RESUMO: Este artigo tem o intuito de explanar a relação do Brasil com a Convenção Americana de Direitos Humanos, os direitos que o Estado assegurou de garantir, como funciona o sistema interamericano, o processo de internalização de tratados internacionais e qual papel a Defensoria Pública tem para assegurar que esses direitos sejam cumpridos. Isso tudo, tendo como exemplo a atuação da instituição no caso Beatriz y Otros vs. El Salvador, no qual foi discutido o direito ao aborto.
Palavras Chaves: Direitos Humanos, Sistema Interamericano, Defensoria Pública, Beatriz y Otros vs. El Salvador
ABSTRACT: This article has the purpose of explain the relation of Brazil within the American Convention of Human Rights, the rights that the State ensured to guarantee, how the interamerican system works, the process of internalization of its international treaties and what is the function of the Public Defender on ensure thats these rights are being accomplished. All of this under the light of the actuation of this institution in the case Beatriz y Otros vs. El Salvador, where the right of abortion was discussed.
Keywords: Human Rights, Interamerican System, Public Defender, Beatriz y Otros vs. El Salvador
1 INTRODUÇÃO
O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos desde 1992, em 1998 foi reconhecida a competência da Corte Interamericana para que casos contenciosos pudessem ser submetidos a ela quando se verifica o descumprimento de direitos previstos no corpo do tratado. As decisões da Corte possuem um caráter vinculante que obriga os Estados condenados a seguirem as disposições contidas nas sentenças. O Brasil já foi condenado 13 vezes.
Muito se discute sobre a natureza da convenção no ordenamento interno diante do rito adotado para a sua incorporação, e se condenações de outros Estados também serviriam de maneira vinculante para que os demais não cometessem os mesmos erros.
A Defensoria Pública, como instrumento de garantia dos direitos humanos, possui uma enorme importância na atuação desse sistema. Aqui se pretende fazer uma análise não só da relação do Brasil com a CADH, mas também da maneira como a Defensoria Pública é importante na militância de direitos tão preciosos dos cidadãos.
A atuação da Defensoria Pública como amicus curiae no caso Beatriz y Otros vs. El Salvador mostra como a instituição está sempre em busca da melhoria das condições de vida de grupos vulneráveis, exercendo um importante papel relevante na defesa dos direitos humanos.
2 O BRASIL E A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A Convenção Americana de Direitos Humanos, como hoje a conhecemos, é fruto de um processo histórico que tinha como objetivo a soberania dos Estados americanos. Durante o período pré e pós segunda guerra mundial, esse movimento de confluência dos Estados já existia com intuito de garantir os direitos humanos em seu ordenamento interno. Entre 1945 e 1948 foram feitas conferências para discutir tais questões, quando finalmente foi aprovada a carta da OEA e a Declaração Americana dos Direitos de Deveres do Homem.
No entanto, esses dispositivos não definiram com precisão quais os direitos humanos em específico que seriam assegurados e nem seu sistema de proteção. Como explica Medina e Rojas (p.14,2007) este estado de pouco desenvolvimento do direito internacional dos direitos humanos impediu que os Estados que integravam a OEA adotassem uma convenção internacional que produzisse obrigações para os Estados partes e que estabelecesse um mecanismo internacional para o controle do cumprimento destas obrigações. Dessa forma, a maioria dos Estados apenas adotou um documento que não estabeleceria obrigações vinculantes para os assinantes.
Apenas em 1969, na conferência de São José da Costa Rica, surgiu a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que somente entrou em vigor em 1978. Com o intuito de ser um documento de força vinculante hard law, a CADH cria a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com competência para supervisionar a aplicação do documento assinado e sua aplicação nos países signatários.
No âmbito da OEA, a Comissão de Direitos Humanos já existia, e como a CADH veio no mesmo fio de ideias, esse órgão continuou a sua atuação de maneira complementar à Corte. É o chamado efeito dúplice, como explica Carvalho Ramos (p.351, 2018):
A Comissão passou a ser também órgão da Convenção Americana e Direitos Humanos, analisando petições individuais e interpondo ação de responsabilidade internacional contra um Estado perante a Corte. Caso o Estado não tenha ratificado ainda a Convenção ou caso tenha ratificado, mas não tenha reconhecido a jurisdição obrigatória da Corte, a Comissão insere suas conclusões sobre a petição individual no seu Informe Anual, que será apreciado pela Assembleia Geral da OEA.
Para dar mais abrangência ao que se convencionou na CADH em 1969, dois protocolos facultativos foram elaborados. O Protocolo de San Salvador - voltado aos direitos sociais, culturais e econômicos - e o Protocolo Relativo à Abolição da Pena de Morte. No mais, diversos outros tratados para assegurar outros direitos humanos específicos surgiram ao longo do tempo no âmbito interamericano, como por exemplo a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, a Convenção de Belém do Pará e a Convenção Interamericana Para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra Pessoas Portadoras de Deficiência.
O Brasil ratificou e incorporou a CADH em 1992 e em 1998 reconheceu a jurisdição da Corte.
No Brasil, o processo de incorporação de tratados passa por 4 fases, sendo elas: Assinatura, aprovação legislativa, ratificação e decreto de promulgação.
