Acórdão: Apelação Cível n. 2002.005008-3, de Rio do Sul.
Relator: Des. Salete Silva Sommariva.
Data da decisão: 23.09.2003.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - REINTEGRAÇÃO DE POSSE REQUISITOS DEMONSTRADOS - COMODATO VERBAL - NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICAL PARA A ENTREGA DO IMÓVEL - RECUSA DE DEVOLUÇÃO - ESBULHO CONFIGURADO - DECISÃO CONFIRMADA.
No comodato a posse é transmitida a título provisório, de modo que os comodatários adquirem a posse precária, sendo obrigados a devolvê-la tão logo o comodante reclame a coisa de volta. Com a notificação extrajudicial, extingue-se o comodato, transformando-se a posse anteriormente justa, em injusta, em virtude da recusa de devolução do imóvel após o transcurso do lapso temporal estipulado, caracterizando o esbulho, sendo o manejo reintegratório o meio apto para reaver o imóvel.
Restando satisfeitos os requisitos previstos no Código de Processo Civil para a reintegração de posse, há que ser mantida a decisão de Primeiro Grau.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação cível n. 2002.005008-3, da comarca de Rio do Sul em que é apelante Camila Christan e apelados Erwin Christan e Charlotte Christan:
ACORDAM, em Primeira Câmara de Direito Civil, por votação unânime, conhecer e negar provimento ao recurso.
Custas na forma da lei.
I - RELATÓRIO
Na comarca de Rio do Sul, Erwin Christan e sua esposa Charlotte Christan aforaram ação de reintegração de posse cumulada com perdas e danos em face de sua neta, Camila Christan.
Sustentam, em síntese, que são legítimos possuidores do imóvel, o qual descrevem na inicial, localizado em Rio do Sul, adquirido através de usufruto vitalício, conforme se comprova pela escritura no Registro de Imóveis, estando impedidos de usufruí-lo em face da resistência injustificada da ré em devolvê-lo; que embora devidamente notificada extrajudicialmente para desocupar o imóvel e pagar o valor relativo aos aluguéis, a ré continua inerte.
Pretendem, pois, a reintegração liminar na posse do imóvel, tornando-a definitiva em julgamento final, assim como a condenação em perdas e danos.
Devidamente citada, a ré contestou a ação aduzindo, preliminarmente, carência da ação em face da inexistência do esbulho, porquanto a posse era exercida de forma mansa e pacífica por seus pais, que receberam dos autores uma autorização para construção de uma casa no local; que a posse continuou sendo exercida pela ré, constituindo posse desmembrada desde 1985. No mérito, aduziu que os autores não lograram comprovar o fato constitutivo de seu direito, sendo inexistente o esbulho alegado, ressaltando o desmembramento da posse, (fls. 34/47).
Em audiência designada, foram ofertadas três propostas de conciliação, sendo concedido prazo de quinze dias para avaliação das mesmas, porém as propostas restaram inexitosas (fl. 77).
Houve impugnação à contestação às fls. 88/90.
Sentenciando o feito, o MM. Juiz a quo julgou procedente o pedido contido na exordial, determinado a reintegração definitva na posse do imóvel, bem como o pagamento de indenização referente as "perdas e danos sofridas pelos autores, no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais), mensalmente, valor este devido a partir da data que se configurou o esbulho (30/03/2001), até a data do efetivo cumprimento do mandado de reintegração de posse, atualizado monetariamente a partir do vencimento de cada prestação mensal, com juros de mora a partir da citação (3/7/2001) - fl. 29, verso)", (fls. 95/104).
Inconformada, a demandada opôs embargos de declaração (fls. 106/107), sob a alegação de que o pedido de assistência judiciária gratuita não foi analisado, de modo que restaram acolhidos, sendo deferido o pedido (fls. 108/109).
