de “cantilenas mágicas, exercícios físicos violentos e instrumentos mecânicos” (Galeotti, 2007).
O primeiro registro histórico quanto ao aborto data do Egito antigo e pode ser encontrado no Papiro “Ebers”, datado de 1550 a.c., o texto menciona métodos para induzir o aborto por meio de ervas e outras substâncias que de acordo com o conhecimento da época poderiam interromper a gravidez (P. Ebers, 1550 a.C.). No texto "Bei Ji Qian Jin Yao Fang” (备急千金要方) (Sun, 652), escrito na China antiga, o autor orienta a execução de práticas médicas anteriores, que eram executadas em concubinas reais entre 500 e 515 a.c.
Na Roma antiga, embora não houvesse uma condenação moral ou religiosa tão severa quanto em outras sociedades posteriores, o aborto ainda era uma questão complexa (Cantarella, 1992), pois a lei romana não considerava o feto distinto do corpo da mãe (Dixon, 1992). O aborto era frequentemente praticado para controlar o tamanho da família, manter a aparência física ou por causa de adultério (McGinn, 1998). No entanto, o ato só poderia ser praticado com o consentimento do marido, o pater familias (Corpus Juris Civilis, s.d.)
Na Grécia antiga surge o famoso “Juramento de Hipócrates”, nele, o autor orienta que seja evitado o uso de medicamentos que possam induzir ao aborto, embora não se opusesse ao aborto de uma forma geral (Juramento de Hipócrates, s.d.). Uma mudança quanto ao pensamento histórico sobre o aborto vem dos primeiros anos do Cristianismo. Através do “Didaquê”, um texto cristão do século II, é possível notar que a comunidade primitiva equipara de maneira explícita o aborto ao infanticídio. Em seu capítulo II, quando o autor traz uma seleção de mandamentos e orientações para a comunidade, o texto exorta: "Não matarás, não cometerás adultério, não corromperás crianças, não fornicarás, não roubarás, não praticarás magia, não farás encantamentos, não matarás o filho no útero nem depois que ele tenha nascido." (Didaché, capítulo 2, versículo 2).
Embora o Didaquê seja o primeiro documento cristão a condenar o aborto, a prática ainda não tinha uma condenação generalizada abrangente entre os primeiros cristãos. Santo Agostinho acreditava que o aborto de um 'feto animatus', ou seja, um feto com membros e forma humana, era equivalente a assassinato (Agostinho, 2000). Em contrapartida, Tertuliano defende que o aborto poderia ser realizado em casos em que o posicionamento anormal do feto no útero colocaria em risco a vida das mulheres grávidas (Tertuliano, 2006). Tomás de Aquino defende que “quem fere uma mulher grávida pratica ação ilícita. Portanto, se daí resultar a morte da mulher ou do feto já animado, não escapará ao crime de homicídio” (Aquino, 2001).
Na Idade Média era prática comum que mulheres realizassem o aborto antes do feto começar a se mover no útero, a partir da 18º semana da gravidez. Até então, as pessoas tendiam a considerar o feto como parte da mãe e, portanto, sua destruição não representava um problema ético maior do que outras formas de cirurgia. Os meios medievais para execução da prática eram diversos, alguns relatos como um texto sânscrito do século VIII apontam que mulheres que desejavam evitar a gravidez, sentavam-se sob uma panela com vapor, geralmente de cebolas cozidas (Riddle, 1997). Com o avanço do debate sobre direitos humanos, na segunda metade do século XIX o aborto passou a ser cada vez mais criminalizado em países como a Inglaterra e os Estados Unidos. O Common Law inglês, inspiração para as primeiras leis americanas, concordava que o aborto era um crime após o "quickening", o primeiro movimento fetal, dado entre quatro e cinco meses de gravidez. O quickening firmava o ponto em que o feto era considerado outro ser e totalmente vivo, o que concedia a única garantia absoluta de que uma mulher estava grávida. Em 1803, o English Statute Law tornou o aborto após o quickening um crime que rendia pena de morte, e em 1837 a lei inglesa aboliu o significado do quickening e também abandonou a pena de morte para o aborto. Conforme o Oxford English Dictionary, "quicken" significa "atingir o estágio da gravidez em que a criança mostra sinais de vida". William Blackstone, durante o século XVIII, aduziu que:
A vida começa na contemplação da lei assim que uma criança é capaz de se mexer no útero da mãe. Pois se uma mulher está rápida com a criança, e por uma poção, ou de outra forma, mata-a em seu útero; ou se alguém a espanca, pelo que a criança morre em seu corpo, e ela é entregue a uma criança morta; isso, embora não seja assassinato, era pela lei antiga homicídio ou homicídio culposo. Mas atualmente não é visto de forma tão atroz, embora continue sendo uma contravenção muito hedionda (Blackstone, 1775).