Caio Paiva (2021), explica que a fase da assinatura compreende a negociação até a assinatura do texto do tratado pelo Estado, sendo o ato de submeter o texto do tratado ao Congresso Nacional discricionário, podendo o Presidente da República efetuar um juízo de conveniência e oportunidade. A apreciação legislativa tem início na Câmara dos Deputados e depois segue para o Senado Federal. Aprovada a matéria, a decisão é formalizada por meio de um Decreto Legislativo, promulgado pelo presidente do Senado. A ratificação é o ato praticado pelo chefe do executivo, por meio do qual o Estado consente em obrigar-se aos termos do tratado. Com a ratificação, o tratado entra em vigor na ordem internacional. Neste momento da ratificação, a Presidência da República pode apresentar reservas, que não precisam antes terem sido submetidas ao Congresso Nacional. A promulgação exterioriza-se por meio do decreto executivo, que é a última fase.
Para a doutrina clássica e para o STF, é a partir deste decreto que o tratado começa a surtir efeito na ordem jurídica interna.
A Constituição brasileira não consagrou, em tema de convenções internacionais ou de tratados de integração, nem o princípio do efeito direto, nem o postulado da aplicabilidade imediata. Isso significa que enquanto não se concluir o ciclo de sua transposição, para o direito interno, os tratados internacionais e os acordos de integração, além de não poderem ser invocados, desde logo, pelos particulares, no que se refere aos direitos e obrigações nele fundados (princípio do efeito direto), também não poderão ser aplicados, imediatamente, no âmbito doméstico do Estado brasileiro (postulado da aplicabilidade imediata). O princípio do efeito direto (aptidão de a norma internacional repercutir, desde logo, em matéria de direitos e obrigações, na esfera jurídica dos particulares) e o postulado a aplicabilidade imediata (que diz respeito à vigência automática da norma internacional na ordem jurídica interna) traduzem diretrizes que não se acham consagradas e nem positivadas no texto da Constituição da República, motivo pelo qual tais princípios não podem ser invocados para legitimar a incidência, no plano do ordenamento doméstico brasileiro, de qualquer convenção internacional (...)” (CF 8.279 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, j. 17.06.1998).
No entanto, é importante lembrar que a Convenção de Viena – instrumento internacional responsável pela definição das regras para elaboração, assinatura e aplicação de tratados - em seu art. 18 dispõe que antes mesmo da entrada no ordenamento interno do tratado, o Estado deve se abster de praticar atos que frustrem o objeto e a finalidade do tratado a ser incorporado. Para parte da doutrina mais moderna, o atual entendimento do STF e da doutrina clássica aumenta o risco de responsabilidade internacional do Estado. Neste sentido:
Nossa posição é pela desnecessidade do Decreto de Promulgação, para todo e qualquer tratado. A publicidade da ratificação e entrada em vigor internacional deve ser apenas atestada (efeito meramente declaratório) nos registros públicos dos atos do Ministério das Relações Exteriores (Diário Oficial da União). (...) ainda asseguraria publicidade – desejável em nome da segurança jurídica – e sintonia entre a validade internacional e nacional interna dos tratados(...) a incorporação pelo Decreto Executivo é reprodução de um costume analogicamente criado, sem apoio no texto constitucional. A nova interpretação que se oferece aqui tem a vantagem de evitar a responsabilização internacional do Brasil e ainda impedir que a desídia do eventual responsável pelo setor de publicação dos avisos de ratificação reste impune (...). Assim, a exigência do decreto de promulgação é supérflua e perigosa, podendo ser eliminada. CARVALHO RAMOS (2018)
Dando continuidade, é importante explanar um pouco sobre a competência da Corte, uma vez que a decisão objeto deste artigo foi proferida por esse órgão.
A Corte exerce tanto a função contenciosa, como consultiva e tem o poder de elaborar medidas provisórias para os Estados quando se depara com casos de extrema gravidade de violação de direitos humanos, no intuito de evitar danos irreparáveis.
Somente os Estados Partes e a Comissão Interamericana podem submeter o caso ao julgamento da Corte. Dessa forma, por não haver a possibilidade de petição individual na Corte, indivíduos ou organizações que considerem que exista uma situação violadora da Convenção, devem dirigir suas denúncias à Comissão. Esta, de imediato, já pode fazer recomendações aos Estados, adotar medidas cautelares e solicitar estas também à Corte, e ainda realiza uma função conciliadora entre o Estado e as vítimas.
As sentenças da Corte possuem efeito vinculante e segundo o art. 67 da CADH, via de regra são definitivas e inapeláveis. Deve a Corte também supervisionar o cumprimento das suas próprias decisões. De acordo com o art. 68 da CADH os Estados Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes, além disso a parte da sentença que determinar indenização compensatória poderá ser executada no país pelo processo interno para a execução de sentenças contra o Estado.