Irresignada com a prestação jurisdicional de Primeiro Grau, a ré interpôs recurso de apelação às fls. 111/127, asseverando, preliminarmente, a ocorrência de cerceamento de defesa. No mérito, repisou todos os argumentos despendidos quando da apresentação da contestação , quais sejam, em apertada síntese, a carência da ação e a inexistência de esbulho.
Por fim, atacou a decisão referente aos embargos de declaração, aduzindo que a isenção não pode se referir somente às custas processuais, mas também aos honorários advocatícios, ressaltando que, em face da inexistência de impugnação, inaplicáveis os arts. 7º e 11, § 2º, ambos da Lei n. 1.060/50.
Com as contra-razões (fls. 130/140), rebatendo os argumentos contidos nas razões de apelação, os autos ascenderam a esta Superior Instância.
II - VOTO
Presentes os pressupostos de admissibilidade, passa-se à análise de fundo.
Pretende a apelante manter-se na posse do imóvel em discussão argumentando que houve cerceamento de defesa em virtude do julgamento antecipado da lide, uma vez que ainda havia prova a ser produzida, sobretudo testemunhal; carência de ação em face da inexistência de esbulho, porquanto a posse sempre foi exercida de forma mansa e pacífica por seus pais e, posteriormente, apenas por ela, salientando a ocorrência de posse desmembrada, eis que aqueles receberam uma autorização dos apelados para construir uma casa no local, constituindo posse desmembrada desde 1985; que não houve comprovação do fato constitutivo do direito dos apelados, sendo que inexiste o alegado esbulho, prevalecendo o desmembramento da posse; que a isenção concedida não pode se referir somente às custas processuais, mas também aos honorários, ressaltando que, em face da inexistência de impugnação, inaplicáveis os arts. 7º e 11 § 2º, ambos da Lei n. 1.060/50.
No que tange ao alegado cerceamento de defesa, razão não assiste à apelante, por estar presente nos autos o conjunto probatório necessário e suficiente ao deslinde da quaestio, mormente em relação à prova testemunhal, já que o MM. Juiz de Primeiro Grau, não obstante as testemunhas terem sido arroladas a destempo, procedeu à oitiva de uma delas, conforme o termo de audiência (fl. 77).
Portanto, resta claro que não houve cerceamento de defesa, mas ao contrário, ocorreu a busca pela verdade real por meio da oitiva de testemunhas, a critério do douto togado a quo, conforme explicitado.
Já no que pertine à alegada carência de ação por confundir-se com o meritum causae da demanda será analisada no momento oportuno.
Quanto ao mérito, introitamente, convém salientar que a ação de reintegração de posse somente logra êxito se preenchidos os requisitos aventados no art. 927 do Digesto Processual Civil, de forma inequívoca, in verbis:
"Art. 927. Incumbe ao autor provar:
I - a sua posse;
II - a turbação ou o esbulho praticado pelo réu;
III - a data da turbação ou do esbulho;
IV - a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção; a perda da posse, na ação de reintegração."
Nesse norte, para uma melhor compreensão da quaestio, faz-se necessário um breve relato acerca de toda a demanda.
O imóvel objeto da discussão encontra-se devidamente matriculado sob o n. 7.688, no Cartório de Registro de Imóveis e Hipotecas da comarca de Rio do Sul (fl. 15), tendo sido adquirido mediante compra por Heidemari Beate Christan que, segundo se infere da averbação realizada, estipulou cláusula de usufruto vitalício em favor de Erwin Christan e Charlotte Christan, ora apelados, em 04/11/1980.
Posteriormente, em 14/05/1982, a própria Heidemari Beate Christan doou em proveito de Alfred Christan - filho dos usufrutuários ora apelados - e Gerald Dieter Christan o imóvel sob litígio, permanecendo o usufruto vitalício.
