RESUMO: Receber um diagnóstico de câncer é um momento difícil e inimaginável, que acaba trazendo diversas questões relacionadas ao tema, especialmente quanto a parte financeira do tratamento. Por se tratar de direito social fundamental, amparado na Constituição Federal, a saúde é constantemente alvo de ações judiciais, a fim de adquirir, restabelecer ou reestruturar o direito. Para iniciar ou continuar o tratamento, muitas vezes se faz necessário adquirir um medicamento prescrito pelo médico especialista, diariamente são solicitados às operadoras de planos de saúde o forneçam. Ocorre que, objetivando diminuir gastos, muitas solicitações são negadas. Recorre-se, então, ao Poder Judiciário para que este resolva a lide e, se for o caso, obrigue a operada de plano de saúde a fornecer o medicamento domiciliar para tratamento de câncer para o beneficiário e, ainda, indenize por danos morais o beneficiário que teve sua solicitação negada.
Palavras-chave: planos de saúde; medicamentos; câncer.
ABSTRACT: Receiving a cancer diagnosis is a difficult and unimaginable moment, which ends up raising several questions related to the topic, especially with regard to the financial part of the treatment. As it is a fundamental social right, supported by the Federal Constitution, health is constantly the target of legal actions, in order to acquire, reestablish or restructure the right. To start or continue treatment, it is often necessary to purchase a medication prescribed by a specialist doctor, and health plan operators are asked to provide it daily. It turns out that, to reduce expenses, many requests are denied. It is then up to the Judiciary to resolve the dispute and, if applicable, oblige the health plan operator to provide the beneficiary with home medicine for cancer treatment and also compensate the beneficiary for moral damages. beneficiary who had their request denied.
Keywords: health plans; medicines; cancer.
INTRODUÇÃO
Um diagnóstico de câncer é um momento desafiador para qualquer pessoa. Surgem diversas incertezas e inseguranças sobre as novas etapas do processo, ainda que seja uma doença tratável.
Além das questões de saúde, como a viabilidade do tratamento, há questionamentos sobre a parte financeira, os custos para arcar com o processo terapêutico.
As operadoras de planos de saúde podem dar o suporte necessário em muitos momentos nessas etapas, como em exames, consultas e cirurgias. Porém, e quanto ao fornecimento de medicamentos para o câncer?
Para facilitar a visualização, analisaremos um caso hipotético.
Ana, brasileira, idosa, aposentada, é diagnosticada com neoplasia renal, iniciando tratamento oncológico com um médico especialista de sua confiança.
O médico responsável decidiu adotar determinado medicamento a ser administrado por Ana em sua residência: uma caixa de um medicamento X, um comprimido por dia.
Analisando os preços do medicamento antineoplásico nas farmácias, foi encontrado o preço padrão de R$ 60 mil uma caixa com 30 comprimidos, suficiente para 1 mês. Ana, então, solicita ao seu plano de saúde que o forneça.
Por ser beneficiária do plano há anos, extremamente adimplente, Ana fica confiante ao realizar a solicitação, acreditando que não terá que arcar com os elevados custos do fármaco.
Para a sua surpresa, a solicitação é negada com a justificada “produto sem cobertura”.
Indignada e assustada, Ana aciona o Poder Judiciário para que obrigue o plano de saúde por meio de uma obrigação de fazer a fornecer o respectivo medicamento solicitado pelo médico especialista cumulado com indenização por danos morais.
Nesse sentido, a judicialização da saúde é um dos temas mais debatidos na atualidade. A intervenção judicial acaba funcionando como controle da inexistente ou insuficiente atuação privada, ainda que a situação deva ser analisada caso a caso.
Estabelecidas tais premissas, o artigo, por meio de revisão da literatura, objetiva estabelecer uma análise interdisciplinar (direito e medicina), focando na indispensabilidade do direito social à saúde, na viabilidade do fornecimento de medicamento domiciliar para tratamento de câncer pela operadora de plano de saúde e na possibilidade de se indenizar por danos morais após a negativa, fazendo, ao mesmo tempo, análise qualitativa da jurisprudência nacional quanto ao tema e da recente edição da súmula vinculante n° 61 aprovada pelo Supremo Tribunal Federal e seus desdobramentos no direito privado.
