RESUMO: O presente estudo analisa o acórdão de 11 de junho de 2009 do Tribunal de Justiça da União Europeia, no processo T-115/07, envolvendo as marcas Lastminute.com e Last Minute Tour. O caso discute a capacidade distintiva e o conceito de “secondary meaning” de expressões descritivas, abordando a disputa entre a Last Minute Network e a Last Minute Tour SpA sobre o uso do termo “last minute” para serviços de viagem. A metodologia utilizada envolve análise jurisprudencial e doutrinária, com foco nas disposições do Regulamento (CE) nº 40/94 e na lei britânica de “passing off”, considerando os elementos distintivos e o público relevante. A hipótese principal é que a Câmara de Recurso desconsiderou o conceito de reputação autônoma segundo o direito britânico, afetando a avaliação do risco de confusão. Conclui-se que o Tribunal acerta ao determinar o reexame sob a legislação aplicável.
Palavras-chave: Propriedade industrial, capacidade distintiva, secondary meaning, passing off, risco de confusão.
1.INTRODUÇÃO
O direito das marcas, enquanto elemento essencial do comércio e da proteção à propriedade intelectual, enfrenta desafios constantes, especialmente no que diz respeito à coexistência de marcas semelhantes ou idênticas em mercados de diferentes jurisdições. Um dos casos emblemáticos que ilustra a complexidade da aplicação das normas de proteção à propriedade industrial no contexto internacional é o litígio envolvendo as marcas LASTMINUTE.COM e LAST MINUTE TOUR, que culminou em um importante julgamento sobre o reconhecimento e a proteção de marcas não registradas, bem como sobre a aplicação da teoria do "secondary meaning" (significado secundário) no direito britânico.
O caso em questão reflete a aplicação do Regulamento (CE) nº 40/94 do Conselho, de 29 de dezembro de 1993, que rege o sistema de marcas comunitárias da União Europeia, e questiona a validade da marca comunitária LAST MINUTE TOUR, registrada pela empresa Last Minute Tour SpA. A disputa, levantada pela Last Minute Network (LMN), com a intenção de anular o registro da marca LAST MINUTE TOUR, envolve questões cruciais relacionadas à reputação de marcas não registradas, ao conceito de "passing off" (uso indevido de denominação) no direito do Reino Unido, e à análise do risco de confusão para o consumidor.
Ao longo deste estudo, serão discutidos os principais fundamentos jurídicos do caso, incluindo a interpretação do conceito de "público relevante", a análise da reputação associada à expressão “last minute”, e os elementos necessários para caracterizar uma apresentação enganosa de produtos e serviços. O julgamento do Tribunal de Justiça da União Europeia e a remissão ao direito britânico revelam a tensão entre as diferentes abordagens jurídicas para a proteção das marcas, o que leva à revisão das decisões da Câmara de Recurso e ao reexame do pedido de nulidade da marca comunitária à luz das exigências do regime jurídico britânico.
Este artigo busca, portanto, analisar as implicações jurídicas do caso, oferecendo uma reflexão crítica sobre a correta aplicação dos princípios do direito das marcas na União Europeia, com especial atenção ao impacto das normas nacionais sobre a proteção da propriedade intelectual em um mercado globalizado.
2.SÍNTESE DOS FATOS
O acórdão sobre o qual se irá versar, exarado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no bojo do Processo n.º T-115/07, em 11 de junho de 2009, gravita, essencialmente, em torno da capacidade distintiva de uma marca e a possibilidade de ter adquirido o denominado “secondary meaning”.
Primordial, para entendimento do contexto, realizar perfunctória análise dos fatos.