Por sua vez, Alfred Christan e Angela Maria Scoz, separados judicialmente, procederam a nova doação, desta feita em benefício de seus filhos, dentre eles Camila Christan, ora apelante, através da carta de sentença datada de 01/07/1993, averbada às margens da matrícula supra mencionada, em 21/05/1999.
Portanto, é evidente que a posse, assim como a percepção dos frutos cabe aos usufrutuários, em virtude do usufruto vitalício, consoante dispõe o art. 1.394 do novo Código Civil, in verbis:
"Art. 1.394. O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos".
Contudo, como restou evidente nos autos, os apelados, utilizando-se das prerrogativas inerentes ao instituto do usufruto, celebraram um comodato verbal com os pais da apelante, transferindo-lhes a posse direta e justa, de modo a permitir que estes construíssem e residissem no imóvel em apreço, sem prejuízo de sua posse indireta.
Registre-se que "A permissão para moradia é, indubitavelmente, espécie de comodato (art. 1248, do CC)." (AC n. 2000.008600-0, de Tubarão, Rel. Des. Ruy Pedro Schneider).
Deste modo, configura-se a ocorrência de comodato verbal por meio do qual os usufrutuários concederam o imóvel em proveito de Alfred e Angela, pais da apelante que, a partir de então, juntamente com ela e os demais filhos, passaram nele residir.
Colhe-se do depoimento de Clarice Passig:
"...que são vizinhos da ré Camila e construíram 'juntos' na época, com Peta, Alfred, no ano de 1985; que foram morar no local em 1986/1987, que quem mora na casa é Camila, e assim que Peta construiu a casa foi morar lá com os filhos, que antes de Peta mesmo depois de separar-se de Angela continuou morando no imóvel com os filhos, sendo que quando este morreu os filhos continuaram morando lá...", (fl. 78).
E, ainda, segundo o testigo de Sergio Vasselai:
"...que quem está exercendo a posse do imóvel está com Camila ou uma de suas irmãs; que estão no imóvel há mais de dez anos, posto que há mais de dez anos está na cidade e tem conhecimento de tal posse...", (fl. 79)
Assim, cuida-se de comodato, disciplinado pelo art. 579 do novo Código Civil. Veja-se:
"Art. 579. O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Perfaz-se com a tradição do objeto."
Como visto, no comodato a posse é transmitida a título provisório, de modo que os comodatários adquirem a posse precária, sendo obrigados a devolvê-la tão logo o comodante reclame a coisa de volta.
Neste diapasão:
"O comodato é uma cessão gratuita de uma coisa não fungível e não consumível, a título gratuito e que possui como característico principal a temporariedade, podendo ser efetivado através de contrato escrito ou verbal. A posse dele decorrente é precária, não sendo apta, jamais, à convalidação da propriedade." (AC n. 1999.008070-6, de Criciúma, Rel. Des. Carlos Prudêncio).
Da análise dos autos, verifica-se, claramente que os comodantes, de acordo com a notificação extrajudicial de fls. 23/24, solicitaram a devolução do imóvel no prazo estipulado, de 30 (trinta) dias, transformando-se, destarte, a posse anteriormente justa, em injusta, em virtude da recusa de devolução após o transcurso do lapso temporal estipulado.
Significa dizer que a apelante, a partir do decurso do prazo estipulado na notificação extrajudicial, encontra-se injustamente na posse do imóvel. Anteriormente a isso, seus avós, ora apelados, exerciam a posse indireta da área dada em comodato e, em tal condição, evidentemente, não podiam deter a posse material e concreta da área.
A propósito, orienta a jurisprudência:
"Possessória. Reintegração de posse. Posse comprovada. Desnecessidade de contato físico do possuidor com a coisa. Construção de barraco. Esbulho caracterizado. Pedido procedente. Sentença confirmada.
A posse, apresentada como uma relação entre a pessoa e coisa, caracteriza-se como a exteriorização da conduta de quem procede como o dono; uma vez adquirida, continua tanto tempo quanto dura a faculdade de dispor livremente do imóvel, sendo desnecessário que o possuidor nele esteja constantemente presente, o que seria impossível na maioria dos casos.
