RESUMO: O artigo explora o constitucionalismo multinível e o constitucionalismo popular, analisando suas manifestações no contexto latino-americano e suas influências europeias e norte-americanas. O estudo aborda a interação entre soberania nacional e ordens supranacionais, destacando o papel de instituições como a União Europeia e o MERCOSUL. Analisa-se também o papel dos tribunais na democracia contemporânea e a dinâmica de globalização que afeta os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. A metodologia inclui análise doutrinária e normativa, visando compreender as tensões e diálogos constitucionais emergentes.
Palavras-chave: Constitucionalismo multinível, Constitucionalismo popular, Globalização, Soberania, Direitos Humanos.
1.Introdução
O presente artigo investiga o impacto do constitucionalismo multinível e do constitucionalismo popular no cenário jurídico contemporâneo, com foco em como esses conceitos são aplicados na América Latina. O artigo examina as interações entre diferentes ordens jurídicas e a influência das normas internacionais nos sistemas legais nacionais, salientando a importância de um diálogo contínuo entre poderes e atores sociais.
2. Constitucionalismo Multinível
2.1. Origem e Conceito
O conceito de constitucionalismo multinível surgiu da necessidade de adaptar as estruturas estatais a um cenário global mais interconectado e complexo. Originado na experiência europeia, especialmente na União Europeia, este modelo envolve a cessão parcial de soberania dos Estados para participar de uma ordem supranacional. Aqui, os países membros aceitam submeter aspectos de sua legislação e jurisdição à autoridade de instituições comunitárias, promovendo um equilíbrio entre interesses nacionais e coletivos. Essa dinâmica é central no funcionamento da União Europeia, que exemplifica a eficácia das normas comunitárias ao integrá-las diretamente nas legislações dos Estados membros.
2.2. Aplicações no Contexto Latino-Americano
No cenário latino-americano, o constitucionalismo multinível adquiriu relevância, especialmente no que tange aos direitos humanos e à integração jurídica regional. No Brasil, e em outros países da região, esse conceito é essencial para entender a interação com tribunais internacionais como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ao ratificar convenções internacionais, os países latino-americanos voluntariamente aceitam uma limitação de sua soberania, ao se comprometerem a cumprir as decisões dessa Corte. Isso reflete uma forma de constitucionalismo multinível, onde as normas de direitos humanos ratificadas sobrepõem-se a determinadas legislações nacionais, reforçando a proteção dos direitos fundamentais.
Por outro lado, a implementação desse modelo em organizações como o MERCOSUL apresenta características distintas em comparação com a União Europeia. Enquanto na UE as normas comunitárias têm aplicação imediata nos países membros, no MERCOSUL, há necessidade de um processo interno de incorporação das normas acordadas. Este procedimento envolve a adaptação e aprovação legislativa em cada país, o que evidencia as diferenças fundamentais na estrutura de integração entre esses blocos. Essa distinção sublinha as variações de aplicabilidade e eficácia do constitucionalismo multinível em diferentes contextos regionais, refletindo a diversidade das experiências de integração jurídica e política na América Latina.
3. Constitucionalismo Popular e Mediado
3.1. Constitucionalismo Popular
O constitucionalismo popular é uma teoria que desafia a autoridade das cortes judiciais em interpretar a Constituição, argumentando que essa tarefa deveria ser responsabilidade do povo e de seus representantes eleitos. Este conceito, amplamente debatido nos Estados Unidos por estudiosos como Mark Tushnet, Larry Kramer e Jeremy Waldron, critica o controle jurisdicional de constitucionalidade, considerando-o ilegítimo, pois os juízes não possuem mandato democrático. A teoria se baseia na "dificuldade contramajoritária", uma tensão entre a atuação judicial e a soberania popular. No Brasil, embora o controle de constitucionalidade seja praticado, o debate sobre o constitucionalismo popular persiste no meio acadêmico, questionando até que ponto o judicial review respeita a vontade popular expressa por via legislativa.
3.2. Constitucionalismo Popular Mediado
O constitucionalismo popular mediado, concebido por Barry Friedman, representa uma abordagem mais equilibrada, reconhecendo o papel das cortes constitucionais, mas ressaltando que suas decisões são moldadas e influenciadas por diversos atores sociais, como a mídia, líderes políticos e a sociedade civil em geral. Friedman sustenta que, apesar de os juízes não serem eleitos, suas decisões estão sujeitas a escrutínio público e político, o que garante que as cortes permaneçam em sintonia com a vontade popular. Este modelo propõe que a atuação judicial deve refletir um diálogo contínuo entre as cortes e a sociedade, assegurando que as decisões judiciais não se afastem das expectativas sociais, mantendo-se, contudo, à margem das pressões momentâneas da opinião pública.
4. Globalização e Constitucionalismo
4.1. Desafios e Oportunidades
A globalização impõe uma nova dinâmica aos poderes estatais, demandando adaptações no Poder Legislativo para harmonizar leis com tratados internacionais e no Poder Executivo para cooperar em questões transnacionais. O Poder Judiciário brasileiro, por meio do constitucionalismo multinível, deve atuar em sinergia com normas internacionais.
4.2. O Papel dos Tribunais
Os tribunais, especialmente as Supremas Cortes e Tribunais Constitucionais, desempenham um papel crucial nas democracias modernas. Eles atuam em três funções principais: contramajoritária, representativa e iluminista.
4.2.1 Papel Contramajoritário
O papel contramajoritário dos tribunais é talvez o mais debatido e controverso. Ele se refere à capacidade das cortes de controlar a constitucionalidade dos atos dos poderes Legislativo e Executivo, podendo invalidar leis e decisões que, embora aprovadas democraticamente, sejam consideradas inconstitucionais. Essa função é vital para proteger direitos fundamentais e garantir o funcionamento das regras do jogo democrático. No entanto, levanta a "dificuldade contramajoritária", onde decisões de juízes não eleitos podem se sobrepor à vontade popular expressa por representantes eleitos.
