LUCIMARA RADDATZ
NÚBIA SANTOS
(orientadores)
RESUMO: Este estudo visa investigar quais parâmetros norteiam a interpretação jurídica da Justiça Federal frente a flexibilização da aferição judicial da miserabilidade para a concessão do benefício de prestação continuada (BPC), com base em processos julgados no ano de 2023 no Estado do Tocantins. O objetivo é analisar a ocorrência de divergências de entendimento nas decisões quanto à aferição do critério da miserabilidade, identificando quais os aspectos sociais da realidade do requerente incorporam a fundamentação de julgamentos de concessão e improcedência do benefício. A pesquisa adotou uma abordagem qualitativa, exploratória e descritiva, sendo utilizada uma pesquisa bibliográfica em decisões e julgamentos da Justiça Federal - Seção Judiciária do Tocantins do ano de 2023, para averiguar quais são os parâmetros adotados pelos julgadores para determinar uma condição de vida miserável em casos controversos e que resultaram em diferentes entendimentos. Além disso, o estudo também avalia os desafios dessa flexibilização nas ações judiciais dos requerentes e beneficiários do Benefício. Os resultados apontam que é fundamental que o Poder Judiciário adote uma postura mais uniforme na análise dos casos que envolvem a concessão do BPC, garantindo um equilíbrio entre a necessária flexibilização para abarcar a realidade social dos beneficiários e a manutenção de um sistema jurídico coerente e previsível.
Palavras-chaves: Assistência Social. Benefício de Prestação Continuada. Miserabilidade.
ABSTRACT: This study aims to investigate which parameters guide the legal interpretation of the Federal Court in view of the flexibility of the judicial assessment of poverty for the granting of the continuous benefit benefit (BPC), based on cases judged in the year 2023 in the State of Tocantins. The objective is to analyze the occurrence of divergences of understanding in the decisions regarding the assessment of the poverty criterion, identifying which social aspects of the applicant's reality incorporate the grounds for judgments of granting and denying the benefit. The research adopted a qualitative, exploratory and descriptive approach, using a bibliographic research in decisions and judgments of the Federal Court - Judicial Section of Tocantins from the year 2023, to ascertain which parameters are adopted by the judges to determine a miserable living condition in controversial cases and which resulted in different understandings. In addition, the study also assesses the challenges of this flexibility in the legal actions of the applicants and beneficiaries of the Benefit. The results indicate that it is essential that the Judiciary adopts a more uniform stance in the analysis of cases involving the granting of BPC, ensuring a balance between the necessary flexibility to encompass the social reality of beneficiaries and the maintenance of a coherent and predictable legal system.
Key-words: Social Assistance. Continuous Benefit Payment. Poverty. Legal Insecurity.
1.INTRODUÇÃO
O Benefício de Prestação Continuada – BPC, é um direito social de assistência aos desamparados contemplado pelo art. 6º da Constituição Federal que protagoniza a política assistencial do Estado de redução da vulnerabilidade socioeconômica de pessoas portadoras de deficiência e idosos em situação de pobreza e exclusão social, visando atender as necessidades básicas do ser humano.
Através da Lei 8.742/1993, que regulamenta a assistência social no Brasil, é garantido um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. A Lei Orgânica da Assistência Social prevê o preenchimento cumulativo de dois requisitos para determinar a elegibilidade para concessão desse benefício, qual seja, a deficiência e/ou idade e a miserabilidade.
Nesse contexto, o estudo aborda a controvérsia administrativa e judicial de aferição da miserabilidade, critério essencial para a concessão do BPC, com foco especialmente na flexibilização interpretativa dos tribunais, que tem causado divergências de entendimento quanto aos parâmetros que determinam uma situação de pobreza. A pesquisa se concentra em analisar essas divergências de entendimento e compreender a flexibilização da aferição judicial da miserabilidade no Brasil. Assim, ao longo da pesquisa, busca-se responder à seguinte pergunta: Quais parâmetros da aferição da miserabilidade norteiam a interpretação da Justiça Federal para concessão do BPC no Tocantins?
Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, em que se realizou uma pesquisa bibliográfica em decisões e julgamentos da Justiça Federal - Seção Judiciária do Tocantins do ano de 2023, utilizando-se os métodos exploratório e descritivo para analisar e descrever as premissas que integram os critérios examinados pelo magistrado, isto é, as razões de formação do seu convencimento que levaram a constatação da miserabilidade a partir da realidade estampada no laudo socioeconômico. Além disso, o referido levantamento bibliográfico contará com outras fontes que incluem principalmente artigos, dissertações, a própria legislação previdenciária e jurisprudência sobre o tema.
Nessa perspectiva, a flexibilização dos critérios para aferição da miserabilidade no âmbito do BPC tem se traduzido em incertezas e inconsistências tanto para os potenciais beneficiários quanto para os órgãos responsáveis pela concessão do benefício. Assim, essa pesquisa é essencial para identificar os pontos de conflito e contribuir com soluções que visem equilibrar a justiça social de assistência aos desamparados.