Em 1821, o estado do Connecticut aprovou a primeira lei nos Estados Unidos para restringir o aborto. Ela proibia o uso de uma substância tóxica para causar um aborto espontâneo após a "aceleração".
No século XIX, o pensamento religioso Cristão também sofreu sua grande consolidação da oposição ao aborto. Em 1854, o Papa Pio IX proclamou o “dogma da Imaculada Conceição”, ensino católico que defende que a Virgem Maria foi livre do pecado original, desde a sua concepção. Tal dogma colaborou imensamente para que o pensamento católico de forma mais eficaz, sustentasse que a fecundação marcava o início da vida humana. Em 1861, o Parlamento Britânico promulgou o “Offences against the Person Act”, que criminalizou o aborto. A Igreja Católica apoiou essa medida. Em 1869, o Papa Pio IX definiu que o aborto, em qualquer circunstância, era gravemente imoral e que qualquer pessoa que praticasse tal ato estaria automaticamente excomungada da Igreja. Com essa proibição, a Igreja Católica passou a considerar o aborto não apenas um homicídio, mas também um grande pecado.
Com a chegada do século XX, a legislação inglesa acrescentou uma cláusula de exceção que impedia que o aborto fosse considerado crime se fosse "realizado de boa-fé com o único objetivo de preservar a vida da mãe".
Nesse período, o avanço da história transformava práticas como o parricídio, canibalismo e o infanticídio em atos abomináveis. Ao discorrer sobre tal mudança o antropólogo Claude Lévi-Strauss, defende que a transição de uma sociedade primitiva para uma civilização envolve a transformação de costumes e práticas culturais. Em seu livro “Antropologia Estrutural”, o autor aduz que “A humanidade fez seu progresso não na direção da perfeição, mas para longe da violência”. (Lévi-Strauss, 1955, p.463). Um outro grande nome do século XX, o sociólogo Norbert Elias, em seu livro “O Processo Civilizador” discorre extensivamente sobre como as normas sociais e os padrões de comportamento mudaram ao longo do tempo, levando à formação do que chamamos de civilização. Ele observa que comportamentos considerados violentos ou bárbaros foram gradualmente controlados e eliminados das sociedades à medida que estas evoluíram. Elias propõe que o controle desses impulsos, como canibalismo e parricídio, foi essencial para o desenvolvimento das sociedades modernas (Elias, 1994).
Com o surgimento do humanitarismo, o pensamento ético respaldou-se em uma noção de essência humana característica, dotada de uma dignidade inerente, devendo ser respeitada e protegida. A partir de tal conceito, o homem ocupou o topo da hierarquia dos valores, atribuindo-lhe dignidade e bem-estar social e promovendo a ideia de que todos os seres humanos têm valor intrínseco e merecem compaixão e respeito, independentemente de sua origem, nacionalidade, religião ou qualquer outra característica.
Com a primeira metade do século XX, intensifica-se o debate quanto aos direitos femininos, entre estes, o da mulher dispor da autoridade sobre seu próprio corpo. Principalmente em países socialistas, se dava o início de uma maior flexibilização em relação as legislações que coibiam o aborto. Com a Revolução Russa de 1917, o aborto deixou de ser tratado como delito, tal legislação impactou outras nações socialistas na década de 1950. A Suécia e a Dinamarca, países majoritariamente protestantes, por volta de 1930, aprovaram legislações mais flexíveis sobre o aborto mais agilmente que outros países de maioria católica.