Anteriormente ao litígio objeto de estudo, a sociedade Last Minute Network (LMN), com sede em Londres (Reino Unido), apresentou, em 25 de fevereiro de 2000, pedido de registro, como marca comunitária, do sinal nominativo “LASTMINUTE.COM”, para serviços das classes 39 e 42[1], nomeadamente:
Classe 39: “Agências de viagens; marcação de viagens; serviços de assessoria, informações e consultadoria relacionados com os serviços atrás referidos”;
Classe 42: “Agências de viagens; marcação de restaurantes; fornecimento de serviços e equipamento para permitir o comércio através de meios electrónicos ou de meios não electrónicos; concepção de serviços para a pesquisa e a recuperação de informações através da Internet e bases de dados em linha, incluindo os respectivos sistemas de comunicação em rede; serviços de clubes para encontros/apresentação; serviços de acompanhamento em sociedade; prestação de informações através da Internet, bases de dados e outros meios electrónicos relacionados com os serviços atrás referidos; jardinagem; serviços de assessoria, informações e consultadoria relacionados com os serviços atrás referidos”.
O Instituto de Harmonização do Mercado Interno (IHMI), todavia, ao apreciar a solicitação, indeferiu-a, sob o fundamento de que a expressão “last minute” era meramente descritiva e carecia de caráter distintivo; sendo de domínio público, deveria permanecer disponível para todos os operadores.
Posteriormente, a sociedade Last Minute Tour SpA (LMT), com sede em Milão (Itália), em 11 de março de 2000, solicitou o registro, como marca comunitária, de sinal que consistia na escrita estilizada das palavras LAST MINUTE TOUR, a ser utilizado para serviços das classes 16, 39 e 42, correspondendo à seguinte descrição:
Classe 16: “Papel, cartão e produtos nestas matérias, não incluídos noutras classes; produtos de impressão; catálogos; horários impressos; panfletos; livros; jornais, revistas (publicações periódicas); artigos para encadernação; fotografias; rótulos; papelaria; adesivos (matérias colantes) para papelaria ou para uso doméstico; material para artistas; pincéis; máquinas de escrever e artigos de escritório (com excepção dos móveis); material de instrução ou de ensino (com excepção dos aparelhos); matérias plásticas para a embalagem (não incluídas noutras classes); cartas de jogar; caracteres de imprensa; clichés (estereótipos)”;
Classe 39: “Agências de viagens e turismo; marcação de viagens; organização de viagens; organização de cruzeiros e excursões; transporte e acompanhamento de viajantes; transportes aéreos; aluguer de meios de transporte; informações sobre transportes”;
Classe 42: “Serviços de hotéis, restaurantes, pensões, aldeamentos turísticos, bares, clubes privados; serviços relativos à reserva de hotéis e de aldeamentos turísticos; elaboração (concepção) de software; aluguer de software informático”.
Ante a esse fato, a sociedade Last Minute Network opôs-se ao registro da marca comunitária, alegando o seu direito, no Reino Unido, à marca não registrada “LASTMINUTE.COM”, que utilizava comercialmente desde 1998. Apesar disso, seu pleito foi rejeitado, face não ter produzido, em prazo hábil, prova do direito invocado. Como consequência, a marca LAST MINUTE TOUR fora devidamente registrada como marca comunitária.
Insatisfeita, a Last Minute Network apresentou pedido de declaração de invalidade, sob os mesmos fundamentos anteriormente apresentados. A Divisão de Anulação do IHMI, reconhecendo a reputação gozada pela LMN no Reino Unido, bem como a possibilidade de confusão entre as duas marcas, acatou o seu pedido, anulando a marca comunitária LAST MINUTE TOUR para os serviços da classe 39 e 42, porém mantendo para a classe 16, posto não ter a LMN comprovado o uso do sinal “LASTMINUTE.COM” relativamente aos serviços dessa categoria.
A Last Minute Tour SpA, por sua vez, apelou, solicitando a reforma da decisão no extrato em que anulava sua marca para os serviços de classe 39 e 42. Simultaneamente, a LMN solicitou a reforma da parte que mantinha a marca comunitária para a classe 16.
Ao julgar o caso, a Câmara de Recurso foi favorável à LMT, deferindo seu pleito e anulando a decisão de nulidade do registro para as classes 39 e 42, além de negar a requisição da LMN e manter a decisão para a classe 16.
Segundo a Câmara de Recurso, ao tomar-se por consideração a natureza dos produtos e dos serviços em causa, bem como a qualidade de marca do Reino Unido não registrada do sinal anterior, o público relativamente ao qual a análise do risco de confusão deveria ser feita havia de ser constituído por consumidores médios destes produtos e serviços residentes naquela país, normalmente informados e razoavelmente atentos e avisados.