Diante de tal problemática, justifica-se a presente pesquisa para melhor compreender as inevitáveis e possíveis dissonâncias de entendimento entre as análises da miserabilidade para concessão do BPC. O estudo permitirá investigar como tem sido a atuação do Poder Judiciário Tocantinense no âmbito da Justiça Federal para reduzir as barreiras de acesso ao benefício de prestação continuada, possibilitando o confronto de vieses presentes na percepção dos julgadores de outras localidades brasileiras acerca da aferição do critério socioeconômico.
2 FLEXIBILIZAÇÃO DA AFERIÇÃO JUDICIAL DA MISERABILIDADE PARA CONCESSÃO DO BPC NO BRASIL
A polêmica do critério de aferição da miserabilidade teve início quando o legislador resolveu definir pobreza sob uma condição objetiva e absoluta, ou seja, definindo miserável como aquele que aufere uma renda per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo, tornando esse critério tema de intensas discussões jurisprudenciais e doutrinárias (Souza, 2023).
Ao longo dos anos, muito se discutiu a respeito do parâmetro estabelecido no artigo 20, parágrafo 3º da Lei Orgânica da Assistência Social, que determina a renda familiar mensal per capita igual ou inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo como requisito financeiro para concessão do BPC. Notou-se que este parâmetro adotado administrativamente pelo INSS para realizar a análise socioeconômica, tornava dificultoso o acesso ao benefício, restringindo camadas sociais vulneráveis aptas ao deferimento do pedido, sendo um dos motivos que justificam o grande número de indeferimentos que levam a judicialização dessas demandas.
O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a inconstitucionalidade do parágrafo 3º do artigo 20 da Lei n. 8.742/1993 em 2013, considerando que o critério da renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo mostrava-se defasado e inadequado para aferir a miserabilidade das famílias, estando o juiz livre para se valer de outros parâmetros quanto ao requisito socioeconômico no caso concreto. Com esse novo entendimento, defendia-se a possibilidade de análise das reais condições socioeconômicas do grupo familiar, e não somente a aplicação do critério matemático da renda per capita – para, assim, determinar o grau de necessidade do indivíduo de acordo com as particularidades de cada situação.
A decisão do STF inaugurou sucessivas mudanças legislativas visando permitir a ampliação do critério de aferição da renda familiar, como a edição Súmula 79 da Turma Nacional de Uniformização – TNU, que determinou ser necessária a comprovação das condições socioeconômicas do autor por laudo de assistente social nas ações em que se postula o benefício assistencial, e alterações trazidas pela Lei 14.176/2021, passando a ser considerados outros aspectos como o comprometimento do orçamento do núcleo familiar de que trata o § 3º do art. 20, como gastos médicos, tratamentos de saúde, fraldas, alimentos especiais e medicamentos do idoso ou da pessoa com deficiência não disponibilizados gratuitamente pelo SUS, ou com serviços não prestados pelo Suas, desde que comprovadamente necessários à preservação da saúde e da vida.
Embora em 2013, o critério de renda tenha sido declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) devido à sua excessiva restrição, a regra ainda permanece em vigor. O STF não definiu claramente os efeitos dessa decisão, instruindo apenas que a situação fosse analisada caso a caso pelos juízes, sem estabelecer um padrão definitivo. Isso resultou em uma notável lacuna legal preenchida por decisões judiciais casuísticas. (Lima, 2023).
Nesse contexto, o Poder Judiciário tem adotado uma interpretação mais abrangente e elástica do que a prevista na legislação para aferir a miserabilidade social para concessão do BPC - fruto de debates que resultaram em mudanças de entendimentos ao longo do tempo – sendo digno de nota o mais recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça acerca de tal questão:
Para a concessão do Benefício de Prestação Continuada - BPC à pessoa com deficiência, disciplinado na Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS, não cabe ao intérprete da lei fazer imposição de requisitos mais rígidos do que aqueles previstos para a sua concessão. (STJ. 2ª Turma. REsp 1.962.868-SP, Rel. Min. Assusete Magalhães, julgado em 21/3/2023 - Informativo 770).
Em contrapartida a não imposição de requisitos mais rígidos do que aqueles previstos na lei para concessão do BPC, o elastecimento e flexibilização da aferição da miserabilidade acarreta diferentes interpretações em razão da heterogeneidade de perspectivas subjetivas de cada magistrado a respeito de quais aspectos sociais validam um padrão de vida miserável ou próximo às raias da pobreza capaz de justificar a intervenção da política assistencial.
De acordo com Martins (2016, pág. 64), “A ausência de um critério objetivo para a concessão do BPC gerou insegurança jurídica, pois permitiu decisões e acórdãos fundamentados nos mais diversos parâmetros”. A autora afirma ainda que “enquanto o legislador não estabelecer critérios e parâmetros que norteiem e limitem as decisões dos julgadores, se manterá a instabilidade, a insegurança e a “loteria” no âmbito da Assistência Social.”. Em outras palavras, o requerente do BPC fica à mercê da subjetividade do magistrado, que implica no risco de ter sua demanda judicial julgada procedente ou improcedente a depender da interpretação empregada pelo magistrado.
2.1 DIVERGÊNCIAS DE ENTENDIMENTO NA ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS
O aumento da judicialização do BPC foi crescente desde o ano de 2020. De acordo com o painel de estáticas do poder judiciário disponibilizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no ano de 2023, a Seção Judiciária do Tocantins julgou 5.919 (cinco mil novecentos e dezenove) processos de benefícios à pessoa com deficiência e ao idoso, ocupando o primeiro lugar na lista de mais julgados por assunto, seguido do auxílio por incapacidade temporária.