Por fim, a descoberta biológica fez com que o homem concluísse que no exato momento em que o espermatozoide fertiliza o óvulo, forma-se um zigoto, esse por sua vez traz consigo todo material genético para formar um organismo. O zigoto forma o embrião, que então, forma o feto.
Jerome Lejeune, cientista responsável pela descoberta do genoma que dá origem a Trissomia 21 (Síndrome de Down), ao discorrer sobre o início da vida animal e as discordâncias quanto ao momento em que ele se dá, aduziu que "A aceitação de que a vida humana começa na concepção não é uma questão de opinião; é um simples fato experimental” (Lejeune, 1990).
A partir do momento em a história descobre que o zigoto traz consigo todo material genético necessário para a formação de um ser humano, deve-se reconhecer que ele também carrega toda a dignidade e liberdade inerentes a seu ser. Se as sociedades abandonarem verdades razoáveis e as eclipsarem através de opiniões políticas ou religiosas, as mesmas se colocarão uma vez mais diante do vazio do entendimento quanto a dignidade humana e de todos os possíveis problemas que tal hiato pode causar.
3 O ABORTO NO DIREITO BRASILEIRO: ENFOQUES LEGAIS, CONSTITUCIONAIS E BIOÉTICOS
Embora o Brasil tenha se mantido distante do debate quanto ao aborto nos primeiros séculos de sua história, a situação passou a mudar durante o século XX. O crescimento do interesse político da população em razão da corrupção estatal, a diminuição do número de católicos e a globalização são os principais fatores a contribuir para que o aborto seja um dos temas mais recorrentes no debate público. Desde a década de 1970, o movimento feminista brasileiro tem insistido pela descriminalização do aborto como parte de uma agenda mais ampla de direitos das mulheres.
O campo jurídico brasileiro acompanha a divisão da sociedade e diversifica a posição de seus autores quanto ao tema.
Paulo Bonavides, jurista e jornalista brasileiro argumenta que a Constituição Brasileira de 1988 dá um enfoque especial à dignidade humana e à inviolabilidade da vida, o que implica em uma interpretação restritiva quanto ao aborto (Bonavides, 2008, p. 518-524).
Ainda do lado contrário a descriminalização, Maria Helena Diniz, civilista brasileira, em sua obra “O Estado Atual do Biodireito” defendeu que:
Se o embrião ou feto, desde a concepção, é uma pessoa humana, tem direito a vida. (2001 p.29). Portanto para o nascituro também é assegurado o direito vida, não podendo ser admitido o aborto.” Como acatar o aborto, que acoberta, em si, seu verdadeiro conceito jurídico: assassinato de um ser humano inocente e indefeso? Se a vida ocupa o mais alto lugar de hierarquia de valores, se toda vida humana goza da mesma inviolabilidade constitucional, como seria possível a edição de uma lei contra ela? (...) (Diniz, 2001, p. 26).
No debate contrário, José Afonso da Silva pondera que se leve em conta a evolução dos direitos reprodutivos e a necessidade de equilibrar a proteção à vida com os direitos das mulheres (Silva, 2013, p. 246-247), já Luiz Edson Fachin, ministro do Supremo Tribunal Federal aduz que a constituição deve equilibrar interesses diversos, considerando tanto a proteção da vida, quanto implicações para a saúde e autonomia das mulheres (Fachin, 2012, p. 124-126).
O debate entre doutrinadores brasileiros quanto o aborto ainda é marcado por uma tensão entre a proteção à vida desde a concepção e os direitos reprodutivos das mulheres. Se de um lado, há uma visão mais conservadora que defende a criminalização do aborto com base na proteção do feto, aliado a considerações éticas, morais e religiosas, do outro lado, defensores dos direitos das mulheres argumentam pela necessidade de permitir o aborto em certas circunstâncias, destacando questões da autonomia corporal feminina.
No ordenamento jurídico, a Constituição Federal de 1988, consagrou em seu art. 5º o direito inviolável a vida (Brasil, 1988). Tal direito está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, preceito que conduziu a humanidade em sua evolução social. Na falta de uma garantia do primeiro, os demais direitos tornam-se inviáveis, já que só com a existência o homem pode gozar de liberdade, igualdade, segurança, propriedade e vida digna.
