A fixação de direitos e vantagens aos servidores públicos é uma temática sensível e de inegável repercussão para a Administração Pública brasileira. Esse debate alcançou seu ponto culminante com o recente julgamento do Recurso Extraordinário 1.500.990-AM, no qual o Supremo Tribunal Federal, sob a sistemática da repercussão geral, fixou a Tese 1344. A Corte reafirmou a impossibilidade de estender, por decisão judicial, quaisquer parcelas remuneratórias ou indenizatórias previstas para servidores efetivos aos contratados temporariamente, sem previsão legal ou contratual expressa ou comprovação de desvirtuamento da contratação.
Esse julgamento representa um marco para a segurança jurídica, a racionalização do regime jurídico dos servidores e a contenção de decisões judiciais que, em nome da isonomia ou dos direitos sociais, ultrapassam a reserva legal e criam obrigações sem respaldo legislativo. A centralidade do Tema 1344 é, portanto, não apenas jurídica, mas política, econômica e institucional.
O caso que originou o Tema 1344: contexto e controvérsia
A controvérsia surgiu quando a Turma Recursal do Estado do Amazonas reconheceu o direito de profissionais da saúde contratados temporariamente à percepção de gratificação de risco de vida e auxílio-alimentação, ambos previstos em normas aplicáveis apenas a servidores efetivos. A decisão amparou-se nos direitos sociais previstos no art. 7º da Constituição Federal e no princípio da isonomia, argumentando que a ausência de previsão legal não poderia impedir o pagamento, uma vez que as funções desempenhadas pelos temporários eram igualmente penosas.
O Estado do Amazonas recorreu ao STF, sustentando violação ao princípio da legalidade (art. 5º, II, CF) e ao art. 37, caput, X e XIII da Constituição, que tratam da reserva legal remuneratória e da vedação à equiparação de carreiras. Argumentou também que a decisão contrariava a Súmula Vinculante nº 37 e os Temas 551, 600 e 916 da repercussão geral. Apontou, ainda, impacto orçamentário de R$ 307 milhões apenas em retroativos, o que demonstrava a gravidade da tese acolhida pela Justiça estadual.
A decisão do STF e a fixação da Tese 1344
No julgamento do RE 1.500.990-AM, o Plenário do STF reconheceu, por unanimidade, a existência de repercussão geral e fixou a seguinte tese, que agora vincula todas as instâncias do Judiciário:
“O regime administrativo-remuneratório da contratação temporária é diverso do regime jurídico dos servidores efetivos, sendo vedada a extensão por decisão judicial de parcelas de qualquer natureza, observado o Tema 551/RG.”
A Corte reafirmou que o contrato temporário, previsto no art. 37, IX, CF, tem natureza excepcional, precária e subordinada a contrato administrativo. Não se trata de vínculo permanente nem se submete ao regime estatutário. Assim, não é dado ao Poder Judiciário equiparar regimes jurídicos diversos, ainda que invocando direitos sociais ou o princípio da isonomia, sob pena de invadir competência legislativa e afrontar a ordem constitucional.
Reserva legal e separação de Poderes: fundamentos constitucionais
A base da decisão está no art. 37, X, da Constituição Federal, que exige lei específica para fixação e alteração da remuneração dos servidores públicos. Essa norma é expressão do princípio da reserva legal remuneratória, que impede que qualquer outro Poder ou agente altere a estrutura remuneratória dos servidores fora do processo legislativo regular.
A Súmula Vinculante nº 37, consolidada pelo STF, sintetiza esse entendimento ao dispor que:
“Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia.”
A Corte também invocou a doutrina consolidada. Maria Sylvia Zanella Di Pietro leciona que a remuneração dos servidores públicos está subordinada ao princípio da legalidade estrita, sendo inconstitucional qualquer aumento que não decorra de lei específica (Direito Administrativo, 35ª ed., Atlas, p. 674). Do mesmo modo, Celso Antônio Bandeira de Mello adverte que o Judiciário não pode, sob qualquer pretexto, determinar equiparações remuneratórias entre servidores de regimes jurídicos distintos (Curso de Direito Administrativo, 33ª ed., Malheiros, p. 259).
Jurisprudência consolidada: Temas 551, 600 e 916
A decisão ainda se ampara em ampla jurisprudência do próprio STF. No Tema 551/RG (RE 1.066.677), a Corte já havia decidido que temporários não têm direito a 13º salário e férias acrescidas do terço constitucional, salvo previsão legal/contratual ou desvirtuamento da contratação.
No Tema 600/RG (RE 710.293), o STF vedou o aumento de verbas entre carreiras distintas com base em isonomia, mesmo se tratando de verbas indenizatórias, sob pena de afronta à reserva legal.
Por fim, no Tema 916/RG (RE 765.320), a Corte afirmou que contratações temporárias em desconformidade com o art. 37, IX, CF, não geram efeitos jurídicos válidos, exceto quanto ao pagamento pelos dias trabalhados e levantamento do FGTS.
Esses precedentes formam a espinha dorsal do Tema 1344, consolidando a impossibilidade de o Judiciário criar obrigações financeiras em favor de contratados temporários sem base legal.
Efeitos práticos e segurança jurídica: por que o Tema 1344 é fundamental
A fixação da Tese 1344 protege a Administração Pública de decisões imprevisíveis e insustentáveis financeiramente, que muitas vezes ignoram o caráter precário dos contratos temporários e buscam equipará-los aos servidores efetivos. A repercussão econômica é real e significativa, como demonstrado pelo Estado do Amazonas.
Além disso, o STF garante que a contratação temporária não seja utilizada como forma dissimulada de efetivação no serviço público, em afronta ao concurso público e ao princípio da impessoalidade.
A decisão também reconhece a relevância dos direitos sociais, mas reitera que sua concretização deve respeitar os limites constitucionais da atuação judicial. Não cabe ao Judiciário implementar políticas públicas remuneratórias sem respaldo legal, ainda que sob pretexto de proteção ao trabalhador.
Conclusão: os contornos constitucionais da atuação judicial
O julgamento do Tema 1344 reafirma o compromisso do STF com a ordem constitucional, especialmente com a separação de Poderes, a reserva legal e a segurança jurídica. Os regimes jurídicos de servidores públicos não são meramente formais, mas estruturantes da organização estatal.
Ao vedar a extensão judicial de vantagens aos temporários, a Corte traça uma linha clara entre proteção social e usurpação legislativa, preservando o papel do Legislativo como único legitimado a alterar o regime remuneratório dos servidores.
Trata-se de uma decisão técnica, mas necessária, que demonstra que a justiça social não se constrói à revelia da legalidade. A proteção aos trabalhadores contratados temporariamente deve existir, sim, mas nos marcos da lei, sob pena de comprometer a própria legitimidade do ordenamento jurídico.
Referências Bibliográficas
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1.500.990-AM. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Julgamento em 25 out. 2024. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: mar. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 37. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: mar. 2025.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 35. ed. São Paulo: Atlas, 2022.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 41. ed. São Paulo: Atlas, 2024.
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