O painel indica ainda que a 3ª e 5ª vara de Palmas - TO, e a Vara Única da Subseção Judiciária de Gurupi - TO, representaram a maior atuação nesses julgamentos, com 1.287 (mil duzentos e oitenta e sete), 943 (novecentos e quarenta e três) e 913 (novecentos) casos julgados respectivamente. Na Turma Recursal, o BPC também ocupa o primeiro lugar de mais julgados por assunto, com 955 (novecentos e cinquenta e cinco) julgamentos no ano de 2023, sendo 351 (trezentos e cinquenta e um) da Relatoria 1; 349 (trezentos e quarenta e nove) da relatoria 2; e 255 (duzentos e cinquenta e cinco) da relatoria 3.
Conforme dados colhidos em 20 (vinte) desses processos, todos improcedentes em primeira instância em diferentes Varas e reformados pela Turma Recursal, foi possível observar que a elasticidade interpretativa do critério da miserabilidade gerou divergências de entendimento quanto aos aspectos sociais que comprovam essa condição. Da análise de alguns desses julgamentos, uma amostragem de 3 sentenças de improcedência e 3 acórdãos precedentes evidenciam que a inexistência de um parâmetro determinado para fundamentar a miserabilidade do requerente ao BPC abre margem para diferentes interpretações entre os membros do judiciário, já que conforme o entendimento jurisprudencial da Suprema Corte, “a miserabilidade não pode mais ser vinculada apenas à renda mensal per capita, haja vista mudanças políticas, econômicas, sociais e sucessivas modificações legislativas acerca de critérios de concessão de outros benefícios assistenciais, de tal forma que a análise da vulnerabilidade socioeconômica deveria ser feita à luz do caso concreto, com amparo nos elementos que constassem nos autos”. Afinal, como definir uma pessoa miserável? A partir de quais aspectos sociais avaliar essa condição?
O estudo firmou-se na análise de decisões monocráticas e colegiadas com clara divergência de interpretação quanto a aferição da miserabilidade.
Em sentença proferida pela Vara Única da Subseção de Gurupi, datada de 27/09/2023 (Processo N° 1000300-66.2023.4.01.4302), o postulante ao benefício assistencial - um menor impúbere - tem o pedido julgado improcedente em razão da ausência de miserabilidade, sendo reconhecida a deficiência. Na visão do magistrado, a situação não estampava necessidade de recebimento do benefício, amparando-se em sua interpretação acerca de que o laudo social retratava:
No caso, de acordo com o laudo socioeconômico (ID 1547888349), a parte autora está inserida em um grupo familiar composto por 03 (três) membros: (...)
Segundo o laudo, a renda principal do grupo familiar é de 1 (um) salário-mínimo, proveniente do vínculo empregatício da genitora, que exerce o cargo de assistente administrativo no IPASGU. Além disso, o autor recebe pensão alimentícia, no valor de R$ 410,00. No tocante às despesas, além do aluguel, foram declarados gastos com fraldas (R$ 400,00) e leite (R$ 300,00).
As condições de moradia da unidade familiar apontam para a hipótese de renda declarada de maneira subdimensionada, comum em situações como a presente, onde os componentes do núcleo familiar exercem atividades informais (sem registros em CTPS e CNIS).
De acordo com o laudo socioeconômico e as imagens que o acompanham, o grupo familiar reside em imóvel alugado, ao custo mensal de R$ 500,00. O imóvel é composto de 1 quarto, 1 sala, 1 cozinha e área de serviço. Conforme indicam as imagens, trata-se de imóvel relativamente novo, com pinturas nas áreas externa e interna, sem sinais de deterioração, com piso em cerâmica, forro em gesso, localizado em via pavimentada, conta com serviços de água, energia elétrica, e as fotografias colacionadas pela assistente social, juntamente com a descrição do imóvel e objetos que o guarnecem, apontam no sentido da ausência de situação de miserabilidade concreta. Trata-se de imóvel guarnecido com móveis, eletrodomésticos, eletroeletrônicos e utensílios em adequado estado de utilização (fogão, geladeira, armário de cozinha, máquina de lavar, cama box, guarda-roupas, sofá, TV de tela plana etc), aparentemente suficientes para suprir as necessidades básicas e garantir uma vida digna ao demandante.
Cumpre salientar que o benefício assistencial de prestação continuada não pode ser entendido como um meio de complementar a renda familiar, mas sim como um piso vital mínimo e excepcional destinado apenas aos idosos e deficientes que não possuam condições de manter a própria subsistência ou de tê-la mantida por sua família.
Nesse contexto, demonstrado que a parte autora e/ou seu núcleo familiar consegue prover todas as suas necessidades básicas, não há falar em situação socioeconômica justificadora da imposição de prestação assistencial mensal ao Estado.