O debate pró-aborto é conduzido justamente pela afirmação de que a garantia constitucional do direito à vida não abrange o nascituro, pois a condição do mesmo não evidencia o contexto total de “vida”.
Cientificamente, é possível reconhecer que instantes após a fecundação há uma coordenada sequência de atos como a organização, sensibilidade, legado hereditário, potencial de replicação e desenvolvimento progressivo, qualidades inerentes a todo ser vivo.
Juridicamente, uma interpretação contrária ao fato científico configuraria uma banalidade retórica. Nas palavras de Alexandre de Moraes:
O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão-somente, dar-lhe enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, resultando um ovo ou zigoto. [...] A Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive uterina. (Moraes, 2005)
Mesmo que se possa argumentar que a constituição não explicite o direito inviolável a vida desde a concepção, o Código Civil Brasileiro de 2002 o faz, quando dispõe que “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Nessa esteira, a doutrina divide o início da personalidade em três teorias, a concepcionista, a da personalidade condicional e a natalista.
A teoria concepcionista, adotada pelo Brasil, assenta que a personalidade é adquirida antes do nascimento, ou seja, desde a concepção, mas ressalva os direitos patrimoniais, como herança, legado e doação, que ficam condicionados ao nascimento com vida. Ao discorrer sobre o assunto, o professor Carlos Roberto Gonçalves, aduziu que:
A personalidade do nascituro não é condicional; apenas certos efeitos de certos direitos dependem do nascimento com vida, notadamente os direitos patrimoniais materiais, como a doação e a herança. Nesses casos, o nascimento com vida é elemento do negócio jurídico que diz respeito à sua eficácia total, aperfeiçoando-a (Gonçalves, 2007).
Na mesma esteira, a professora Silmara J. A. Chinelato propõe:
Juridicamente, entram em perplexidade total aqueles que tentam afirmar a impossibilidade de atribuir capacidade ao nascituro ‘por este não ser pessoa. A legislação de todos os povos civilizados é a primeira a desmenti-lo. Não há nação que se preze (até a China) onde não se reconheça a necessidade de proteger os direitos do nascituro (Código chinês, art. 1°). Ora, quem diz direito, afirma capacidade. Quem afirma capacidade, reconhece personalidade (Chinelato, 2000).
Ao adotar tal teoria, o legislador refletiu os princípios morais que norteiam a população Brasileira, embora tenha condicionado o nascimento com vida para os direitos patrimoniais. Tal postura revelou o harmonioso raciocínio do poder legiferante, que protege o nascituro e aguarda a consumação da realidade pratica com o nascimento.
4 O VOTO DE ROSA WEBER, SUAS IMPLICAÇÕES ÉTICAS E JURIDICAS
Instituído o debate sobre a evidente discrepância entre princípios fundamentais ao ser humano e ao contexto democrático, diversas foram as tentativas de discussão quando a criminalização do aborto e sua revisão nos centros do poder judiciário brasileiro. Os dois principais momentos quanto a isso se deram na ADPF 54 (Brasil, Supremo Tribunal Federal, ADPF 54, 2012), que julgou a descriminalização do aborto em casos de anencefalia e por fim, o debate culminou no tema deste presente trabalho, a ADPF nº 442 (Brasil, Supremo Tribunal Federal, ADPF 442, 2018), proposta pelo PSOL no ano de 2018. Seu principal desdobramento até então deu-se com o voto da ministra Rosa Weber, na data de 22 de setembro de 2023. Em sua fundamentação, Weber aponta questões que justificam seu voto pelo reconhecimento da inconstitucionalidade dos artigos 124 a 126 do Código Penal.
Ao pautar seu voto, de início a ministra expõe a grande problemática de uma ação que paute o aborto ter seu debate na mais alta corte do poder judiciário, o que poderia ser interpretado por muitos como uma violação do princípio da separação de poderes, no qual apenas o congresso nacional, através de seus representantes eleitos deveriam ser protagonistas. Em resposta, a ministra sustenta que todos os entes constituídos em uma democracia liberal, na sujeição as constituições encontram na Suprema Corte o órgão guardião e interprete das leis.