DESENVOLVIMENTO
DA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE
O direito à saúde está entrelaçado com o direito à vida, que tem por inspiração o valor de igualdade entre as pessoas. No Brasil, o direito à saúde tem origem no movimento da Reforma Sanitária, que refletiu na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), na Constituição Federal de 1988 (CF) (Souza, 2018).
A CF foi o primeiro texto na história do Direito Constitucional brasileiro a reconhecer o direito à saúde como direito fundamental (Mendes; Branco, 2015)
O artigo 196 da CF estabelece que:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Assim, nota-se a fundamentalidade do direito à saúde, seja em sua dimensão subjetiva ou objetiva, sendo dever do Estado atuar em sua proteção, e desenvolver as condições e procedimentos capazes de assegurar sua implementação, seja em uma concepção individual ou coletiva (Queiroz; Lourenço, 2019).
Além de ser um direito social, o direito à saúde é indissociável do direito à vida. Assim, o Estado não pode ser omisso diante de um problema de saúde de uma pessoa, sob pena de incidir em comportamento inconstitucional e poder ser demandado judicialmente, por exemplo, para garantir assistência terapêutica, incluindo farmacêutica (Ramos, 2013).
Como o Estado não é capaz de gerir a saúde na totalidade com eficácia, carecendo a saúde pública de recursos, e sendo a saúde necessária para a manutenção e continuidade da vida, muitas pessoas aderem aos planos oferecidos pelas operadoras privadas.
É certo que não existiriam ou seriam escassos os planos de saúde em um cenário em que existem diversos postos públicos de saúde funcionando perfeitamente pelo país, com diversos profissionais trabalhando, materiais e estruturas capazes de atender as demandas.
É possível pensar que existem donos bilionários[1] de operadoras de planos de saúde apenas em uma realidade em que a saúde pública não é eficaz.
Nesse sentido, não se pode separar a saúde e a economia, pois o lucro das operadoras de saúde, as negativas de atendimento e a judicialização da saúde estão interligados.
Ressalta-se a influência do poder econômico e do capitalismo sobre (i) as políticas públicas de saúde; (ii) as transformações de bens ambientais em bens patrimoniais comercializados como novas tecnologias de saúde; (iii) o enfraquecimento das relações de trabalho dos profissionais da saúde; e (iv) o modo de vida que muitas pessoas encaram o direito à saúde (Oliveira; Nascimento, 2019), inclusive por meio de ações judiciais em que se busca o bem-estar, muitas vezes negado pela iniciativa privada.
A título de aprofundamento, no Brasil, a maior parte dos consumidores de sedativos, como o clonazepam, são de classes mais pobres. O fato de serem prescritos mais psicotrópicos a essas pessoas pode indicar que essas substâncias são usadas para acalmar as grandes massas (Lembke, 2023), talvez até controlar.
É possível que o debate dos tópicos seguintes seja fortemente influenciado por uma economia instável e atuação estatal que carece de fiscalização na atuação privada.
Nessa linha, ao regulamentar os planos de saúde, a Lei nº 9.656/98, impactou consideravelmente a relação entre operadoras e beneficiários. Isso porque, entre outros pontos, a lei estabeleceu coberturas mínimas obrigatórias, ocasionando uma mudança nas condições assistenciais, no acesso e garantia de direitos (Campos, 2006).
Certamente a atuação da Agência Nacional de Saúde (ANS) tem papel crucial, mas ainda parece haver uma necessidade maior de gestão ou gerenciamento sobre as operadoras de plano de saúde, pois muitas lides não resolvidas com a operadora acabam precisando do Poder Judiciário.
A título de aprofundamento, atualmente o canabidiol está em segundo lugar nas demandas de saúde do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, possivelmente para obrigar que as operadoras o forneçam após a negativa na via administrativa, ficando atrás apenas das consultas[2], possivelmente negadas ou limitadas pela operadora.
Apesar dos números consideráveis nas demandas, as indenizações por danos morais acabam não servindo para punir as empresas, provavelmente devido ao lapso temporal entre a petição inicial e o efetivo pagamento.