Sob os termos do voto da 2ª Relatoria da 1ª Turma Recursal da Seção Judiciária do Tocantins (SJTO), o mesmo conjunto fático probatório retratado no laudo social conduziu a uma interpretação diferente da decisão monocrática, ocasião em que a Turma Recursal decidiu por unanimidade o provimento do recurso e reconhecimento do quadro de pobreza, ressignificando o contexto social em que o autor estava inserido, conforme exposto a seguir:
Quanto ao requisito socioeconômico, concessa maxima venia, entendo que o caso coloca em evidência a vulnerabilidade socioeconômica do autor.
Nesse sentido, destaco que, apesar da renda percebida pela genitora (1 salário mínimo) mais o valor da pensão alimentícia recebida pelo autor (R$ 410,00), o elevado gasto com o autor (R$ 890,00), em conjunto com todos os gastos fixos da residência, indicam uma autêntica situação de miserabilidade.
Nesse sentido, destaco que o rendimento auferido, dividido pelos 3 (três) integrantes do grupo familiar (o autor, sua mãe e o irmão da sua genitora, o qual tem somente 12 anos de idade, ou seja, há dois menores impúberes no núcleo familiar e uma única adulta e por eles responsável), indica renda per capita inferior a ½ salário-mínimo – patamar sinalizado pela jurisprudência após o STF ter declarado a inconstitucionalidade do § 3º do art. 20 da LOAS, por se encontrar defasado -, o que, em conjunto com o elevado comprometimento da renda com as despesas fixas, mais precisamente com fraldas (R$ 400,00), medicamentos (R$ 190,00), leite (R$ 300,00), aluguel (R$ 500,00), energia (R$ 120,00), água (R$ 90,00), gás (R$ 130,00) e alimentação (R$ 700,00), sinalizam quadro concreto de autêntica miserabilidade enfrentada pelo grupo familiar. Gize-se, por oportuno, que a assistente do juízo esclareceu que a residência é “composta com 04 cômodos, sendo 01 quarto, sala, banheiro, cozinha e área de serviços”, guarnecida com pouca mobília (quesito 6), tendo esclarecido, ainda, que os 3 dormem na mesma cama. De resto, é de se ter presente que, como anotado pela perita, o autor “não tem condições de realizar atividades físicas e/ou mentais e depende de terceiros mesmo para habilidades que seriam possíveis na sua idade.” (quesito 10), o que claramente compromete a possibilidade de geração de renda do grupo familiar (formado, torne-se a enfatizar, por uma única pessoa adulta e dois menores impúberes).
Dessa forma, após a análise de todo o conjunto fático-probatório do presente caso, entendo que o impedimento de longo prazo está plenamente demonstrado e se associa a um quadro de autêntica vulnerabilidade socioeconômica, concretamente constatada.
Do mesmo modo, em sentença proferida pela 3ª Vara Federal de Execução Fiscal e Juizado Especial Cível da SJTO, datada de 27/04/2023 (Processo N° 1006272-57.2022.4.01.4300), a divergência na aferição da miserabilidade também acontece quanto a concepção subjetiva do julgador e a aplicação do critério matemático da renda per capita e demais aspectos sociais do requerente:
No caso, de acordo com o laudo socioeconômico, a parte autora está inserida em um grupo familiar composto por 02 (dois) membros: (...)
Segundo o declarado, a subsistência do grupo familiar advém da renda de R$ 1.302,00 proveniente do emprego formal do esposo da parte autora, o que supera o parâmetro legal de renda familiar per capita.
Além disso, as fotografias colacionadas pela assistente social, juntamente com a descrição do imóvel e objetos que o guarnecem, apontam no sentido da ausência de situação de miserabilidade concreta. O imóvel em que o núcleo familiar vive está avaliado em R$ 120.000,00, conta com serviços de água e energia elétrica, guarnecido com móveis, eletrodomésticos, eletroeletrônicos e utensílios em adequado estado de utilização (TV tela plana, máquina e tanquinho de lavar roupa, 2 fogões, geladeira, aparelho de som e etc.), aparentemente suficientes para suprir as necessidades básicas e garantir uma vida digna ao demandante. O grupo familiar ainda possui uma moto Honda Pop 100, ano 2007.
Cumpre salientar que o benefício assistencial de prestação continuada não pode ser entendido como um meio de complementar a renda familiar, mas sim como um piso vital mínimo e excepcional destinado apenas aos idosos e deficientes que não possuam condições de manter a própria subsistência ou de tê-la mantida por sua família.
Nesse contexto, demonstrado que a parte autora e/ou seu núcleo familiar consegue prover todas as suas necessidades básicas, não há falar em situação socioeconômica justificadora da imposição de prestação assistencial mensal ao Estado.
Com entendimento diverso, novamente a 2ª Relatoria da Turma Recursal do Tocantins, reformou por unanimidade a sentença, considerando outros parâmetros do caso concreto para reconhecer a miserabilidade:
Sobre o requisito socioeconômico, também o reputo plenamente comprovado.