Entendeu, ademais, que a expressão “last minute” era composta por dois vocábulos correntes, portanto, sendo uma menção descritiva e desprovida de caráter distintivo perante os produtos e serviços em causa, não seria passível de registro, exceto se acompanhada de outros elementos que lhe conferissem um mínimo de caráter distintivo.
Afirma que a adição da palavra “tour”, em “last minute tour”, associada ao elemento gráfico, haviam permitido à marca comunitária não colidir com os motivos absolutos de recusa de registro, inscritos no regulamento n.º 40/94; todavia, sendo formado por palavras usuais, não poderia opor-se à utilização das expressões “last minute”ou “tour” por outras agências de turismo ou viagem.
Considerou, também, que a reputação da LMN estava ligada ao sinal LASTMINUTE.COM como um todo, com todos os seus elementos, e não à menção genérica “last minute”. Essa reputação era reconhecida exclusivamente para efeitos da ação por uso indevido de denominação prevista pelo direito britânico e não poderia servir para conceder um monopólio da mencionada expressão, não distintiva no que respeita aos produtos e serviços em causa.
No tocante ao risco de confusão, a Câmara de Recursos avaliou ser inexistente, posto que, segundo seu entendimento, o público do Reino Unido, ao ser confrontado com o sinal LAST MINUTE TOUR, não necessariamente associaria as ofertas por este apresentadas ao titular da marca LASTMINUTE.COM: pensariam apenas tratar-se de produtos e serviços “de última hora” (“last minute”). O público tomaria por base os elementos distintivos de cada sinal para que pudessem estabelecer a diferença relativamente a todos os outros prestadores de serviços semelhantes que também utilizam aquela expressão em suas ofertas e serviços.
Diante disso, a LMN solicitou ao Tribunal de Justiça da União Europeia que anulasse a decisão da Câmara de Recursos, para, por fim, declarar nula a marca comunitária LAST MINUTE TOUR para os serviços abrangidos nas classes 16, 39 e 42.
Analisemos, portanto, se o direito assiste à parte recorrente.
Em suma, deseja a empresa Last Minute Network (doravante LMN) a nulidade da marca comunitária LAST MINUTE TOUR (representada pelo IHMI e Last Minute Tour Spa, doravante LMT) para os produtos abrangidos pelas classes 16, 39 e 42.
Com o fito de aferir uma possível anulabilidade da marca LAST MINUTE TOUR, bem como correção do entendimento exarado pela Câmara de Recurso, imprescindível se faz a análise das disposições do Regulamento (CE) nº 40/94 do Conselho, de 29 de dezembro de 1993, aplicável ao caso.
Segundo o artigo 52º, n.º 1, alínea c), combinado com o artigo 8º, n.º 4, ambos do supramencionado texto legislativo, o titular de uma marca não registrada ou de outro sinal utilizado na vida comercial cujo alcance não seja apenas local poderá obter a anulação de uma marca comunitária mais recente, na sequência de um pedido ao Instituto de Harmonização do Mercado Interno, quando, em consonância com o direito do Estado-Membro aplicável, hajam sido adquiridos direitos sobre esse sinal antes da data de depósito da marca comunitária, e, simultaneamente, esse sinal confira ao seu titular o direito de proibir a utilização de uma marca posterior.
Desse modo, competia à Câmara de Recurso ter tomado por base, igualmente, em respeito à norma citada, tanto as disposições legais quanto as decisões proferidas pelos tribunais do devido Estado-Membro sobre o tema, para que se pudesse aferir se os pressupostos supramencionados foram alcançados.