Diferentemente da sentença estrangeira – que precisa ser homologada pelo STJ- a sentença internacional, por já ser proferida por um tribunal legitimado pelo país convencionalmente, não precisa desta homologação, já podendo ser executada perante a Justiça Federal. Caio Paiva (2021) explica que a respeito da execução das obrigações de fazer não há um procedimento específico, havendo diversas formas de cumpri-la, como por exemplo o ajuizamento de uma ação penal pelo Ministério Público. Ressalta que é um assunto complexo uma vez que envolve uma compreensão adequada sobre os limites da soberania de poderes independentes como o Poder Judiciário e o Poder Legislativo.
As medidas de reparação não se restringem a prestação pecuniária, a reparação tem o intuito de ser integral, restituindo aspectos morais e materiais dos direitos humanos violados, a fim de fazer cessar, ou ao menos minorar, os sofrimentos causados à vítima. Sendo sete principais formas: Restituição – que consiste ao retorno do estado quo em que a vítima estava antes da violação -, indenização, reabilitação médica e psicológica da vítima, compromisso estatal de não repetição da violação, direito à memória e a verdade, compensação pelos gastos, e a obrigação de investigar, processar e punir os responsáveis pelas violações de direitos humanos.
No ordenamento brasileiro, os tratados podem ter dois tipos de status. Supralegal ou equivalente a emenda constitucional. É a chamada teoria do duplo estatuto, presente nos parágrafos segundo e terceiro da Constituição Federal.
Antes de 2004 apenas tinha-se que os direitos e garantias expressos na Constituição Federal não excluiriam outros decorrentes do regime e dos princípios adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. No entanto, a Emenda Constitucional 45 de 2004 acrescentou um terceiro parágrafo ao artigo que dispôs no sentido de que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.
Dessa forma, hoje em dia temos apenas quatro tratados que foram aprovados sobre esse novo rito e que são equivalentes às emendas constitucionais, sendo eles: a Convenção de Nova York, o Protocolo Facultativo da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o Tratado de Marraquexe e a Convenção Interamericana contra o Racismo e todas as formas de Discriminação.
No entanto, para a maioria da doutrina e para o STF, tanto os tratados incorporados pelo rito do parágrafo terceiro do art. 5º da Constituição Federal, quanto os demais fazem parte de um bloco de constitucionalidade em sentido amplo. Ou seja, como explica Carvalho Ramos (2018, p.639), todos esses dispositivos são reconhecidos como diplomas normativos de hierarquia constitucional.
Em relação ao disposto no segundo parágrafo e a implementação de um novo rito de incorporação pela Emenda Constitucional 45 de 2004, tanto a doutrina como juízes da própria Corte Interamericana viram esse procedimento como um retrocesso. Uma vez que fica a critério do Congresso Nacional aprovar o tratado por esse rito ou não, o que pode trazer conflitos entre o direito interno e o internacional, já que a incorporação de tratados de direitos humanos não pode significar pura e simplesmente a incorporação do texto do tratado, mas de todo o complexo que o envolve, inclusive a jurisprudência internacional que o interpreta devendo todo esse conjunto ter força vinculante. Galindo (2005, p. 128).
No voto do caso Damião Ximenes Lopes, Cançado Trindade fez severas críticas ao terceiro parágrafo do art. 5º da Constituição Federal, o chamando de “aberração jurídica”.
Esta nova disposição busca outorgar, de forma bisonha, status constitucional, no âmbito do direito interno brasileiro, tão só aos tratados de direitos humanos que sejam aprovados por maioria de 3/5 dos membros tanto da Câmara dos Deputados como do Senado Federal. Mal concebido, mal redigido e mal formulado, representa um lamentável retrocesso em relação ao modelo aberto consagrado pelo parágrafo 2 do artigo 5 da Constituição Federal de 1988, que resultou de uma proposta de minha autoria à Assembleia Nacional Constituinte, como historicamente documentado. No tocante aos tratados anteriormente aprovados, cria um imbróglio tão ao gosto de publicistas estatocêntricos, insensíveis às necessidades de proteção do ser humano; em relação aos tratados a aprovar, cria a possibilidade de uma diferenciação tão ao gosto de publicistas autistas e míopes, tão pouco familiarizados, - assim como os parlamentares que lhes dão ouvidos, - com as conquistas do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Este retrocesso provinciano põe em risco a interrelação ou indivisibilidade dos direitos protegidos no Estado demandado (previstos nos tratados que o vinculam), ameaçando-os de fragmentação ou atomização, em favor dos excessos de um formalismo e hermetismo jurídicos eivados de obscurantismo. Corte Interamericana de Direitos Humanos Caso Ximenes Lopes versus Brasil Sentença de 4 de julho de 2006 (Mérito, Reparações e Custas)
Diante deste status normativo é possível fazer um controle de convencionalidade das leis domésticas em face dos tratados internacionais em que o Brasil se comprometeu a assumir. No âmbito do sistema interamericano é possível encontrar disposições sobre esta obrigação no próprio texto da CADH quando o dispositivo expressa que o pais signatário deve comprometer-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma (art.1.1), adotar de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições da Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades (art.2º).