A operadora lucra justamente nos casos não judicializados, em que as pessoas desconhecem os seus direitos ou deixam de procurar advogado especializado por acharem que o valor cobrado é caro.
Posto isso, as políticas públicas sociais são o principal instrumento estatal para (re)distribuição de renda, atribuindo bens e serviços àqueles que mais necessitam (Santos, 2024). Além disso, como não poderia deixar de ser, as políticas públicas de saúde são uma excelente forma de promover a igualdade social (Santos, 2016).
O SUS é a maior política pública de acesso à saúde no país, que fornece inclusive remédios gratuitamente. A Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) apresenta os medicamentos oferecidos nos níveis de atenção e nas linhas de cuidado do SUS, sendo também instrumento orientador do uso de medicamentos e insumos (Relação, 2022).
Entre vários medicamentos fornecidos, encontram-se fármacos antineoplásicos, destinados a tratamento até mesmo em casa. Como muitas pessoas são beneficiárias dos planos de saúde, solicitam que o próprio plano forneça o medicamento, seja por não constar no rol do rename, seja pelo beneficiário não preencher os requisitos para obrigar o fornecimento por um ente público.
DA RESPONSABILIZAÇÃO DO PLANO DE SAÚDE EM CASOS DE CÂNCER
Estima-se que existam 20 milhões de novos casos de câncer e 10 milhões de mortes causadas pela doença por ano. Na América, o câncer é a segunda causa mais incidente de morbidade (Câncer em números, 2023).
Companhas como Outubro Rosa e Novembro Azul trazem alertas importantes para a população sobre a doença. Inclusive, o Instituto Nacional do Câncer – INCA (2024) divulgou em outubro de 2024 que mulheres negras têm 57% de chance a mais de vir a falecer por câncer de mama do que as brancas.
Após a descoberta da doença, surgem muitas dúvidas e anseios. São diversos termos técnicos, opções de tratamento, medicações e exames.
Com as constantes mudanças no tratamento do câncer, as drogas estão cara vez mais caras e as estratégias de tratamento, mais individualizadas (Kozan, 2019).
Havendo prescrição de terapia por meio de medicamentos anticancerígenos, o tratamento pode durar anos, como no caso da hormonioterapia, que pode ser usada de forma isolada ou em combinação com outras formas terapêuticas (Tratamentos do câncer, 2023).
Somando os remédios, as consultas e cirurgias, o preço pode ser bem elevado para o paciente. Uma possibilidade para evitar gastos é solicitar ao plano de saúde que forneça o medicamento.
Posto isso, as operadoras de planos de saúde recebem diariamente solicitações para fornecer fármacos antineoplásicos, que podem ser administrados pelo próprio paciente em sua residência.
Após o laudo médico especificando o medicamento domiciliar e a requisição, é comum que os planos de saúde se neguem a fornecer, utilizando justificativas como “produto sem cobertura”; “caráter experimental ou fora das hipóteses previstas na bula (off-label)” e “não previsão em rol da ANS”.
Ocorre que nenhuma dessas justificativas merecem prosperar. Conforme entendimento já bastante pacificado do Superior Tribunal de Justiça (STJ), as operadoras de planos de saúde têm o dever de cobertura de fármacos antineoplásicos utilizados para tratamento contra o câncer, sendo irrelevante analisar a natureza taxativa ou exemplificativa do rol da ANS (AgInt no REsp 2.057.814-SP).
No Recurso Especial nº 1.721.873/SP, o STJ decidiu que "a recusa de cobertura de tratamento prescrito por médico especialista, sob a alegação de que o procedimento não consta no rol de procedimentos da ANS, é ilícita, por representar abusividade e afronta ao direito à saúde".
Ainda, no REsp 1.874.078/PE, o STJ decidiu que "não é cabível a negativa de tratamento indicado pelo profissional de saúde como necessário à saúde e à cura de doença efetivamente coberta pelo contrato de plano de saúde”.