Considerando o fato de a marca LASTMINUTE.COM operar no Reino Unido, certo é que a norma aplicável ao caso seria o Trade Marks Act, de 1994. Dispõe, no corpo da Section 5(4):
(4)A trade mark shall not be registered if, or to the extent that, its use in the United Kingdom is liable to be prevented—
(a)by virtue of any rule of law (in particular, the law of passing off) protecting an unregistered trade mark or other sign used in the course of trade, or (…)
Conforme se apontou no acórdão analisado, e em consonância com a lei e jurisprudência britânica[2], três requisitos deveriam ser cumpridos para que, sob o escopo do regime jurídico da ação por uso indevido de denominação (law of passing off), e objetivando a proteção da marca nacional não registrada LASTMINUTE.COM, se pudesse obter a declaração de nulidade da marca comunitária LAST MINUTE TOUR.
Primeiramente, a demonstração da reputação gozada pela parte demandante à época em que o demandado começou a oferecer seus produtos e serviços. Vale dizer que esta não fora questionada pelo IHMI, tendo, inclusive, sido admitida pelo Instituto quando da decisão recorrida: é fato inconteste.
No que diz respeito ao tempo, salienta-se o desacordo entre a legislação britânica e a comunitária. Conforme explanado, o art. 8º, n.º 4, do Regulamento 40/94 determina, como data a ser considerada, aquela em que haja ocorrido o depósito da marca comunitária, ao afirmar, como primeiro requisito de nulidade, que o requerente da ação de nulidade tenha adquirido direitos sobre a sua marca nacional não registrada antes da data do depósito, in casu, 11 de março de 2000.
O segundo elemento traduz-se pela comprovação de que a oferta no Reino Unido, por parte da Last Minute Tour SpA, de serviços idênticos e produtos complementares aos disponibilizados pela Last Minute Network constituiu, em 11 de março de 2000 (data de solicitação do registro da marca comunitária), uma apresentação enganosa, passível de induzir o público relevante em erro, fazendo com que atribuam a esta a origem comercial dos produtos e serviços por aquela oferecidos. A intencionalidade é, aqui, irrelevante para a aferição deste requisito.
A respeito desse quesito, para que se possa avaliar o dito caráter enganoso, importante ressaltar a identidade dos produtos oferecidos por ambas as partes: se, por um lado, as classes 39 e 42 já eram idênticas, por outro, a classe 16, conforme reconhecido pela Câmara de Recurso, representa produtos meramente complementares aos serviços das classes anteriores.
Por fim, o terceiro elemento da ação por uso indevido de denominação, segundo a jurisprudência em causa, é a possibilidade de a Last Minute Networks sofrer, em decorrência do fato anterior (apresentação enganosa), um prejuízo comercial.
Estabelecidos esses pontos, conjugando, portanto, o artigo 8º, n.º 4 do Regulamento 40/94, ao qual fora suscitada pela recorrente a violação, à legislação e jurisprudência do Reino Unido (em consonância com o reenvio ali estabelecido), o Tribunal subdividiu o pleito em três diferentes acusações, que serão individualmente analisadas a seguir: relativamente à definição do público relevante; à reputação gozada pela expressão “last minute” à data do depósito do pedido de marca comunitária; e, finalmente, relativamente ao caráter enganoso que poderia ter, à época, uma oferta de serviços idênticos aos da LMN e de produtos complementares efetuada no Reino Unido sob o sinal LAST MINUTE TOUR.
Vejamos.
a) Sobre a definição do público relevante
O grande ponto de atrito, aqui, refere-se ao fato de a Câmara de Recursos ter, quando da prolação de seu entendimento, para a apuração do caráter enganoso da apresentação de bens e serviços pela marca comunitária, qualificado como público relevante o consumidor médio do Reino Unido, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado. Não tomou em consideração, dada a reputação da marca não registrada LASTMINUTE.COM, se seus clientes, ao depararem-se com a os produtos e serviços da concorrente, não teriam sido induzidos a acreditar que possuíam a mesma proveniência.
Ora, a jurisprudência do Reino Unido consagrou uma definição diferente da clássica[3] para o termo público relevante, para fins da ação por uso indevido de denominação: consideram-se como tal os clientes da parte demandante, e não o conceito abstrato adotado pela Câmara de Recurso.
Essa diferença de conceito, na prática, pode traduzir-se em resultados absolutamente diversos, posto que o risco de um consumidor ser enganado por marca que, supostamente, possa lhe causar confusão, atribuindo a outrem a origem dos produtos, não necessariamente coincide com o risco de quando esse mesmo consumidor já é cliente da empresa.