Para a apreciação da referida ação foram identificados a violação de princípios fundamentais tais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, I, CRFB); a cidadania (art. 1º, III, CRFB); a não discriminação (art. 3º, IV, CRFB); a inviolabilidade da vida, desde a concepção (art. 5º, caput, CRFB); a liberdade (art. 5º, caput, CRFB); a igualdade (art. 5º, caput e I, CRFB); a proibição de tortura ou o tratamento desumano e degradante (art. 5º, caput e III, CRFB); a saúde e o planejamento familiar das mulheres (arts. 6º, caput, 226, § 7º, CRFB) e os direitos sexuais e reprodutivos (decorrentes dos direitos à liberdade e igualdade) (art. 6º, caput, combinado com o art. 196, CRFB).
4.1 DEMOCRACIAS CONSENSUAIS
O primeiro grande problema disposto na argumentação do voto pode ser tirado da tese de que as democracias modernas devem valorizar a heterogeneidade de sua população, ouvindo assim todos os setores da sociedade e que a regra decisória da maioria não deve ser o meio empregado para a resposta democrática.
É justo que as democracias modernas ouçam o apelo de suas minorias, garantindo assim seus direitos e evitando fazer da democracia uma ditadura da maioria.
Entretanto, partindo do ensinamento de Ronald Dworkin, filósofo e jurista americano a democracia comunitária é aquela em que os magistrados devem resolver as questões morais de maneira articulada, fundamentada nos valores presentes na Constituição, que definem a sociedade, como se fosse uma decisão única, ou seja, representando a vontade popular (Dworkin, 2005).
Ao trazer esse debate para o aborto, torna-se problemático defender que a vontade da minoria que o quer institucionalizado no país seja imposta a 72% da população que não o quer. A importância da vontade majoritária é o princípio basilar da democracia que aliado a proteção da minoria constitui a expressão máxima do contexto democrático e não o contrário.
4.2 A PROTEÇÃO DA VIDA E DO EMBRIÃO
Em segundo plano, a ministra apresenta sua perspectiva em relação a proteção do direito à vida na constituição brasileira. Sob esse ponto repousa uma das grandes vertentes que conduzem seu voto: a inexistência do consenso do início da vida humana na filosofia, ética, religião e no constitucionalismo. Weber aduz que o art. 5º da Constituição Brasileira em nenhum momento referência o feto ou o embrião, não encontrando, pois, a criminalização do aborto suporte jurídico no ordenamento jurídico nacional.
A ministra ainda admite que mesmo que a constituição adotasse a interpretação da proteção do embrião pelo art. 5º, este deveria ser colocado em uma escala de valores face a outros direitos. Na mesma esteira, aduz que no mesmo sentido da constituição, o Código Civil de 2002 mesmo protegendo os direitos do nascituro não define o que é vida para fins do Direito Civil (Brasil, Código Civil, 2002). Ao tratar de Direito Penal, aponta para a diferença da reprovabilidade da conduta do aborto, de sua pena e graduação de proteção, aduzindo que a vida não traduz valor único e absoluto para o Código Penal como nos casos da pena de morte e a possibilidade do aborto diante do estupro e da anencefalia (Brasil, Código Penal, 1940).
Toda argumentação do voto encontrará uma barreira no momento em que for demarcado o início da vida humana e como dito, este não pode de maneira alguma ser feito na seara jurídica cabendo unicamente a ciência fazê-lo.
Em qualquer outra área o início de algo é demarcado no exato momento que as circunstâncias que o fizeram se unem e dão causa a este novo conjunto. No universo, um aglomerado de partículas e energia formou as galáxias, no caso de nosso planeta, os detritos de uma estrela que explodiu passaram a gravitar em torno do sol e certamente, a vida humana, no exato momento em que o espermatozoide fecunda o óvulo.