Comprovada de forma pela e induvidosa a posse da autora e o esbulho praticado pelo réu, é de ser acolhida a pretensão da proteção possessória deduzida na exordial" (REsp n. 208.777-SC; Rel. Min. Waldemar Zveiter; DJU de 20/10/2000).
Por conseguinte, não há que se falar na ausência de pressuposto necessário ao manejo da ação reintegratória, porquanto restou devidamente comprovado nos autos a posse dos apelados - posse indireta - o esbulho praticado pela apelante - recusa injustificada na entrega do imóvel e a perda da posse - a não devolução do bem.
Em caso semelhante foi proferida a seguinte decisão por esta egrégia Corte:
"AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE - REQUISITOS DO ART. 927 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL PREENCHIDOS - POSSE INDIRETA DOS AUTORES COMPROVADA - COMODATO VERBAL - NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL PARA DESOCUPAÇÃO - RECUSA DE RECEBIMENTO - POSSE PRECÁRIA DOS RÉUS CONFIGURADA - ESBULHO POSSESSÓRIO CARACTERIZADO - RECURSO DESPROVIDO.
'Extinto o comodato por força da notificação, a posse torna-se injusta, e a ação adequada é a reintegratória. Desatendida a pretensão constante do vínculo notificatório, após vencido o prazo consuma-se o esbulho, deixando a posse a merecer a proteção da lei, por já ser contrária aos interesses do possuidor. A ação ordinária para extinguir o contrato não se torna cabível, porque já se extinguiu em virtude da notificação. Em face do esbulho, ao comodante incumbe imitir-se na posse que lhe é recusada fazendo uso da competente demanda reintegratória' (Pontes de Miranda)." (AC n. 1999.021143-6, de Canoinhas, Rel. Des. Marcus Tulio Sartorato)
Quanto à irresignação relativa à decisão que manteve a condenação da verba honorária, com a ressalva de que tal verba somente poderá ser cobrada pelos apelados, desde que comprovem que a apelante perdeu sua condição de necessitada nos termos do § 2º, do art. 11, da Lei n. 1060/50, não merece prosperar.
Tendo sido a apelante beneficiada pela assistência judiciária gratuita, as despesas processuais e os honorários advocatícios a seu encargo ficam suspensas pelo período de 05 (cinco) anos, segundo os ditames do art. 12 da Lei n. 1.060/50.
Neste diapasão, já decidiu o Supremo Tribunal Federal:
"O art. 12 da Lei 1.060/50, ao estabelecer que, havendo sucumbência do beneficiário da justiça gratuita, deverá este arcar com as custas processuais e honorários advocatícios desde que, em até cinco anos, contados da decisão final, puder satisfazê-los sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família, não é incompatível com o art. 5º, LXXIV da Constituição Federal, que prevê assistência judiciária integral e gratuita aos hipossuficientes" (STF-RT 781/170).
Por fim, importa salientar, quanto ao pleito indenizatório, em que pese se entender que as perdas e danos não restaram suficientemente comprovadas nos autos, não houve irresignação da parte interessada a respeito, motivo pelo qual, em atenção ao princípio do tantum devolutum quantum appellatum (art. 515 do Digesto Processual Civil), não pode, esta Corte de Justiça, sequer cogitar a possibilidade de exame.
Destarte, deve a sentença atacada ser mantida incólume.
III - DECISÃO:
Nos termos do voto da relatora, decide a Câmara, à unanimidade, conhecer e negar provimento ao recurso.
Participaram do julgamento os Exmos. Srs. Desembargadores Orli Rodrigues e Dionizio Jenczak.
Florianópolis, 23 de setembro de 2003.
Orli Rodrigues
PRESIDENTE COM VOTO
Salete Silva Sommariva
RELATORA
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