A autora vive apenas com seu esposo (52 anos), responsável pela subsistência do grupo familiar, como trabalhador rural em roça de abacaxi em fazenda de terceiros, recebendo um salário mínimo no valor de R$ 1.312,00 (mil trezentos e doze reais). Dividindo-se essa renda familiar bruta pelos 2 (dois) integrantes da família, chega-se a um total de 1/2 salário mínimo a título de renda familiar bruta per capita. Ora, sabendo-se que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade do patamar de 1/4 do salário mínimo por tê-lo como defasado, sinalizando a adoção de outros critérios legais de políticas assistenciais que giram na casa do 1/2 salário mínimo, é evidente que a família da autora enquadra-se no patamar de insuficiência de renda digna reveladora da necessidade (CF, art. 203) que impõe a concessão do benefício assistencial em mira, o que é corroborado pela análise concreta da miserabilidade do núcleo familiar que acolhe a deficiente.
Acrescente-se, nesse sentido, que a perita judicial descreveu gastos mensais com medicação do grupo familiar entorno de R$ 600,00 e fisioterapia da autora no valor de R$ 150,00 (quesitos 5 e 6), destacando ainda que “Não foi percebido nenhum móvel ou utensílio de valor financeiro significativo”. A mesma expert, em sua conclusão, apontou ainda que a autora “realmente apresenta vulnerabilidade socioeconômica”, mostrando-se francamente favorável, portanto, à concessão do benefício, em parecer que está alinhado com o preenchimento do requisito atinente à renda familiar per capita, acima examinado. Frise-se, no mais, que o valor do gasto com água (R$ 36,00) e energia (R$ 176,00) é de baixa expressão, o que confirma a singeleza da família.
Ademais, a propriedade de veículo, na hipótese (Honda pop 100, ano 2007, de baixíssimo valor econômico), foi adquirida, aparentemente, a duras custas em razão dos problemas médicos da autora, que necessita do auxílio da filha para o comparecimento e continuidade do tratamento, pois, conforme apontou o laudo médico pericial, é acometida de “marcha trôpega, instável e claudicante com redução das forças da perna esquerda e do membro superior esquerdo, não consegue segura objetos, além de limitações dos movimentos”, sendo, destarte, indispensável para sua locomoção para as sessões de fisioterapia.
Em suma, analisando todos esses elementos com a cautela e a prudência devidas, entendo que a renda familiar per capita situa-se abaixo do limite adotado jurisprudencialmente, havendo autêntica necessidade no recebimento do benefício assistencial, demonstrada concretamente, considerando que a autora é portadora de grave deficiência com sequelas irreversíveis que impede sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, tudo confirmando a existência da exclusão social e vulnerabilidade apontadas pela perita judicial.
Há casos em que o magistrado ainda se baseia no critério de ¼ do salário mínimo para justificar a improcedência do pedido, patamar declarado inconstitucional pelo STF, por ser considerado inadequado e defasado para aferir a miserabilidade das famílias - Sentença proferida pela 2ª Vara Federal da Subseção de Araguaína-TO:
Entretanto, não restou comprovado o estado de miserabilidade social.
Conforme laudo social de Id. 1382583791, a autora reside apenas com sua mãe e seu primo, sendo declarado naquela oportunidade que a subsistência familiar seria proveniente de pensão por morte percebida pela genitora no valor de um salário-mínimo.
Assim, considerando que a genitora da parte autora não é idosa, o seu benefício de pensão por morte deve ser computado no cálculo da renda para fins do benefício em questão (RE 580.963 e REsp 1355052/SP), estando, dessa forma, a renda familiar per capita superior a ¼ do salário-mínimo, fato este que, por si só, obsta a concessão do benefício em tela.
Ainda conforme laudo socioeconômico, o grupo familiar habita em casa própria, avaliada em R$ 90.000,00 (noventa mil reais), toda em alvenaria, murada, pintada, piso de cerâmica, telhas de cerâmica, banheiro todo em cerâmica, com rua asfaltada, água tratada e energia elétrica, possuindo vários móveis como geladeira, sofá, armários de cozinha, guarda-roupas, TV tela plana, painel de TV, ar condicionado, cortinas, alguns em bom estado de conservação.
Ademais, das fotografias acostadas junto ao laudo socioeconômico percebe-se que a casa, bem como as condições em que vive a parte autora, apesar de serem simples, não podem ser consideradas, de nenhuma maneira, como miseráveis.
Deste modo, é possível observar que a parte demandante não se encontra em vulnerabilidade social, sobrevivendo em condições razoáveis, não se enquadrando, portanto, no critério estabelecido na lei em epígrafe.
Ressalto que não foram apresentados comprovantes de desembolso para os gastos extraordinários com fraldas descartáveis.
O benefício de prestação continuada não deve ter o condão de complementar renda da família, mas sim o caráter de suprir a subsistência de pessoas que se encontrem em extrema necessidade, o que não restou verificado no caso concreto.
Deste modo, diante da inexistência de um dos requisitos essenciais à concessão do pleito autoral, bem como da necessidade de cumulabilidade dos requisitos concessórios do benefício assistencial, resta a este juízo indeferir o pedido vestibular.
Além de utilizar o critério de renda de ½ salário mínimo, a reforma da sentença pela Turma Recursal trouxe outra perspectiva, principalmente para os aspectos sociais da vida do requerente, em que as condições razoáveis da sua condição de vida deu lugar a miserabilidade concretamente constatada (Processo N° 1000414-42.2022.4.01.4301, acordão datado de 29/03/2023:
O magistrado a quo, ao julgar improcedente a demanda, por sua vez, apontou renda superior a ¼ do salário mínimo como fundamento da improcedência da demanda.