Aplicando a teoria aristotélica das quatro causas à concepção da vida humana, temos que a causa material aqui se dá na constituição biológica do embrião, que já possui uma estrutura genética humana desde a concepção. A causa formal se trataria da essência do ser humano, justificando a proteção dessa vida. A causa eficiente identificaria o ato da concepção, ou seja, a união do óvulo com o espermatozoide, como o ponto inicial da vida. Por fim, a causa final reconheceria em todo ser humano um propósito e potencial para se desenvolver plenamente, reforçando a necessidade de proteger a vida desde o seu primeiro instante, a constituição biológica. A concepção, portanto, marca o início deste ciclo de eventos, e de seu primeiro impulso até seu estágio final, constrói o todo humano.
Menosprezar o debate quanto a proteção do embrião e entregá-lo a dialética de que não há um consenso sobre o início da vida humana, transforma o direito em um campo de retórica esvaziada de rigor científico e quando isso acontece, coloca-se em risco a própria função protetiva do ordenamento jurídico. Negar-lhe ao nascituro uma proteção mínima configuraria, portanto, a subversão dos fundamentos basilares de um Estado que se propõe a proteger a vida em todas as suas fases.
4.3 O NASCITURO E A AUTONOMIA FEMININA
Um outro grande ponto do voto parte da premissa de que, mesmo reconhecendo a proteção do nascituro na Constituição, seria necessário aplicar uma escala de valores, na qual o direito à vida não teria caráter absoluto frente a outros direitos fundamentais, com exclusivo enfoque na autonomia feminina. A ministra argumenta que não há qualquer referência à densificação desse direito. Além disso, aduz que, na interpretação da legalidade infraconstitucional, não verificamos o caráter absoluto do direito à vida, especialmente quando o texto constitucional faz referência à pena de morte em situações excepcionais (Art. 5º, LXVII, “a”). Durante seu voto a ministra ainda argumentou que não basta apenas ter vida, mas essa deve ser digna em todas as dimensões.
No entanto, a vida constitui o motor de todos os outros direitos, e sua supressão implicaria na violação tácita de todos os demais, uma vez que, sem a garantia do direito a nascer, inexiste base para a existência ou exercício dos outros direitos.
Em seu livro “A era dos Direitos” Roberto Bobbio destaca:
Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhe são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha guerra como alternativas, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo (Bobbio, 2004).
Nesse sentido, a doutrina de Bobbio sustenta a ideia de que os direitos fundamentais como a vida são bases da sociedade democrática. A violação ou a simples flexibilização tendente ao esquecimento desses direitos atacam as próprias bases do sistema democrático.
Ao discorrer propriamente sobre o aborto e ainda sobre o conflito de direitos do nascituro e da mulher, o jurista italiano ainda defendeu que:
O Indivíduo é “singular”; mas no caso do aborto existe um “outro” no corpo da mulher. O “suicida”, por exemplo, dispõe da sua vida individual, singularmente; mas com o aborto procurado o Indivíduo humano dispõe de uma vida alheia, uma vida que não lhe pertence (Bobbio, 1981, p. 3).
O ensino de Bobbio se contrapõe a argumentação de Weber ao sustentar que o direito à vida, principalmente quando esse pertence a outra pessoa é uma garantia fundamental por excelência. Em suma, Bobbio aduz que a vida do "outro", enquanto direito "primordial" e origem de todos os seus outros direitos e valores, constitui o "meu" dever "primordial", a partir do qual derivam todos os meus demais deveres: seja que consideremos o indivíduo como responsável por esse dever, seja que atribuímos essa responsabilidade ao Estado.
A vida alheia deve ser o valor absoluto da ética do direito e traduz condição essencial para a efetivação das leis e da conscientização da responsabilidade. Desse direito nascem, todos os demais direitos e liberdades fundamentais do indivíduo humano.
O direito positivo, ou a interpretação pessoal deste, de maneira alguma pode ser utilizado para flexibilizar o entendimento e a consagração de direitos fundamentais, mas, deve ser interpretado em conjunto com outros elementos, como a ética e a moral. Taxar a vida como secundária na escala de direitos pode, aparentemente, ser apenas uma via para defender outros, mas, no entanto, revela uma dialética preocupante, a mesma utilizada para conduzir os grandes genocídios de nossa história, que contaram com a conivência do direito positivo.