Caio Paiva (2021) aponta que o parâmetro do controle de convencionalidade é o bloco de convencionalidade, que inclui não apenas os tratados, mas também outras fontes dos direitos humanos internacional, como o costume internacional e principalmente a jurisprudência tanto contenciosa quanto consultiva dos tribunais internacionais de direitos humanos. Isso tudo para prevenir a aplicação de normas nacionais que sejam manifestamente incompatíveis com os tratados e para que as autoridades estatais cumpram adequadamente com sua obrigação de respeito e garantia dos direitos humanos.
Como explica Carvalho Ramos (2018), esse controle pode ter efeito negativo ou positivo. Sendo o efeito negativo a invalidação das normas e decisões nacionais contrárias às normas internacionais, e o efeito positivo a interpretação adequada das normas nacionais para que estas sejam conforme às normas internacionais.
Flávia Piovesan (2010) nos traz a ideia de um trapézio normativo, em que ao invés da existência de uma pirâmide normativa - em que no topo estaria a CF e os tratados aprovados pelo rito das emendas, depois os tratados internacionais supralegais, depois as leis – o controle de constitucionalidade deveria ser feito na verdade sob a visão de um trapézio com a base mais larga, estando a CF no topo, ao lado de todos os tratados sobre direitos humanos sem distinção do rito em que foi aprovado.
Exemplo desse controle de convencionalidade exercido pelo Brasil foi a respeito da prisão civil do depositário infiel. A previsão de prisão do depositário infiel estava prevista na Constituição Federal em seu texto originário. Após a assinatura da CADH, foi feito esse controle de convencionalidade e editada a Súmula Vinculante 25 que expressa que é ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito.
Outro exemplo, porém, em sentido um pouco contrário, foi a declaração da Corte sobre Leis de Anistia no julgamento do caso Gomes Lund vs Brasil. O órgão declarou que a Lei de Anistia brasileira, apesar de recebida pela Constituição Federal é inconvencional e inválida pelo fato de a lei brasileira ter promovido a impunidade dos agentes estatais no período ditatorial. Porém, o STF já possuía o entendimento- antes da decisão da Corte- de que a Lei de Anistia foi recepcionada pela Constituição Federal.
O STF decidiu por maioria, pela recepção da Lei de Anistia pela atual Constituição tendo em vista o caráter amplo e geral desse instituto. Examinam-se os efeitos dessa decisão de caráter ergo omnes e vinculante no sistema jurídico brasileiro e precipuamente em face da instauração da Comissão da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República.”STF– ADPF 153/DF- Sessão Plenária- j. 29.04.2010- m.v. – rei. Mm. Eros Grau – Dje 06.08.2010 – Área do Direito: Constitucional.
Para a maior parte dos estudiosos, doutrinadores, sociólogos e juristas essa lei precisa ser revista com urgência. O PSOL apresentou a ADPF 320 em 2014 para essa questão ser discutida mais uma vez, no entanto ainda sem decisão do STF.
Fica nítida a não observação do Estado brasileiro com seus compromissos internacionais ao não ter feito ainda o controle de constitucionalidade. Afinal, como já visto, as sentenças da Corte interamericana são vinculantes e ao assumir compromisso internacional por meio de pactos ou tratados internacionais, o Brasil se obriga a adotar as medidas ali previstas. Uma vez submetido, não se trata de uma questão de escolha sobre o cumprimento. Uma vez signatário, o Estado passa a ter o compromisso na harmonização de ambas dimensões normativas, não cabendo escusas face à contrariedade de ordem interna (RESENDE, 2013).
A nossa tão prolixa Constituição faz diversas referências aos tratados internacionais, mas está claro que nossos tribunais tomam em preponderância as leis internas. Diversos países na América Latina revogaram suas leis de autoanistia e levaram aos tribunais penais ditadores e criminosos políticos. O Brasil fica em uma posição debilitada em relação a estes países. Não há como negar que a posição do STF macula a imagem do país frente aos organismos internacionais de proteção de direitos humanos. TEIXEIRA (2016)
O não cumprimento do Brasil das decisões da Corte Interamericana, além de desprestígio na comunidade internacional pode acarretar em pena de inadimplência, submetida à Assembleia Geral da OEA, e nova sanção pela Corte. Nesse sentido é válido uma breve discussão sobre a vinculação das decisões da Comissão.
Cachapuz de Medeiros (199, p.82) aponta no sentido de que quando a Comissão Interamericana de Direitos Humanos se pronuncia sobre uma denúncia específica de violação aos direitos humanos, esse pronunciamento pode reunir todas as condições para ser considerado como obrigatório. Isso pois resulta de um processo cercado de amplas garantias, a tal ponto que suas decisões possuem as mesmas formalidades de uma sentença judicial.
3 A DEFENSORIA PÚBLICA E O SEU PAPEL OMBUDSMAN
Ombudsman é conceituado como aquele responsável para defender os direitos dos cidadãos das denúncias de abuso de poder por parte do Estado. Daniel Sarmento (2015, p.16) diz que é uma instituição pública dotada de autonomia, que possui a finalidade principal de proteger os direitos humanos dos cidadãos frente ao funcionamento de instituições públicas.
É um órgão com independência política, administrativa, financeira e funcional ao exercer suas funções. Funções estas que abarcam a supervisão das atividades da administração pública e a proteção dos direitos humanos.