Desse modo, conclui-se que a Câmara de Recurso agiu de modo desacertado ao tomar por definição de público relevante o consumidor médio, ao invés de, em consonância com o reenvio operado pelo artigo 8º, n.º 4, do Regulamento n.º 40/94, tê-lo conceituado como o cliente do demandante na ação por uso indevido de denominação.
b) A respeito de recusa de reconhecimento de reputação autônoma à expressão “last minute”
De acordo com a decisão da Câmara de Recurso, a expressão “last minute” é descritiva e desprovida de caráter distintivo, não sendo, por essa razão, passível de proteção. Algumas considerações são, a esse propósito, pertinentes.
Certo é que o Regulamento n.° 40/94 apresenta, no corpo de seu art. 7º, os motivos absolutos de recusa de determinada marca, e, dentre eles, encontra-se a ausência de caráter distintivo.
A capacidade distintiva da marca, conforme leciona Couto Gonçalves[4], além de indicar que os produtos ou serviços, em grande parte dos casos, provêm sempre de uma empresa[5], também indica que os “produtos ou serviços se reportam a um sujeito que assume em relação aos mesmos o ónus pelo seu uso não enganoso”.
Essa capacidade é essencial à definição e próprio cumprimento da função inerente da marca, que deve ser capaz de, por si só, individualizar uma espécie de produtos e serviços.[6]
Em consonância com as lições do mestre Nogueira Serens, “a marca garante ao comprador que todos os produtos que a ostentam provêm da mesma empresa – o consumidor pode não a conhecer, é certo, mas sabe que só pode ser uma, exactamente aquela que tem direito ao uso exclusivo do sinal”.[7] [8]
Ora, uma marca meramente descritiva não pode, realmente, cumprir essa função. Definida como aquela que tem “a virtualidade de informar o público sobre as características, qualidades, funções destinações ingredientes, efeitos, proveniência geográfica ou outras propriedades do produto ou serviço correspondente”[9], a marca descritiva seria comum aos demais objetos idênticos, independentemente de sua origem, não oferecendo distinção alguma entre os produtos e serviços oferecidos por determinada marca e suas concorrentes.
Por essas razões, proíbe-se o registro de marcas meramente descritivas e sem capacidade distintiva.
Não podemos olvidar, no entanto, que o caso analisado não se rege pelas meras regras comuns: por força do reenvio realizado pelo famigerado art. 8º, n.º 4, do Regulamento 40/94, devemos considerar, in casu, a legislação e jurisprudência britânicas.
Estas, por sua vez, admitem que uma marca, ainda que inicialmente não distintiva e dotada de sentido descritivo, adquira, pelo uso, uma reputação autônoma, distinta da marca: é a denominada teoria do “secondary meaning”[10].
Nogueira Serens[11] explica tratar-se da circunstância em que um sinal “que não era compreendido como marca ou, dizendo de outra maneira, que não era associado pelos círculos interessados do tráfico a um determinado empresário, sendo antes percebido no seu sentido originário (“primary meaning”) de denominação genérica ou de indicação descritiva acaba por adquirir, em consequência do uso que desse sinal é feito por esse mesmo empresário, aquele outro sentido – que se diz secundário, não por assumir menor importância, mas porque se afirma mais tarde no tempo”.
Em igual sentido, define-o Couto Gonçalves[12] como o fenômeno através do qual um sinal originalmente privado de capacidade distintiva converte-se, como consequência do uso e de mutações semânticas ou simbólicas, em um sinal distintivo de produtos ou serviços, sendo reconhecido como tal no tráfico econômico, por meio de seu significado secundário.
Ante a essas informações, torna-se aparente o equívoco da decisão da Câmara de Recurso, posto ter afirmado que a reputação da LMN estaria apenas associada ao sinal LASTMINUTE.COM como tal, com todos os seus elementos, mas não à menção genérica “last minute”; bem como que a reputação seria meramente reconhecida para efeitos da aplicação da lei do Reino Unido sobre uso indevido de denominação, não podendo servir à monopolização do termo “last minute”, desprovido de caráter distintivo, agiu de forma equivocada.