Nesse sentido, vejamos:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. MEDICAMENTO DOMICILIAR PARA CÂNCER. NEGATIVA DE COBERTURA. ABUSIVIDADE. SÚMULA 83/STJ. DANOS MORAIS INDENIZÁVEIS. REEXAME DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS E DO ACERVO FÁTICO-PROBATÓRIO. INVIABILIDADE. SÚMULA 5/STJ E SÚMULA 7/STJ.
1. As operadoras de plano de saúde têm o dever de cobertura de fármacos antineoplásicos utilizados para tratamento contra o câncer, sendo irrelevante analisar a natureza taxativa ou exemplificativa do rol da ANS.
2. É abusiva a recusa do plano de saúde quanto à cobertura de medicamento prescrito pelo médico, ainda que em caráter experimental ou fora das hipóteses previstas na bula (off-label), porquanto não compete à operadora a definição do diagnóstico ou do tratamento para a moléstia coberta pelo plano contratado.
3. Inviável, em recurso especial, a reinterpretação de cláusulas contratuais e o reexame de matéria fático-probatória. Incidência das Súmulas 5 e 7 do Superior Tribunal de Justiça.
Agravo interno improvido.
(AgInt no REsp n. 2.015.052/SP, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 19/8/2024, DJe de 22/8/2024.)
(Grifos nossos)
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO COMINATÓRIA CUMULADA COM COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. PLANO DE SAÚDE. MEDICAMENTO ANTINEOPLÁSICO. ROL DE PROCEDIMENTOS E EVENTOS EM SAÚDE DA ANS. NATUREZA EXEMPLIFICATIVA.
1. Ação cominatória c/c compensação por danos morais, visando a cobertura de medicamento antineoplásico.
2. A natureza do rol da ANS é meramente exemplificativa, reputando, no particular, abusiva a recusa de cobertura de tratamento prescrito para doença coberta pelo plano de saúde 3. Agravo interno não provido.
(AgInt no REsp n. 1.961.555/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 28/3/2022, DJe de 30/3/2022.)
(Grifos nossos)
Sendo assim, fica demonstrada a responsabilidade das operadoras de planos de saúde em fornecer medicamento domiciliar para tratamento de câncer, considerando abusiva a negativa.
Inclusive, conforme a súmula n° 102 do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), “havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS”.
Além disso, a resolução normativa nº 465/2021 da ANS confirma a obrigação dos planos em fornecer medicamentos para o tratamento do câncer, contanto que prescrito pelo médico responsável.
DA NOVA SÚMULA VINCULANTE
A súmula vinculante (ou súmula de efeito vinculante) consiste em um enunciado sintético, geral e abstrato, em formato semelhante ao das súmulas não vinculantes, sendo capaz de expressar a ratio decidenti comum às reiteradas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Seu comando deverá ser seguido pelos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública, em todos os níveis da federação (Jansen, 2005).
Posto isso, o STF editou uma nova súmula vinculante.
Ainda que se trate de súmula voltada ao ajuizamento de processos no direito público para que os entes públicos fornecem medicamentos, logo não se relacionando com planos de saúde e processos cíveis, parece-nos relevante mencionar a nova súmula.
Nesse sentido, o STF publicou no Diário Oficial da União (DOU) no início de outubro a Súmula Vinculante n° 61, que obriga a adoção pelo Poder Judiciário de critérios fixados no julgamento do Tema 6 de repercussão geral (RE 566.471), ao analisar pedidos de fornecimento de medicamentos de alto custo ainda não incorporados ao SUS.
O enunciado da súmula informa que:
A concessão judicial de medicamento registrado na Anvisa, mas não incorporado às listas de dispensação do Sistema Único de Saúde, deve observar as teses firmadas no julgamento do Tema 6 da Repercussão Geral (RE 566.471).
Agora, os juízos devem seguir esse novo entendimento ao analisar demandas de disponibilização judicial de medicamentos.
No julgamento do RE 566.47, o STF introduziu critérios mais rigorosos para a aquisição de medicamentos de alto custo aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não incorporados ao SUS.
Pelas teses fixadas pelo relator, ministro Gilmar Mendes no Tema 6, o Judiciário só deve dar ordem judicial para fornecimento de medicamento se estiverem presentes cumulativamente os seguintes requisitos:
No final de setembro, o STF publicou a Súmula Vinculante n° 60:
O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243).