4.4 ASPECTOS PENAIS
Por sua vez, quando a ministra equipara a legalização do aborto em casos de anencefalia ao aborto legal, argumentando que, uma vez que o direito protege a vida, a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos também seria uma violação do princípio da proteção à vida, ela contradiz a própria Corte; esta já decidiu que, nesse caso específico, não há vida em potencial, realidade bastante distinta daquela ocupada pelo nascituro. Na ocasião, o relator, Ministro Marco Aurélio de Melo, suscitou que “O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida de vida em potencial, mas de morte segura. Anencefalia é incompatível com a vida” (Brasil, Supremo Tribunal Federal, ADPF 54, voto do Min. Marco Aurélio, 2012).
No contexto da uniformidade das normas penais, a ministra ainda argumenta que se o nascituro possui direito a vida e o aborto nada mais é do que um homicídio, a norma penal deveria ser então equiparada ao mesmo. Nesse sentido, há de se reconhecer que a norma penal é deficiente e adotou um personalismo funcionalista, reconhecendo a pessoa humana como “um ser humano mais alguma coisa, sendo esta coisa uma função específica ou uma função localizada numa variável lista de habilidades” (Payne, 2014, p. 70-71), e esquecendo-se de que o nascituro tem a mesma dignidade e proteção constitucional de outros indivíduos. É necessário ressaltar, portanto, que a reprovação legislativa em relação à pena aplicada à conduta, por si só, também não justificaria a legalização.
Quanto a afirmativa do aborto encarcerar mulheres por sua prática, o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) publicado pelo Ministério da justiça em 2022 revelou que na oportunidade, haviam 314 homens e apenas 4 mulheres encarceradas por aborto no país, desmascarando a afirmação de que milhares de mulheres são presas por ano devido a pratica abortiva (Brasil, Ministério da Justiça, 2022).
Argumenta-se ainda que o aborto provocado e clandestino é uma das causas que justificariam a legalização, pois o mesmo, através de meios alternativos, insalubres e ilegais levam um grande número de mulheres a óbito todos os anos, em razão da omissão do Estado em oferecê-lo de forma segura no sistema de saúde.
Nesse sentido, entre 2012 e 2022, foram registradas 483 mortes de mulheres em hospitais públicos decorrentes de complicações de abortos (Motta, 2023). Se compararmos tais dados aos números da prática de outro ilícito, somente entre 2006 e 2010 o Brasil registrou 39.198 óbitos em consequência do uso de substâncias psicoativas, número 8.015% maior que os do aborto em um período de 10 anos (CNM, 2013). Embora toda vida tenha valor e qualquer número relacionado ao aborto, ainda que mínimo, exija a atenção do Estado, as mortes decorrentes de ilícitos não devem servir de justificativa para sua legalização. Pelo contrário, requer do Estado a implementação de políticas de fiscalização mais rigorosas e a criação de políticas públicas que eduquem a população sobre tais práticas.
Mesmo com inúmeros crimes sendo praticados cotidianamente em todo território nacional, a prática recorrente por si só ainda não deixará de ser considerada criminosa. Se assim não estivesse disposto no ordenamento jurídico, seria possível praticar e justificar todo tipo de barbárie.
5 CONCLUSÃO
A história sempre fará o papel de esclarecer a ética e a opinião de uma sociedade em um determinado período. Aquilo que era considerado um ato normal e que poderia ocupar uma posição aceitável e justificável pelas mais diversas teorias e fundamentações, pode com uma guinada de séculos tornar-se um ato vil.
Quando retiramos o véu dos movimentos, do partidarismo e identitarismo de uma pauta como o aborto, longe de frases e tentativas retóricas de torná-lo um ato conformável, só encontraríamos morte.
A humanidade a princípio padece ao defender tais temas de uma pergunta que nos acompanha desde os primórdios de nossa existência: O que é o homem?
A filosofia grega o tratou como um ser dotado de alma, verdadeira essência humana, que busca incansavelmente libertar-se da matéria. A moderna, todavia, englobou a matéria como a totalidade do homem. A escolástica tentou unir estes dois pensamentos, dando a alma racional e a matéria a perfeita união e definição de “ser humano”:
Em síntese, o pensamento pode concluir que todo elemento de nosso corpo, exprime uma intimidade profunda com nossa racionalidade, a partir disso conseguimos manifestar opiniões, sentir empatia, sofrer, chorar e sorrir.