Com efeito, conforme já apontado, o critério da renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo mostra-se defasado e inadequado para aferir a miserabilidade das famílias (jurisprudência do STF), de modo que se tem utilizado “o parâmetro de ½ salário mínimo para a renda per capita, ressalvando, ainda, a possibilidade de o magistrado, no caso concreto, aferir a miserabilidade do pleiteante levando em conta outros fatores que não apenas a renda per capita da família” (TRF-1, AC 00187622020184019199, Rel. Juiz Federal Guilherme Bacelar Patrício de Assis, julgado em 27/06/2022, 2ª Turma, publicado em PJe 27/06/2022), logo o critério econômico amplamente adotado na jurisprudência para verificar a situação de miserabilidade social encontra-se plenamente satisfeito na hipótese dos autos.
Ademais, o estudo socioeconômico elucida ainda que a residência da autora é simples, murada, pintada, com piso cerâmico, contendo 1 banheiro, 2 quartos, 1 sala, 1 cozinha e área frontal, sendo que somente 1 dos quartos é forrado (quesito 3.4). O consumo de energia elétrica de R$ 81,34 (oitenta e um reais e trinta e quatro centavos) e de água no valor de R$ 104,72 (cento e quatro reais e setenta e dois centavos) representam valores baixos e confirmam a singeleza do grupo familiar. Os gastos fixos relatados com gás (R$ 130,00), alimentação (R$ 800,00), fraudas (R$ 55,00), bem como os gastos extraordinários com medicamentos, em razão das doenças da genitora e da situação extremamente grave da autora, evidenciam que a parca renda do grupo familiar (1 salário mínimo) mal faz frente às despesas básicas do dia a dia (quesitos 2.5, 2.7 e 2.8), tendo a perita atestado, inclusive, a pouca quantidade de alimentos na residência (quesito 3.5). Ademais, não possuem qualquer veículo e a residência é guarnecida apenas com móveis e eletrodomésticos indispensáveis e simples. Deveras, a análise do estudo socioeconômico indica autêntica necessidade no recebimento do benefício assistencial, ante a miserabilidade concretamente constatada.
3 PARÂMETROS QUE NORTEIAM A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL
A aferição judicial da miserabilidade parte do conjunto fático probatório produzido através do estudo socioeconômico elaborado por um (a) assistente social que retrata o cenário da realidade social que envolve o requerente. A visão da Assistente Social é fundamental para que o julgador possa firmar sua convicção nos elementos que auxiliem na formação das premissas que determinam a caracterização da miserabilidade no caso concreto. Quanto mais robusto a riqueza de detalhes do estudo socioeconômico, maior a segurança em evidenciar com clareza a autenticidade do quadro de pobreza.
Maximiliano (2017), aponta que a aplicação do direito consiste no enquadrar um caso concreto em uma norma jurídica adequada, tendo por objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente o interesse humano. Aplicando essa visão a concessão do BPC/LOAS, compreende-se que o interesse humano daquele que necessita do benefício assistencial não se encontra amparado por normas jurídicas adequadas, já que enquadrar a realidade social plural brasileira em um critério matemático de renda não se mostrou eficiente, na medida em que permite excluir um possível beneficiário com alguns centavos acima da previsão legal adequada para concessão do benefício. Por isso a importância da interpretação judicial corresponder da melhor maneira a finalidade da norma e assegurar a tutela de interesse para a qual foi regida, garantindo que ela cumpra sua função social e política. Assim, uma lei criada para proteger um grupo vulnerável deve ser interpretada de maneira a garantir essa proteção, mesmo que o texto da lei, interpretado isoladamente, pareça não contemplar todas as nuances da situação que busca abranger.
Da análise das sentenças e acórdãos com entendimentos divergentes acerca da situação social da pessoa portadora de deficiência e/ou idoso julgados no ano de 2023 no Tocantins, é possível observar que grande parte dos aspectos sociais da parte requerente é passível de variação interpretativa com reflexo no julgamento justo ou não da demanda, demonstrando a subjetividade de diferentes magistrados em avaliar as condições que caracterizam a miserabilidade. Não existe um limite tecnicamente definido para saber com exatidão até que ponto uma pessoa e seu grupo familiar precisa ser considerado miserável para fazer jus ao recebimento do BPC/LOAS, e se existir esse limite, não haverá consenso de quais aspectos sociais determinam a caracterização desse “padrão de vida”. Estabelecer esse limite seria o mesmo que determinar quais patrimônios ou bens materiais uma pessoa pobre precisa ter, para ser considerada como tal.
Um ponto de conflito dessas divergências têm origem nas múltiplas realidades que podem abarcar a pobreza de uma pessoa e a própria percepção do julgador de como conceber esse ideal, já que a própria nomenclatura do padrão de vida de uma pessoa que necessita de amparo assistencial pode receber diferentes termos, tais como: vulnerabilidade, miserabilidade, pobreza e extrema pobreza. O grau de vulnerabilidade de uma pessoa pode não se encaixar na mesma extensão das condições de vida de uma pessoa em extrema pobreza, porque essa realidade se manifesta em maior ou menor intensidade, existindo a necessidade de amparo em ambas as situações, desde que atenda ao critério matemático de renda per capita.