Tal súmula consolida as teses definidas por Gilmar Mendes, que estabeleceram que, quando for reconhecida a necessidade de fornecimento, o custeio deverá ser da seguinte forma:
O tema traz reflexões para o direito público ao estabelecer parâmetros como a necessidade de negativa, comprovação de eficácia e imprescindibilidade clínica.
Tais paramentos também são necessários ao ajuizar um processo no direito privado.
(i) negativa: o entendimento padrão é que o plano de saúde não pode ser obrigado a fornecer judicialmente um medicamento que não chegou a ser negado administrativamente pela operadora. O plano de saúde certamente colocaria que o autor carece de interesse de agir, devendo o caso ser analisado minuciosamente pelo juízo.
(ii) comprovação de eficácia do medicamento: muitos fármacos ainda estão em fase de teste, seria ilógico obrigar um ente público ou uma operadora de plano de saúde a fornecer um medicamento sem eficácia comprovada.
(iii) imprescindibilidade clínica: o laudo médico que prescreve o uso de determinado remédio deve constar o estado de saúde do paciente, relatando, ainda que minimamente, (a) o histórico do tratamento e (b) a razão para escolher determinado medicamento, especialmente quando experimental.
Ao ajuizar um processo de saúde para que a operada de plano de saúde forneça um medicamento, há certos documentos a ser juntados no processo que só a prática advocatícia pode ensinar, como os últimos comprovantes de pagamento, comprovando o adimplemento do autor/beneficiário.
DA TUTELA DE URGÊNCIA PARA OBRIGAÇÃO DE FORNECER MEDICAMENTO
No combate pela redução da morosidade na prestação jurisdicional, surgiram as tutelas provisórias de urgência, objetivando garantir a duração razoável do processo, para evitar o perecimento do direito das partes pelo lapso temporal até a resolução judicial final (Benites, 2024).
Ressaltando a importância e celeridade do direito à saúde, é perfeitamente cabível em muitos processos uma tutela provisória, que advém do caráter não definitivo de sua concessão, sendo, portanto, posteriormente confirmada em uma sentença definitiva (Voigt; Santos, 2017).
Nessa linha, o direito à saúde é subjetivo e público, oponível contra o Estado, em todas as esferas, devendo ser observado como requisitos: (i) o risco da preservação da vida e (ii) a dignidade da pessoa humana (Souza, 2018).
Nas demandas judiciais de saúde, por se tratar de tema delicado e de impraticável interrupção em caso de medicamento essencial a pessoa (Souza, 2018), torna-se crucial requerer uma tutela de urgência.
Nesse sentido, vejamos:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COM PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA E EVIDÊNCIA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. OBRIGAÇÃO DE A OPERADORA DE PLANO DE SAÚDE CUSTEAR MEDICAMENTO NÃO REGISTRADO NA ANVISA. TEMA 990. APLICAÇÃO DA TÉCNICA DA DISTINÇÃO (DISTINGUISHING) ENTRE A HIPÓTESE CONCRETA DOS AUTOS COM A QUESTÃO DECIDIDA EM SEDE DE RECURSO REPETITIVO. JULGAMENTO: CPC/15.
1. Ação de obrigação de fazer ajuizada em 03/07/2020, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 21/07/2021 e atribuído ao gabinete em 21/03/2022. Julgamento: CPC/15.
2. O propósito recursal consiste em decidir se: i) houve negativa da prestação jurisdicional e; ii) a operadora de plano de saúde está obrigada a custear medicamento importado para tratamento da doença que acomete o beneficiário, o qual, apesar de não registrado pela ANVISA, possui autorização para importação em caráter excepcional.
[...]
(REsp n. 1.983.097/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/5/2022, DJe de 5/5/2022.)
(Grifos nossos)
DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. AGRAVO INTERNO NO PEDIDO DE TUTELA PROVISÓRIA NO RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. ROL DA ANS. TESE DA "TAXATIVIDADE MITIGADA". MEDICAMENTO. USO OFF-LABEL. NEGATIVA DE COBERTURA. ABUSIVIDADE.