Com o advento da Emenda Constitucional nº 80 de 2014 não restou dúvidas da atuação da Defensoria Pública como órgão ombudsman na proteção dos direitos fundamentais da população. Tendo a plena autonomia da Defensoria Pública da União já reconhecida pela Emenda Constitucional nº 74 de 2013.
A EC nº 80/2014, por sua vez, conferiu explícito reconhecimento constitucional a atribuições institucionais que já tinham sido conferidas à Defensoria Pública da União, pela Lei Complementar nº 80/94, especialmente após as modificações introduzidas pela Lei Complementar nº 132/2009, (veja-se, e.g., os arts. 3º-A e 4º da LC nº 80/94). De todo modo, o desempenho da função de ombudsman pela Defensoria Pública da União está delimitado pelo escopo das suas finalidades institucionais, que, conforme o disposto no art. 134 da CF, se ligam especialmente à defesa de indivíduos e grupos hipossuficientes e vulneráveis. (...). Portanto, a resposta ao quesito é positiva. Sem dúvida, as características institucionais e a missão constitucional da Defensoria Pública da União permitem o seu enquadramento como ombudsman. SARMENTO (2015, p.18)
Ainda nesse sentido, no julgamento da ADI 4636 – em que se discutia a obrigatoriedade do defensor público possuir inscrição na OAB- o relator ministro Gilmar Mendes, ao decidir que defensores públicos não precisam de inscrição na OAB para exercer suas funções, fundamentou a decisão indicando que a instituição é instrumento de transformação social e que suas garantias foram concedidas pela própria Constituição Federal em prol daqueles que por motivos de vulnerabilidade não conseguem ter os seus direitos efetivados Ressaltando ainda que o texto constitucional colocou a instituição em posição de ombudsman no intuito de zelar pelos direito humanos, dos necessitados, diminuindo as desigualdades da sociedade brasileira e ainda fazer valer o estado democrático de direito. Vejamos:
(...) é evidente ter a Defensoria Pública, por obrigação, prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Todavia, suas funções a essas não se restringem. Deve a Defensoria Pública zelar pelos interesses e direitos de todos os necessitados, não apenas sob o viés financeiro desse conceito, mas também sob o prisma da hipossuficiência e vulnerabilidade decorrentes de razões outras (idade, gênero, etnia, condição física ou mental, entre outras). Conclui-se que a Defensoria Pública, agente de transformação social, tem por tarefa assistir aqueles que, de alguma forma, encontram barreiras para exercitar seus direitos.(...), examinando o projeto constitucional de resguardo dos direitos humanos, podemos dizer que a Defensoria Pública é verdadeiro ombudsman, que deve zelar pela concretização do estado democrático de direito, promoção dos direitos humanos e defesa dos necessitados, visto tal conceito da forma mais ampla possível, tudo com o objetivo de dissipar, tanto quanto possível, as desigualdades do Brasil, hoje quase perenes. (STF - ADI: 4636 DF XXXXX-49.2011.1.00.0000, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 04/11/2021, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 10/02/2022)
A própria Constituição Federal ao disciplinar a Defensoria Pública no seu art. 134 a coloca como instrumento do regime democrático. Sendo expressão do regime democrático uma vez que a democracia tem em suas missões institucionais garantir à toda sociedade o direito fundamental do acesso à justiça. O que não compreende apenas a demanda judicial, mas tudo aquilo que engloba a garantia e efetivação de direitos e garantias fundamentais, sendo esta uma importante premissa do estado democrático de direito. Dessa forma, a Defensoria está nessa posição já que garante o acesso à justiça daqueles que são invisibilizados pelas instituições públicas: os vulneráveis.
Sua atuação como custos vulnerablis, como conceitua Scarpinella Bueno (2018, p. 219) é a forma de intervenção da Defensoria Pública que representa a busca democrática do progresso jurídico-social das categorias mais vulneráveis no curso processual e no cenário jurídico-político. A instituição se coloca como “fiscal dos vulneráveis”, atuando sempre que os direitos e interesses desses forem violados. Atuando em nome próprio em razão de sua missão institucional de promoção dos direitos humanos. Sendo o direito envolvido individual ou coletivo.
Um exemplo dessa atuação pode ser encontrado no art. 554 parágrafo primeiro do novo código de processo civil, que prevê que no caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, deverá ser feita a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, devendo ainda ser determinada a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública.