Com esse entendimento, não seria justo estabelecer a aferição da miserabilidade fincada nos mesmos aspectos sociais para as diferentes realidades, pois o princípio da igualdade pressupõe que as pessoas colocadas em situações diferentes sejam tratadas de forma desigual: “Dar tratamento isonômico às partes significa tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”. (NERY JUNIOR, 1999, p. 42). Assim, a apreciação de determinado aspecto social se sobrepõe a outros a fim de equalizar o tratamento isonômico em concomitância com a valoração adequada e justa das provas a depender do caso.
As condições da moradia vinculada a um olhar estético da infraestrutura de uma residência pode trazer indícios da capacidade financeira de uma unidade familiar, corroborados ou não pelos móveis e estado de conservação de eletrodomésticos, bem como os objetos que representam algum valor econômico. Conforme visto, a avaliação da mesma residência resultou em análises com valoração dissonantes. Enquanto o Magistrado singular considerou que as fotografias da residência indicava que as condições de vida da parte autora, apesar de simples, não poderiam ser consideradas de maneira nenhuma como miseráveis, a Turma Recursal considerou que a residência era guarnecida apenas com móveis e eletrodomésticos indispensáveis e simples, indicando autêntica necessidade no recebimento do benefício. Mesmo com laudos sociais robustos e com apontamentos favoráveis à concessão do benefício, alguns magistrados concluem pela ausência de miserabilidade, seja por ainda utilizar o critério defasado de ¼ da renda per capita, ou por não enxergar nos aspectos sociais a comprovação do estado de necessidade.
A propriedade de veículo, tanto carro ou motocicleta, pode ser considerado um bem de difícil acesso mesmo sendo um veículo antigo ou um bem de baixo valor econômico que não é capaz de infirmar a hipossuficiência da parte autora por ser necessário a sua mobilidade e quando outros elementos evidenciam a situação de miserabilidade, assim como dificuldades cotidianas de uma vida simples podem ser indicativos ou não para se enquadrar nessa condição. A flexibilização culminou em certa relatividade com que esses aspectos são valorados, podendo causar impactos na segurança jurídica nas ações judiciais dos requerentes e beneficiários do BPC.
Nota-se que as premissas adotadas pelas Varas e pela Turma Recursal não são as mesmas para aferir a miserabilidade, sendo perceptível que essas premissas podem não ser as mais apropriadas para o contexto social que circunda um grupo familiar, resultando nas divergências de entendimentos sobre o mesmo caso concreto. Assim, os aspectos utilizados para aferir tal realidade são alvos de diferentes valorações, em razão da inexistência de padrões determinados para sanar tais lacunas de entendimento acerca de quais aspectos sociais devem balizar uma situação de pobreza.
3.1 DESAFIOS DA FLEXIBILIZAÇÃO NAS AÇÕES DOS REQUERENTES E BENEFICIÁRIOS DO BPC
Os desafios da flexibilização ganham uma dimensão ainda maior com a recente criação dos Núcleos de Justiça 4.0, instituída pela Resolução nº 385/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que permite o processamento e o julgamento das ações judiciais de forma 100% digital. Assim, é possível a cooperação judiciária entre os tribunais no julgamento de demandas de outros Estados do Brasil. Em síntese, um recurso de BPC/LOAS originado de uma demanda da Bahia poderá ser apreciado por um Núcleo da Justiça 4.0 da Turma Recursal do Tocantins.
As divergências de entendimento transbordam a fronteira dos tribunais, onde o requerente enfrentará decisões inconsistentes em diferentes instâncias, refletindo na dificuldade de acesso ao benefício, aumento de recursos e prolongamento do tempo da sua implantação. No âmbito judicial, a complexidade dos critérios subjetivos afeta a formação de precedentes, gerando uma jurisprudência instável.
Além da flexibilização, o novo modelo dos Núcleos Justiça 4.0 favorece o tratamento desigual entre os postulantes ao benefício, favorecendo ou prejudicando-os, a depender da distribuição do processo. Com relação a Prestação Jurisdicional do Programa Justiça 4.0, (Rapim; Igreja, 2022) apontam que os efeitos são diversos: por um lado, rompem as barreiras físicas para se buscar a justiça, permitindo estender seu alcance; por outro lado, perde-se o contexto local e a diversidade social que compõem o perfil da população brasileira.
O piso nacional do salário mínimo pode ser o mesmo em todo o país, porém as condições e o custo de vida podem variar entre os Estados. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE em 2023, indicam a grande desigualdade de renda per capita entre os Estados Brasileiros, onde o maranhão aparece em último lugar, com média de 945 reais por habitante, menos de um terço do rendimento médio de 3.357 reais por pessoa no Distrito Federal. Além da renda, outros fatores regionais como acesso à moradia, gastos com transporte e alimentação influenciam no padrão de vida e na extensão do grau de necessidade de um indivíduo ou grupo familiar. Dessa forma, uma situação típica de miserabilidade em uma determinada região corre o risco de não ser “compatível” com o estilo de vida considerado vulnerável em outras, e vice-versa. A desigualdade também existe dentro de uma mesma classe social, e não apenas entre as classes, assim como a miserabilidade se notabiliza e se avulta em diferentes intensidades e tonalidades.