A Câmara de Recurso não tomou por consideração a teoria do “secondary meaning”, consagrada pela jurisprudência do Reino Unido; não poderia, à luz desse ordenamento jurídico, ter-se negado a reconhecer reputação autônoma à menção “last minute” pelo simples fato de tratar-se de denominação genérica e desprovida de caráter distintivo relativamente aos produtos e serviços em causa: conforme vimos, esses fatos não são impeditivos a esse reconhecimento, sob o escopo da teoria do “secondary meaning”.
Clarividente, portanto, não ter a Câmara de Recurso respeitado a remissão à lei britânica, operada pelo art. 8º, n.º 4, do Regulamento 40/94 e aplicável à marca nacional não registrada LASTMINUTE.COM.
c) Sobre a não consideração da reputação autônoma da expressão “last minute” para efeitos de apreciação do caráter enganosa de uma apresentação dos produtos e serviços em causa sob o sinal LAST MINUTE TOUR
A marca, conforme já mencionado, possui por papel primordial garantir que o consumidor possa identificar a origem dos produtos e serviços fornecidos. Entretanto, quando isso não ocorre, poderá gerar o denominado risco de confusão.
Nas palavras de Novais Gonçalves[13], este pode ser definido como a séria probabilidade de o público crer que determinados produtos e serviços provenham de uma mesma empresa ou de empresas economicamente ligadas entre si. Quando isso ocorre, é conferido ao titular da marca mais antiga, dita anterior, o direito de obstar a entrada e retirar do mercado a marca mais recente, dita subsequente.
Essa probabilidade, conforme aponta Nogueira Serens[14], não pode ser formulada em abstrato: deve-se tomar por consideração os produtos a que cada uma das marcas se destina. O risco de confusão dar-se-á tanto maior quanto maior for a afinidade dos produtos em questão. Esta, por sua vez, conforme aponta Carlos Olavo[15], afere-se em face do próprio objeto do direito à marca, ou seja, a distinção da respectiva origem empresarial.
O conceito de risco de confusão está diretamente ligado ao denominado princípio da especialidade, por meio do qual a identidade ou semelhança entre duas marcas apenas gerará confusão, ou risco de confusão, caso os respectivos produtos sejam idênticos ou afins.[16]
Esse risco fora consagrado na jurisprudência britânica, constituindo, conforme já mencionado, um dos requisitos para ação por uso indevido de denominação: a apresentação enganosa, que confunda o público na aferição da proveniência do produto. Desse modo, o risco de confusão encontra-se presente tanto no direito do Reino Unido, quanto expressamente previsto no artigo 8º, n.º 1, alínea b) do Regulamento 40/94.
A avaliação do caso realizado pela Câmara de Recurso fora, no entanto, errônea. Apesar de se ter valido do artigo supracitado, não tomou por consideração as exigências próprias da ação por uso indevido de denominação (conforme artigo 8º, n.º 4 do Regulamento 40/94, por remissão de seu artigo 52º, n.º 1, alínea c)). Afirmou apenas, após análise superficial, que inexistiria o risco de confusão, sob o fundamento de que, devido ao fraco caráter distintivo de ambos os sinais analisados, o público concentraria sua atenção sobre seus elementos distintivos e dominantes, para, então, em um segundo momento, comparar ambos os sinais nos planos visual, fonético e conceitual.
Ora, no contexto da norma britânica, a verificação de apresentação enganosa não pode limitar-se, simplesmente, ao exame comparativo de ambas as marcas, feito pela Câmara de Recurso; deve incluir, também, outros fatores, que, para o presente caso, traduz-se nas circunstâncias em que os serviços eram oferecidos, no Reino Unido, sob o signo LAST MINUTE TOUR, ao tempo do depósito da marca comunitária.