O STJ, em 2020 ao julgar o Habeas Corpus nº 568.693 – ES- que tinha como objeto determinar a liberdade de todos que tiveram concedida a prisão provisória, porém condicionada ao pagamento de fiança e ainda se encontram presos durante a pandemia do coronavírus- previu expressamente a atuação de custos vulnerablis da Defensoria Pública. Levando, assim, essa questão para além da doutrina e encaixando na jurisprudência, como podemos ver:
É cabível a admissão da Defensoria Pública da União como custos vulnerabilis nos casos em que há formação de precedentes em favor dos vulneráveis e dos direitos humanos. In casu, como já ressaltado, trata-se da defesa de presos - que praticaram atos de menor gravidade - que não possuem condições financeiras de saldar o valor estipulado a título de fiança e por isso permanecem presos (ainda que em período reconhecido como de pandemia). Ora, a vulnerabilidade econômica do grupo social que aqui se avulta é patente, mas, além dela, trata-se, também, de pessoas em vulnerabilidade social. No mais, também não há dúvida de que ao tratar de prisão de pessoas em vulnerabilidade econômica e social em presídios com superlotação e insalubridade em tempos de COVID-19, estamos tratando de direitos humanos, vez que se defende, aqui, a liberdade como direito civil e também a liberdade real advinda dos direitos sociais. Assim, defiro o pedido da Defensoria Pública da União para atuar no feito como custos vulnerabilis. (STJ - PET no HC: XXXXX ES XXXXX/XXXXX-0, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Publicação: DJ 03/04/2020)
Maurílio Casas Maia (2020), explica ainda que essa é a atuação garantista que visa remover os obstáculos de acesso à Justiça em todas as ondas renovatórias, reequilibrando as relações jurídicas buscando uma “interpretação pro homine” do ordenamento jurídico.
O princípio pro homine está diretamente ligado aos direitos humanos. Este princípio visa assegurar nos conflitos entre normas aquela que mais amplia os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana.
É dessa forma que a Defensoria Pública também pode atuar no controle de convencionalidade das leis domésticas em face dos tratados internacionais adotados pelo Brasil.
Por ser uma instituição essencial à justiça, Valério de Oliveira Mazzuoli e Jorge Bheron Rocha (2020), colocam a Defensoria como primordial nesse controle de convencionalidade, uma vez que a instituição tem legitimidade para em caráter difuso provocar as instituições sobre os tratados que foram incorporados ao direito pátrio, e em caráter concentrado perante o STF, na hipótese dos tratados de direitos humanos aprovados pelo rito do art. 5.º parágrafo 3.º da Constituição Federal. Para os autores, seria inclusive desnecessária qualquer alteração constitucional ou legislativa para que os magistrados de primeiro grau, tribunais locais ou superiores realizem o controle difuso da convencionalidade das normas do direito interno, a partir da provocação da Defensoria Pública ou das demais instituições essenciais à justiça.
Esse entendimento decorre diretamente da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do caso Almonacid Arellano e Outros Vs. Chile, em 2006, vem entendendo que o controle de convencionalidade interno é o principal a ser exercido no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, sendo o controle internacional apenas mediato ou secundário, levado a efeito se os sistemas nacionais de justiça não lograrem controlar a convencionalidade das leis de maneira adequada. Defensoria Pública: instituição essencial ao controle de convencionalidade. Valerio de Oliveira Mazzuoli e Jorge Bheron Rocha. https://www.conjur.com.br/2020-mai-19/tribuna-defensoria defensoria-publica-essencial-controle-convencionalidade Acesso: 29.12.2022 17:07
Sendo essa atribuição inclusive uma função institucional da Defensoria Pública e que por mais que já esteja implícito, sua condição expressa como autora das ações concentradas, e interventora deve ser inadiável para promover maior segurança jurídica. Uma vez que a Instituição já é detentora dessas legitimidades a partir das alterações feitas pela Emenda Constitucional nº 80 de 2014, que a colocou como corresponsável pela promoção dos Direitos Humanos.
No âmbito internacional, a DPU atua de modo direto e indireto na proteção dos direitos humanos. Ajuda no cumprimento de sentenças internacionais, como ocorreu no caso Fábrica de Fogos Santo Antônio de Jesus em que o Brasil foi condenado. E possui mecanismos próprios como a Coordenação de Apoio à Atuação no Sistema Interamericano de Direitos Humanos que tem a função de intermediar atividades no sistema interamericano, o que permite que a instituição atue como amicus curiae em demandas.
Além disso, possui legitimidade para denúncia e pedidos de medidas cautelares junto a Comissão, Gualberto, et al (2024) explica que essa rede de proteção é formada por órgãos internos da DPU: defensor público-geral federal, subdefensor público-geral federal, por meio da CSDH, Assessoria de Atuação no Supremo Tribunal Federal, Secretaria-Geral de Articulação Institucional, por meio dos Grupos de Trabalho Temáticos, defensor nacional de direitos humanos, defensores regionais de direitos humanos e defensora pública interamericana.
4 A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS NO CASO BEATRIZ Y OTROS VS EL SALVADOR
Em 2013, uma jovem da zona rural e El Salvador, chamada Beatriz sofreu de violência obstétrica ao ter o seu direito ao aborto negado pelo Estado. A jovem sofria de Lúpus, e a gravidez colocava em risco não só a sua vida como a do bebê, que nasceu com anencefalia e faleceu logo depois.
Beatriz já era mãe e sua primeira gravidez foi de extremo risco, após ter o seu primeiro filho a Maternidade Nacional informou que ela não poderia engravidar novamente, apesar disso, escolheu exercer o seu direito a não realizar o procedimento de esterilização. Quando soube da sua segunda gravidez, o feto foi diagnosticado com malformação congênita de anencefalia, condição incompatível com a vida extrauterina. Condição que também colocava em risco a vida da mãe.