1. Segundo disposto no art. 300 do CPC, a tutela provisória de urgência poderá ser concedida quando houver elementos que caracterizem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo.
2. Segunda Seção do STJ firmou o entendimento de que há a "taxatividade mitigada" do rol de procedimentos e eventos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
[...]
4. "Segundo a jurisprudência do STJ, é abusiva a recusa da operadora do plano de saúde de custear a cobertura do medicamento registrado na ANVISA e prescrito pelo médico do paciente, ainda que se trate de fármaco off-label, ou utilizado em caráter experimental, especialmente na hipótese em que se mostra imprescindível à conservação da vida e saúde do beneficiário" (AgInt no REsp 2.016.007/MG, Relator Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 17/4/2023, DJe de 20/4/2023).
Agravo interno improvido.
(AgInt na TutPrv no REsp n. 1.987.707/SC, relator Ministro Humberto Martins, Terceira Turma, julgado em 21/8/2023, DJe de 24/8/2023.)
(Grifos nossos)
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 2653502 - PE (2024/0193827-7) DECISÃO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PLANO DE SAÚDE. NEGATIVA COBERTURA TRATAMENTO PRESCRITO PELA MÉDICA ASSISTENTE. CÂNCER DEMAMA COM RECIDIVA ÓSSEA. MEDICAMENTO ABEMACICLIBE E FULVESTRANTO. USO OFF LABEL. TRATAMENTO VINCULADO AO RESTABELECIMENTO DASAÚDE DA SEGURADA. DEVER DE COBERTURA. ROL DA ANS COM CARÁTER DE COBERTURA MÍNIMA. AUSÊNCIADO PERIGO DA IRREVERSIBILIDADE DO PROVIMENTO. RECURSO IMPROVIDO. AGRAVO INTERNO PREJUDICADO. À UNANIMIDADE.
- Antecipação de tutela de urgência conferida pelo juízo monocrático no sentido de determinar o custeamento do fornecimento do medicamento ABEMACICLIBE 150 mg, de12/12 horas e FULVESTRANTO 500 mg IM, conforme prescrição médica, para tratar Neoplasia de Mama, com recidiva óssea.
- A médica assistente justificou a utilização dos medicamentos pleiteados.
- Não cabe à seguradora determinar qual o procedimento que deve ser realizado no combate à doença que acomete um enfermo.
- O rol de procedimentos de cobertura obrigatória elaborado pela Agência Nacional de Saúde reveste-se de caráter de cobertura mínima a ser fornecida pelos planos de saúde aos seus segurados.
[...]
- O medicamento possui registro na ANVISA (Nº 112600199), e a prescrição para uma finalidade diferente da que consta em sua bula, mas cuja eficácia é reconhecida pela comunidade médica, não impede seu uso.
- A própria ANVISA já tratou, em artigo de sua autoria, sobre ouso Off Label de medicamentos, admitindo sua prescrição.
- A seguradora Agravante não logrou êxito em demonstrar que a medicação solicitada teria caráter experimental ou seria ineficaz para o tratamento requerido.
[...]
(AREsp n. 2.653.502, Ministro Raul Araújo, DJe de 01/10/2024.)
(Grifos nossos)
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PLANO DE SAÚDE. PACIENTE DIAGNOSTICADO COM CÂNCER. NEGATIVA DE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO.
RECUSA INJUSTIFICADA. ROL DA ANS. IRRELEVÂNCIA. MEDICAMENTO OFF-LABEL. RECUSA ABUSIVA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.
1. No caso, ao decidir sobre a necessidade de fornecimento do medicamento REGORAFENIB (STIVARGA), indicado expressamente pelo médico assistente, para tratamento da neoplasia de reto, a Corte de origem concluiu que a operadora é obrigada a custear o tratamento.
[...]
3. A jurisprudência do STJ considera abusiva a recusa do plano de saúde quanto à cobertura de medicamento prescrito pelo médico, ainda que em caráter experimental ou fora das hipóteses previstas na bula (off-label), porquanto não compete à operadora a definição do diagnóstico ou do tratamento para a moléstia coberta pelo plano contratado.
4. Agravo interno desprovido.
(AgInt no REsp n. 2.047.246/RS, Relator Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 21/8/2023, DJe de 25/8/2023).