Conforme aponta o Tribunal, apesar da dificuldade de aplicação do regime por uso indevido de denominação no âmbito do pedido de declaração de nulidade inscrito no Regulamento comunitário, dado o fato de a data a ser considerada ser a do depósito do pedido de marca comunitária, e não à do início da oferta dos produtos e serviços controvertidos (conforme pressupõe a ação de “passing off”)[17], não poderia a Câmara de Recurso ter deixado de aplicar as disposições do Regulamento que fossem devidamente compatíveis com o regime por uso indevido de denominação.
Por todo o analisado, denota-se que, embora a Câmara de Recurso tenha admitido a considerável reputação que a marca nacional não registrada LASTMINUTE.COM gozava no Reino Unido, opôs-se, paradoxalmente, à possibilidade de conferir ao termo “last minute” um “secondary meaning”, conforme preleciona o ordenamento jurídico britânico. Por essa razão, inclusive, negou possível risco de confusão, à época do depósito do pedido de registro da marca comunitária, entre os produtos oferecidos pela Last Minute Network e Last Minute Tour SpA.
De acordo com a análise, portanto, repete-se não ter sido devidamente observada a remissão, inscrita no artigo 8.°, n.° 4, do Regulamento n.° 40/94, ao direito do Reino Unido.
Pelo exposto, assim, afirma-se que o Tribunal concluiu, de forma acertada, pela anulação das decisões impugnadas, determinando a necessidade de o Instituto de Harmonização do Mercado Interno “reexaminar o pedido de declaração de nulidade da marca comunitária LAST MINUTE TOUR à luz do conjunto dos requisitos da acção por uso indevido de denominação, incluindo, sendo caso disso, o relativo ao prejuízo decorrente do carácter eventualmente enganoso, no espírito dos clientes da LMN, de uma oferta dos bens e serviços em causa que se presume ter ocorrido no Reino Unido, sob o sinal LAST MINUTE TOUR, à data do depósito do pedido de marca comunitária”.[18]
5.CONCLUSÃO
O caso Last Minute Network v. IHMI - Last Minute Tour, analisado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, destaca questões cruciais sobre a aplicação do direito de marcas, especialmente no que tange à capacidade distintiva de termos genéricos e à teoria do “secondary meaning”. A decisão da Câmara de Recurso foi equivocada ao não considerar a possibilidade de atribuição de reputação autônoma ao termo "last minute", apesar de sua natureza inicialmente descritiva.
A teoria do “secondary meaning”, consagrada pela jurisprudência britânica, evidencia que uma expressão que, a princípio, não apresenta caráter distintivo pode, ao longo do uso, adquirir uma identificação exclusiva com a origem empresarial, proporcionando-lhe proteção legal.
Além disso, a análise do risco de confusão, elemento essencial no direito das marcas, também foi insuficiente, pois a Câmara de Recurso não levou em conta as circunstâncias do mercado e a utilização dos sinais em questão no Reino Unido na data do depósito do pedido de registro. A correta aplicação do Regulamento 40/94, em especial sua remissão ao direito britânico, era imprescindível para garantir a proteção adequada à marca LASTMINUTE.COM, que, à época, já gozava de uma reputação considerável.
O Tribunal, ao anular as decisões impugnadas e determinar um novo exame do caso, reafirmou a importância de uma análise profunda e contextualizada ao tratar de marcas com significados genéricos, reconhecendo, com isso, a evolução do uso das marcas no mercado e o papel da jurisprudência na adaptação das normas às realidades econômicas. Este caso serve de importante precedente, reforçando a relevância de se considerar as nuances da aplicação da marca, a fim de preservar a justiça e a clareza nas relações comerciais.
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[1] Conforme acordo de Nice relativo à Classificação Internacional dos Produtos e Serviços para registro de marcas.
[2] O leading case no Reino Unido fora o “Reckitt and Colman Products Ltd v Borden Inc. and Others”, julgado pela Câmara dos Lordes em 1990. A ação por uso indevido de denominação serve à proteção de marcas não registradas, e fora resumidamente definida, nesse leading case, como “no man may pass his goods off as those of another”. Estabeleceu-se, ali, o teste da trindade clássica: três requisitos que, se cumpridos, demonstrariam o direito de ação. São eles: comprovação de que os produtos ou serviços adquiriram boa fé ou reputação nas mentes do público comprador (purchasing public), que os distingam daqueles oferecidos pela concorrência; apresentação enganosa dos produtos, intencional ou não, por parte do requerido, que leve os consumidores a pensarem que aqueles foram oferecidos pelo requerente; e, por fim, que dano seja causado ao requerente em razão dessa apresentação enganosa.