Dessa forma, apesar de as leis salvadorenhas proibirem a interrupção da gravidez em qualquer circunstância, Beatriz pediu autorização para abortar na 12ª semana de gestação. Interrupção esta que foi recomendada por um comitê médico de 15 especialistas. No entanto, o pedido foi negado. A Justiça no entanto, autorizou a cesariana na 26ª semana, sendo considerado um parto prematuro, e não um aborto. Sua filha nasceu por cesariana e morreu 5 horas depois. Situação que agravou a situação de saúde de Beatriz e gerou danos psicológicos nela e na sua família.
Sua mãe, em entrevista à BBC em 2024 contou os horrores sofridos nos dias no hospital, protestos contra a realização do aborto, xingamentos contra Beatriz. Ela ficou 81 dias internada em um quarto tão pequeno que não cabia a sua cama, também foi privada de ver o seu primeiro filho.
Nesse meio tempo, a Comissão e a Corte interamericana emitiram medidas cautelares em favor de Beatriz, medidas estas que não foram cumpridas. Como consta no relatório de imprensa da OAS (2022), a Comissão considerou que embora a proteção da vida desde a concepção constitua um objetivo legítimo, a criminalização da interrupção da gravidez quando a vida extrauterina do feto não é viável não cumpre o requisito de adequação, uma vez que a não viabilidade da vida do feto rompe a relação meio-fim entre a criminalização e o objetivo que busca, já que o interesse protegido (a vida do feto) inevitavelmente não será capaz de se materializar. Da mesma forma, entre outros aspectos, foi estabelecido que os danos e riscos aos direitos à vida, à saúde, à integridade física e à privacidade de Beatriz como consequência da falta de acesso à interrupção da gravidez, atingiram a máxima severidade no caso, de tal forma em que o grau de realização do objetivo perseguido, ou seja, a proteção da vida do feto, foi nulo devido à sua condição de anencefalia.
Ressaltou ainda que a criminalização do aborto é algo que enocraja as mulheres a procurarem pelo procedimento de forma ilegal, o que põe em risco a sua vida, uma vez que por muitas vezes esses procedimento não são feitos de forma segura. Dessa forma, a Comissão concluiu que o Estado de El Salvador é responsável pela violação dos direitos à vida, integridade física, às garantias judiciais, privacidade, igualdade perante a lei, proteção judicial e direito à saúde e à realização progressiva dos direitos estabelecidos na Convenção Americana, em relação às obrigações estabelecidas nos seus artigos 1.1 e 2. Concluiu-se também que o Estado é responsável pela violação dos artigos 1 e 6 da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, e do artigo 7 da Convenção de Belém do Pará, que obriga os Estados a prevenir e punir a violência contra as mulheres.
No relatório de mérito foi recomendado ao Estado que fosse feita a reparação integral das violações declaradas; que adotasse medidas legislativas para estabelecer a possibilidade de interromper uma gravidez em situações de inviabilidade ou incompatibilidade da vida extrauterina do feto, bem como quando há riscos graves para a vida, a saúde e a integridade física da mãe; que adotasse todas as medidas necessárias, incluindo a formulação de políticas públicas, programas de treinamento, protocolos e estruturas de orientação para assegurar que o acesso à interrupção da gravidez como consequência da adaptação legislativa acima mencionada seja eficaz na prática, e que não sejam gerados obstáculos de fato ou de jure que afetem sua implementação, respeitando as normas internacionais de direitos humanos aplicáveis.
Em 5 de janeiro de 2022 o caso foi levado à Corte Interamericana.
A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro entrou como amicus curiae no caso, em sua peça de ingresso alegou que o direito penal é utilizado como ferramenta para obstacularizar o acesso ao aborto e que a instituição é ativa nos debates sobre a discriminalização por entender que este é um direito subjetivo das mulheres, utilizou como exeplo o fato de terem atuado também como amicus curiae na ADPF 442 que visou descriminalizar o aborto realizado nas 12 primeiras semanas de gestação. Foi defendido que a criminalização do aborto é uma forma de discriminação contra as mulheres e fere o direito fundamental da igualdade.
Dentro outros pontos, ressaltou que a criminalização do aborto traz um impacto desproporcional na sociedade, uma vez que a criminalização de condutas sempre recai mais em mulheres negras em situação de pobreza. De acordo com pesquisa trazida pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, 64,7% dos processos distribuídos entre 2005 e 2017 no Estado do Rio de Janeiro, a maioria das rés indiciadas nos arts. 124 e 126 do Código Penal (provocar aborto em si mesma ou permitir que alguém o faça) eram negras e pobres. Cerca de 22% não concluíram o Ensino Médio. Mulheres em situação de pobreza, em sua maioria negras (60%), demoram mais a tomar decisão e recorrem a procedimentos clandestinos, às vezes em estágio mais avançado de gestação. Esse mesmo grupo vulnerável de mulheres é mais sujeito a sofrerem impactos do aborto como morte e lesões por não terem o mesmo tipo de assistência médica na hora da escolha da realização do procedimento. Por muitas vezes há inclusive um processo de revitimização quando se procura ajuda depois do aborto no sistema publico de saúde, onde sua vida sexual é questionada e chegam até a serem reportadas para a polícia. Relatório da Defensoria Pública assinala que depois da investigação policial a denúncia do hospital é a que mais dá ensejo ao conhecimento, por parte de autoridades, da prática do aborto.