A título de exemplo, em julgamento proferido pelo Tribunal Regional da 4° Região no Rio Grande do Sul em 2024 (Processo N° 5007171-07.2024.4.04.9999) aponta que o “direito ao benefício de prestação continuada não pressupõe a verificação de um estado de miserabilidade extremo - bastando estar demonstrada a insuficiência de meios para o beneficiário, dignamente, prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”, ao passo que em julgamento proferido pelo Tribunal Regional da 1° Região em Rondônia em 2022 (Processo N° 1001058-40.2021.4.01.4100) aponta que “o benefício postulado somente deve ser concedido em casos extremos, pois não possui o condão de complementação de renda, ou de trazer mais qualidade de vida, e sim, de garantir o mínimo de dignidade humana”. Qual entendimento constitui a aplicação justa da lei?
Ainda, o artigo 21 da Lei Orgânica da Assistência Social dispõe que o benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada 2 (dois) anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem. Isso revela que, caso haja a judicialização do benefício cancelado em razão da revisão administrativa, a continuidade do benefício também é incerta, já que os critérios de restabelecimento do benefício podem não ser o mesmo da concessão de outrora, mesmo se mantendo a continuidade das condições que lhe deram origem, já que alguma questão social pode ser suscitada e desencadear sua improcedência/indeferimento.
A análise apresentada neste trabalho evidenciou que a falta de critérios uniformes e a subjetividade na interpretação judicial comprometem a previsibilidade das decisões gerando divergências de entendimento. Esses desdobramentos acerca da flexibilização da aferição judicial da miserabilidade para concessão do BPC no Estado do Tocantins demonstra a complexidade e os desafios enfrentados pelo sistema normativo brasileiro na efetivação dos direitos sociais de natureza assistencial.
Com o advento da flexibilização dos critérios de aferição da miserabilidade, embora tenha como objetivo proporcionar um maior acesso ao benefício, pode resultar em decisões dissonantes e até contraditórias, gerando um cenário de incerteza para os beneficiários e para a administração pública, comprometendo a efetividade do direito ao benefício. Isso permite que alguns magistrados adote uma análise mais holística da realidade social do requerente, considerando não apenas a renda, mas também outros fatores sociais, e que outros adotem uma análise mais rígida, limitando-se aos critérios estabelecidos pela lei e desconsiderando circunstâncias excepcionais que não estão explicitamente contempladas na legislação.
Tal situação acarreta um impacto significativo não apenas na esfera jurídica, mas também na social, uma vez que o BPC constitui um meio fundamental para a garantia da dignidade de vida dos hipossuficientes que vivem o dilema da exclusão social em decorrência da deficiência ou da idade avançada.
Conforme apresentado, os aspectos sociais relacionados à infraestrutura de uma residência, estado de conservação de móveis e eletrodomésticos, quantidade e qualidade de bens materiais, valor econômico de veículos, gastos e despesas e etc, são parâmetros que norteiam a interpretação da Justiça Federal na aferição da miserabilidade para concessão do BPC no Estado do Tocantins. A discussão quanto a efetividade dos requisitos de concessão do BPC necessita continuar sendo instigada e aprofundada, especialmente com relação a alteração legislativa do dificultoso critério de ¼ do salário mínimo ainda em vigor na aferição administrativa do INSS, que ainda gera transtornos com aumento desnecessário de demandas judiciais.
Espera-se que o artigo contribua com novas perspectivas de julgamentos para as decisões judiciais que possuem grande impacto social de combate à miséria, que infelizmente ainda existem limitações e obstáculos a serem superados, mesmo com a flexibilização discutida. Isso será possível, levando-se em consideração a implementação de critérios mais claros e objetivos na análise da miserabilidade com reflexos na construção de uma jurisprudência sólida, amenizando as lacunas interpretativas, além de outras políticas direcionados para a sustentabilidade financeira de todo o sistema da seguridade social, capaz de atender às necessidades da população sem comprometer a segurança jurídica.
É essencial que o Poder Judiciário adote uma postura mais uniforme na análise dos casos que envolvem a concessão do BPC, garantindo um equilíbrio entre a necessária flexibilização para abarcar a realidade social dos beneficiários e a manutenção de um sistema jurídico coerente e previsível. Somente assim será possível assegurar a efetivação dos direitos fundamentais de forma justa e equitativa, proporcionando estabilidade jurídica e social para os mais vulneráveis não só no Estado do Tocantins, como também nos outros Estados brasileiros.
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graduando em Direito pela Universidade Federal do Tocantins .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARIELTO DE SOUSA PATRíCIO, . A interpretação da Justiça Federal frente a flexibilização da aferição judicial da miserabilidade para concessão do benefício de prestação continuada no Estado do Tocantins Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jan 2025, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67450/a-interpretao-da-justia-federal-frente-a-flexibilizao-da-aferio-judicial-da-miserabilidade-para-concesso-do-benefcio-de-prestao-continuada-no-estado-do-tocantins. Acesso em: 04 jan 2025.
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: Maurício Sousa da Silva
Por: DESIREE EVANGELISTA DA SILVA
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