(Grifos nossos)
Em muitos casos, o autor não tem condições de saúde para esperar o exercício do contraditório sem que isto lhe acometa ainda mais prejuízos ao seu bem-estar. Podem ser gravíssimas as consequências decorrentes do não fornecimento de determinado medicamento, resultando até mesmo na possibilidade de óbito.
Ao acionar o Poder Judiciário, havendo uma liminar deferida, o juízo determinará o fornecimento do medicamento pela operadora de plano de saúde, possivelmente com multa por hora ou diária pelo não cumprimento da decisão liminar após a intimação, como meios coercitivos de cumprimento da decisão (Câmara, 2019).
Além disso, não há que falar em irreversibilidade dos efeitos da tutela provisória, visto que os mesmos poderão ser recompostos a qualquer momento, com a possibilidade de cobrança de valores na eventualidade de vir a ser vencido o consumidor na demanda.
CONCLUSÃO
Ao estabelecer o direito à saúde como um direito de todos e dever do Estado, a Constituição forneceu ao Poder Judiciário um papel importantíssimo na solidificação e concretização desse direito.
Entendendo que o SUS não é capaz sozinho de suportar com eficiência as demandas, a iniciativa privada ganha papel relevante na garantia do acesso à saúde. Portanto, é preciso contar com a iniciativa privada, que deve se submeter a função social, incluindo as grandes indústrias farmacêuticas.
Às vezes, a iniciativa privada deixa a desejar, negando consultas, exames e procedimentos a fim de evitar gastos, ainda que seja garantido ao beneficiário por meio de contrato. Não havendo resolução do problema na via administrativa, não resta outra opção: é preciso recorrer ao Judiciário.
Por essa razão, o Judiciário tem recebido muitas demandas para se manifestar sobre saúde, número crescente ao longo dos anos, e tido uma postura para assegurar o direito à saúde. Postura essa muito pró-beneficiário.
Nessa linha, ao analisar um processo que envolve uma operadora de plano de saúde, devem-se observar vários requisitos para resguardar ao beneficiário a sua proteção como parte hipossuficiente na relação jurídica.
As negativas de fornecimento de remédios para tratamento domiciliar do câncer têm se relevado abusivas, permitindo inclusive indenização por danos morais. Destaca-se que a jurisprudência vem pacificamente reconhecendo o direito a indenização por danos morais nos casos de negativas abusivas por parte dos planos de saúde.
A título de aprofundamento, o montante indenizável não pode ser irrisório, a ponto de menosprezar a dor e o abuso sofridos pelo beneficiário, e deve considerar a função punitiva, pedagógica e reparatória da indenização por danos morais, com o fim de desestimular a reiterada conduta abusiva da operadora, visando à obtenção de lucro por meio da reprovável violação de direitos básicos do consumidor.
De modo geral, a jurisprudência tem assegurado o direito à saúde e o fornecimento de medicamentos para o câncer por planos de saúde, sendo necessários requisitos básicos para comprovar o direito e a relevância de determinado medicamento para o caso concreto.
Ao fornecer o medicamento antineoplásico ao beneficiário do plano, as operadoras fortalecem o acesso e ampliação de um direito tão importante, cumprindo talvez até a sua função social.
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[1] Para a matéria completa, acessar: https://forbes.com.br/forbes-money/2022/09/lista-da-forbes-quem-sao-os-bilionarios-do-setor-de-saude/#:~:text=Depois%20da%20Rede%20D'or,no%20ranking%20da%20Forbes%20Brasil. Acesso em 14/10/2024.
[2] Para a matéria completa, acessar o link: https://painelsaude.trf2.jus.br/. Acesso em 14/10/2024.
Bacharel em Direito pela faculdade Imaculada Conceição do Recife - FICR. Pós-graduada em Direito Tributário Municipal pelo IAJUF. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALDAS, Mirela Reis. A (des)obrigação de planos de saúde fornecer medicamento para câncer Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2024, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67203/a-des-obrigao-de-planos-de-sade-fornecer-medicamento-para-cncer. Acesso em: 04 dez 2024.
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