Em matéria da própria instituição em 2023, foi explanado que o intuito da intervenção como amicus curiae é contribuir “de maneira independente e imparcial com algumas considerações jurídicas”, uma vez que a sentença será de cumprimento obrigatório por todos os 35 países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), inclusive o Brasil. Isso porque, diante de um entendimento mais garantista, é entendido que a jurisprudência da Corte Interamericana deve ser aplicada de forma vinculante em todos os países que ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos para que violações da mesma natureza não se perpetuem.
“O caso Beatriz y otros vs. El Salvador tem pertinência com os temas enfrentados no cotidiano da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, sendo indissociável das discussões em torno de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, da violência obstétrica, da criminalização e da mortalidade materna, as quais têm sido objeto de ampla atuação institucional”, destaca o memorial enviado à Corte IDH pelas Coordenadorias de Defesa dos Direitos da Mulher e de Saúde. A história de Beatriz, de El Salvador, na América Central, é similar às de tantas outras mulheres que chegam à Defensoria. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (2023), https://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/26002-DPRJ-requer-participacao-em-julgamento-internacional-sobre-aborto Acesso: 29/12/2024
El Salvador foi condenado no final de 2024. A sentença da Corte Interamericana reconheceu que houve violação do direito à integridade pessoal, à vida privada, à saúde. Também reconheceu a violação a um recurso efetivo, uma vez que a justiça salvadorenha não ofereceu uma solução clara e diligente para o problema jurídico que foi chamado a resolver, uma vez que adotou uma posição vaga que não permitiu uma solução para a controvérsia levantada. Confirmou uma situação de insegurança jurídica que deixou a equipe médica sem orientação clara, afirmando que eles devem “assumir os riscos que implica o exercício da profissão.”. Além disso, reconheceu por fim que a integridade pessoal dos familiares de Beatriz também foi violada, pois o sofrimento da vítima, sua prolongada internação e a falta da certeza sobre seu tratamento impactou diretamente seus familiares. Em particular, enfatizou os efeitos da separação de seu filho de 13 meses na época dos fatos.
Com relação às medidas de reparação, foi estabelecido que o Estado deve fornecer tratamento médico, tratamento psicológico, psiquiátrico aos familiares de Beatriz que o solicitarem, além da indenização por danos materiais e imateriais. Já quanto às medidas de não repetição, foi estabelecido que o Estado deve adotar todas as medidas e regulamentos necessários para fornecer diretrizes e guias de ação à equipe médica e judicial em situações de gravidez que coloquem a vida e saúde da mulher em risco. O Estado pode cumprir esta medida através da adaptação de protocolos existentes, emissão de novo protocolo ou qualquer outra medida regulatória que garanta segurança jurídica no atendimento de situações como as deste caso. Da mesma forma, deve ser desenvolvido um plano de treinamento direcionado a profissionais de saúde em hospitais que possuem seções de cuidados de maternidade, e também aos operadores de justiça.
5 CONCLUSÃO
Diante do exposto, é visto a imensa importância do sistema interamericano de direitos humanos. Além de garantir direitos sociais e econômicos, sua atuação contenciosa visa impedir que estes sejam violados, que violações dessa natureza não se repitam e que as vítimas sejam devidamente reparadas.
A legitimidade para a atuação da Defensoria Pública nesse sistema é algo de extrema relevância, uma vez que é a instituição que mais lida com as demandas mais sensíveis da sociedade brasileira. Sua atuação vai além de garantir que sentenças da Corte Interamericana sejam cumpridas, é parte de um instrumento de transformação social, que toca diretamente no cerne do problema atuando também junto da Corte.
Em relação ao caso Beatriz Y Otros vs El Salvador, a atuação da Defensoria Pública é deveras importante para trazer a discussão do aborto legal e seguro para o âmbito do Brasil. principalmente na ADPF nº 442 que tramita atualmente no STF. Isso pois é visto que trata-se de uma questão de saúde pública e não exclusivamente do direito penal, direito penal este que sempre pende a penalizar aqueles mais vulneráveis, nesse caso em específicos, mulheres negras sem condições financeiras.
A Corte Interamericana juntamente com a Defensoria Pública consegue ampliar o debate de questões complexas e sensíveis saindo do mero senso comum e visando sempre a garantia dos direitos mais preciosos que precisam ser assegurados pelo Estado.
REFERÊNCIAS
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Advogada, graduada em Direito (UNICAP). Pós-graduada em Direito e Defesa das Garantias Fundamentais Aplicada à Defensoria Pública (GRAN).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, LUIZA PERNAMBUCANO. O papel Ombudsman da Defensoria Pública: sua atuação no Sistema Interamericano de Direitos Humanos no caso Beatriz y otros vs. El Salvador Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jan 2025, 04:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67706/o-papel-ombudsman-da-defensoria-pblica-sua-atuao-no-sistema-interamericano-de-direitos-humanos-no-caso-beatriz-y-otros-vs-el-salvador. Acesso em: 31 jan 2025.
Por: Joao vitor rossi
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