É na concepção o ápice de simultaneidade que a matéria viva e animada ganha força, não há aqui nenhuma distinção do que vem a ser o homem depois. Se um senhor de 64 anos de idade é um ser humano e uma criança de 03 anos também é, o embrião não pode ser outra coisa.
Ao jurista, cabe, portanto, a defesa de tais ideais, assegurando a condição digna da vida humana, o que foi entregue por nossos constituintes ao homem, um ser completo, dotado de um princípio e de um fim.
O direito não existe isoladamente, ele nada mais é do que uma resposta as indagações humanas e sociais, que impulsionam sua criação e embasam sua existência. Toda essa construção desmorona, se ceifados direitos como liberdade, honra, igualde, e o mais básico de todos, o de existir.
Um exemplo disso é o afastamento das leis da ética e da moral na Alemanha nazista. Todas as nefastas atrocidades cometidas pelos nazistas, foram justificadas ao dar aos judeus uma nova classe, uma nova raça, uma concepção diferente do que era o “ser humano alemão”. Com a desumanização de algo, através das mais descabidas apologias, aliando tudo isso a propaganda midiática é possível criar o perfeito cenário para a normalização de algo infinitamente absurdo.
Por mais que a gravidez de uma mãe não seja planejada, o aborto é um ato grave e contrário a nossa natureza e portanto, não pode ser a única resposta para a solução do impasse. Toda mulher pode realizar a entrega voluntária de recém-nascidos ao Judiciário para adoção. Essa é uma grande opção para prevenir o aborto e o abandono de bebês quando as mães, por qualquer razão, não desejam assumir a maternidade. Não constitui crime. Inclusive, tal alternativa está assegurada no artigo 19-A do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ainda que nesse caso exista conflito aparente de outros princípios como autonomia e liberdade, o motor de todos esses, deve ser o direito de viver, de existir. Isso deve ser assegurado pelo estado por meio de uma legislação segura e uniforme, através da promoção de políticas públicas que amparem as duas vidas, a da mulher e a do bebê.
Não se deve de nenhuma forma submeter tal debate ao relativismo e as opiniões que justificam atos brutais através de retórica, e, portanto, cabe ao direito e aos seus operadores serem os grandes combatentes de tais movimentos.
Se fosse possível sintetizar o caráter jurídico e a complexidade da condição humana e suas escolhas, poderíamos afirmar que o ser humano, como sujeito de direitos e deveres, é responsável tanto por atos que violam a ordem costumeira ou positiva quanto por comportamentos que demonstram sua mais elevada dignidade moral. O caráter biológico, contudo, uma vez confiado aos operadores do direito, deve ser conduzido pela própria observação cientifica e partindo dessa, ser traduzido no ordenamento jurídico.
Certamente surgirão opiniões conflitantes, movidas pela vontade individual, religiosidade ou contexto político. Entretanto, com o decorrer dos séculos e o avanço da civilização, só restará ao direito, abraçar as verdades mais perceptíveis e razoáveis à nossa existência: Violar o início da vida do homem, tende a relativizar sua essência característica.
Desconsiderar a análise do aborto sugere uma diminuição do valor intrínseco da existência humana, e é um equívoco se envolver em tal debate, esquecendo que todos os que vivem, compartilham a condição de seres mortais.
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[1] Professora orientadora. Mestre em Direito pela Universidade Brasil. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pelo Centro Universitário de Rio Preto/SP. Advogada e coordenadora do Curso de Direito do Centro Universitário de Jales (UNIJALES). Professora universitária. E-mail: [email protected].
Graduando em Direito pelo Centro Universitário de Jales-SP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINO, IGOR HENRIQUE. A perspectiva ética e jurídica do voto da ministra rosa weber na ADPF 442: uma análise sobre a legalização do aborto no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 nov 2024, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66920/a-perspectiva-tica-e-jurdica-do-voto-da-ministra-rosa-weber-na-adpf-442-uma-anlise-sobre-a-legalizao-do-aborto-no-brasil. Acesso em: 04 nov 2024.
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