[3] Conceito idêntico ao adotado pela Câmara de Recursos é expresso por Carlos Olavo, ao afirmar que o público relevante é “constituído pelo consumidor médio desses produtos ou serviços, normalmente informado e razoavelmente advertido”. (OLAVO, Carlos. Propriedade Industrial, volume 1: Sinais Distintivos do Comércio/ Concorrência Desleal. Almedina: Coimbra, 2005, p. 82).
[4] GONÇALVES, Luís M. Couto – Manual de Direito Industrial: Patentes, desenhos ou modelos, marcas, concorrência desleal, Almedina, Coimbra, 2008a, p. 190.
[5] Ou “de uma empresa sucessiva que tenha elementos consideráveis de continuidade com a primeira (no caso de transmissão desvinculada) ou ainda que mantenha com ela relações actuais de natureza contratual e económica (nas hipóteses da licença de marca registada usada ou da marca de grupo, respectivamente”. (GONÇALVES (2008a), ob. cit. p. 190).
[6] GONÇALVES (2008a), ob. cit. p. 232.
[7] SERENS, Manuel Nogueira. A “vulgarização” da marca na Directiva 89/104/CEE, de 21 de dezembro de 1988. Gráfica de Coimbra: Coimbra, 1995, p. 9.
[8] Em igual sentido, Novais Gonçalves, ao afirmar ser a marca um sinal distintivo do comércio, cuja principal função é garantir a identificação da origem empresarial do produto que a exibe, permitindo ao comprador diferenciar as várias proveniências empresarias dos produtos oferecidos em cada setor do mercado. (GONÇALVES, Jorge Novais. A marca prestigiada no direito comunitário das marcas. In Direito Industrial. Vol. 5. Almedina: Coimbra, 2008, p. 314).
[9] SERENS, Manuel Nogueira, ob. cit. p. 31.
[10] Consagrado no jurisprudência britânica com o caso Camel Hair (Frank Reddaway Ltd. v. George Banham), de 1986. Nele, reconheceu-se que, após utilizar o vocábulo Camel Hair Belting por anos, essa expressão havia adquirido uma reputação autônoma (secondary meaning), imediatamente ligada à sua marca pelos consumidores. (ng-loy, wee loon – The meaning of ‘invented’ in trade mark law. Disponível em: <http://www.sal.org.sg/digitallibrary/Lists/SAL%20Journal/Attachments/197/1997-9(1) -SAcLJ-203-NgLoy.pdf>).
[11] SERENS, ob. cit. p. 79.
[12] GONÇALVES, Luís M. Couto. O uso da marca. In Direito Industrial. Vol. 5. Almedina: Coimbra, 2008b, p. 386.
[13] GONÇALVES, Jorge Novais, ob. cit. p. 314.
[14] SERENS, ob. cit. p. 9.
[15] OLAVO, ob. cit. p. 96.
[16] GONÇALVES, Jorge Novais, ob. cit. p. 315.
[17] Em razão de, à época do depósito da marca comunitária, a parte demandada não deveria estar oferecendo seus produtos ou serviços: logo, a apreciação das circunstâncias em que estes eram oferecidos, à época do depósito da marca comunitária, é, deveras, impossível.
[18] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA, 2009.
Graduada em Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais, menção em Direito Empresarial, pela Universidade de Coimbra, Portugal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NOGUEIRA, Marcele Tavares Mathias Lopes. Análise do Acórdão de 11 de junho de 2009, julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia – Processo T-115/07: Last Minute Network v. IHMI - Last Minute Tour Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2024, 04:28. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/66983/anlise-do-acrdo-de-11-de-junho-de-2009-julgado-pelo-tribunal-de-justia-da-unio-europeia-processo-t-115-07-last-minute-network-v-ihmi-last-minute-tour. Acesso em: 21 nov 2024.
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