4.2.2 Papel Representativo
O papel representativo das cortes se manifesta quando suas decisões refletem ou até mesmo antecipam demandas sociais, por vezes mais efetivamente do que legislações oriundas do Parlamento. Isso pode ocorrer devido à qualificação técnica dos juízes, à vitaliciedade que lhes confere autonomia e à obrigação de fundamentar suas decisões de forma extensiva e criteriosa. Nessas circunstâncias, os tribunais podem atuar como uma voz representativa dos anseios sociais, promovendo mudanças que as instâncias políticas tradicionais não conseguem ou relutam em realizar tempestivamente.
4.2.3 Papel Iluminista
O papel iluminista dos tribunais envolve promover avanços sociais e direitos fundamentais que transcendem o status quo e as normas vigentes. Historicamente, decisões judiciais que aboliram a segregação racial ou que reconheceram novos direitos individuais exemplificam este aspecto. No entanto, este papel deve ser exercido com cuidado para evitar que as cortes sejam vistas como instâncias hegemônicas, potencialmente afastadas das realidades sociais e das prerrogativas políticas dos demais poderes do Estado.
Luís Roberto Barroso destaca que, embora cada papel tenha seu valor, é crucial que os tribunais atuem de forma equilibrada, evitando excessos que possam levar a uma "ditadura do Judiciário", a um populismo judicial ou a um iluminismo desmedido. As sociedades democráticas devem cultivar um ambiente de liberdade de expressão e debate público, que permita um diálogo contínuo entre os poderes do Estado e a sociedade civil, assegurando que as cortes mantenham sua legitimidade e relevância no cenário político contemporâneo.
5. Desafios do Constitucionalismo Abusivo
David E. Landau, em seu estudo sobre constitucionalismo abusivo, alerta sobre o uso de mecanismos legais de mudança constitucional para corroer gradualmente a democracia, sem recorrer à força aberta típica de golpes de estado. Em países como Colômbia, Venezuela e Hungria, Landau observa que emendas ou novas constituições, embora formalmente válidas, são utilizadas para minar a ordem democrática, tornando os regimes menos democráticos ao longo do tempo, sem chegar ao autoritarismo completo.
No Brasil, o Ministro Luís Roberto Barroso, ao julgar a ADPF 622 sobre alterações no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), destacou como mudanças normativas aparentemente neutras podem, em conjunto, ameaçar a democracia ao corroer progressivamente a tutela de direitos. Barroso mencionou que o fenômeno de retrocessos democráticos, caracterizados por alterações normativas pontuais, tem sido denominado como "constitucionalismo abusivo", "legalismo autocrático" e "democracia iliberal".
Esses regimes são liderados por figuras carismáticas que, uma vez no poder, alteram o sistema legal para assegurar sua continuidade no poder, esvaziando ou capturando instituições de controle e combatendo opositores políticos e sociais. Barroso alerta que, embora o Brasil possua instituições robustas e em funcionamento, é importante aprender com outras nações e estar vigilante a mudanças que, sob o pretexto de cumprir a Constituição, concentram poder indevidamente e ameaçam a democracia.
6. Conclusão
Este artigo analisou o impacto do constitucionalismo multinível e do constitucionalismo popular no contexto jurídico latino-americano, enfatizando a importância de adaptação e diálogo contínuo entre as ordens jurídicas nacionais e internacionais. A análise mostrou que, enquanto o constitucionalismo multinível promove a integração legal e os direitos humanos por meio de mecanismos supranacionais, como demonstrado na interação com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o constitucionalismo popular desafia a autoridade tradicional das cortes judiciais, buscando uma maior participação democrática na interpretação constitucional.
No que concerne à globalização, observamos como os poderes estatais devem alinhar suas funções às normas internacionais, com os tribunais desempenhando papéis cruciais—contramajoritário, representativo e iluminista—no equilíbrio entre a autoridade judicial e a soberania popular. A atuação dos tribunais deve ser cuidadosa para evitar excessos que poderiam resultar em um desbalanço de poder, prejudicando a legitimidade do Judiciário.
Por fim, os desafios impostos pelo constitucionalismo abusivo foram destacados como uma preocupação crescente, onde mudanças normativas podem ameaçar a estrutura democrática. O alerta de regimes que utilizam reformas legais para corroer gradualmente a democracia sem recorrer à força expõe a necessidade de vigilância constante e de aprendizagem com experiências internacionais para proteger a robustez das instituições nacionais.
Este estudo sugere que futuras investigações continuem a explorar a interação entre diferentes modelos de constitucionalismo e a globalização, promovendo um entendimento mais aprofundado das maneiras pelas quais essas dinâmicas afetam a governança democrática e a proteção de direitos fundamentais na América Latina e além.
Referências
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ALMEIDA, Lilian Barros de Oliveira. Globalização, constitucionalismo e os Poderes do Estado brasileiro. Mestre em Constituição e Sociedade pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasília, DF, Brasil; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.
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Advogada, graduada em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais e Pós Graduada em Direito Público e Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Legale
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARDOSO, RAPHAELA NATALI. Constitucionalismo Multinível e Constitucionalismo Popular no Contexto da Globalização: Desafios e Perspectivas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 dez 2024, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67387/constitucionalismo-multinvel-e-constitucionalismo-popular-no-contexto-da-globalizao-desafios-e-perspectivas. Acesso em: 24 dez 2024.
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