Acórdão: Apelação Cível n. 2007.010587-5, de Rio do Sul.
Relator: Des. Fernando Carioni.
Data da decisão: 15.05.2007.
Publicação: DJSC Eletrônico n. 256, edição de 27.07.2007, p. 106.
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE CUMULADA COM PERDAS E DANOS – VEÍCULO AUTOMOTOR – ENTREGA A TERCEIRO PARA INTERMEDIAÇÃO DE VENDA – VENDA DO BEM – MORA NO PAGAMENTO – BOA-FÉ DO TERCEIRO ADQUIRENTE – FALTA DE COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS IMPOSTOS PELO ARTIGO 927 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – ÔNUS PROBATÓRIO – INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 333, I, DO CODEX PROCESSUALIS – SENTENÇA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO
Nos bens móveis, a aquisição da propriedade ocorre com a mera tradição do bem. É de boa-fé a posse exercida por terceiro que adquiriu o veículo e ignorava o vício ou o obstáculo que impedia a aquisição da coisa.
"Uma vez perfeito e acabado o negócio, não há como pretender exigir-se de terceiro que arque com o ulterior desmancho da transação. Cabe ao lesado procurar ressarcir-se dos danos causados pelo inadimplemento da obrigação junto ao outro contraente, não contra terceiro de boa-fé" (AC n. 45.601, de Tubarão, rel. Des. Orli Rodrigues, DJE de 10-7-96).
"É do autor o ônus de provar a sua posse, o esbulho praticado pelo réu, a data da moléstia e, em razão desta, a perda da posse; do contrário, ausente um ou mais dos requisitos legais engastados no artigo 927 do Código de Processo Civil, impõe-se a improcedência do pleito reintegratório" (Des. Luiz Carlos Freyesleben).
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2007.010587-5, da comarca de Rio do Sul (2ª Vara Cível), em que é apelante Kelly Costa Ramos, e apelado Geovani da Silva:
ACORDAM, em Terceira Câmara de Direito Civil, por votação unânime, negar provimento ao recurso. Custas de lei.
RELATÓRIO
Kelly Costa Ramos ajuizou ação de reintegração de posse cumulada com Perdas e Danos, com Pedido de Liminar autuada sob o n. 054.03.000092-4 contra Giovani da Silva, e alegou, resumidamente que, é proprietária do veículo GM Corsa Wind, ano 1999, cor verde, placas IIZ – 5939, chassi 9BGSC19ZOXC763747, tendo-o entregado ao Sr. Noelci Cardoso Maciel, a fim de que intermediasse a sua venda.
Asseverou que o Sr. Noelci, por sua vez, entregou o veículo aos Srs. Edson José Lancini e Darci Motta, ficando ajustado, até então, que assim que o automóvel fosse vendido e a autora recebesse o valor devido, procederia à transferência ao comprador.
Afirmou que jamais recebeu qualquer pagamento, tampouco conseguiu recuperar o veículo. Realizando buscas, verificou que o automóvel estava em poder do requerido, razão pela qual ajuizou ação cautelar apensa, na qual obteve concessão de medida liminar.
Assegurou que o requerido tinha ciência de que o veículo pertencia a outra pessoa, até porque possui registro público do qual consta o verdadeiro proprietário. Mesmo assim, dele se aproveitou, praticando verdadeiro esbulho possessório, na medida em que se negou a devolvê-lo à autora.
Por fim, pugnou pela concessão de liminar de manutenção de posse, assegurando-se-lhe a posse decorrente da liminar concedida nos autos da cautelar apensa; a sua reintegração definitiva na posse do veículo; a condenação do réu a lhe ressarcir os danos causados ao veículo e no ônus decorrente da sucumbência; e, a produção de provas. (fls. 2 a 9).
Devidamente citado, o requerido apresentou contestação rechaçando os argumentos expedidos na exordial (fls. 26 a 59).
Houve réplica à contestação (fls. 62 a 69).
Em audiência, proposta a conciliação, esta restou infrutífera (fl. 82).
A autora solicitou a juntada aos autos de declaração passada pelo Sr. Noelci Cardoso Maciel (fls. 86 e 87). Dela teve vista o requerido, tendo se manifestado (fls. 92 a 96).
Sentenciando o feito, o Magistrado a quo julgou improcedente o pedido, condenando a autora ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, este fixados em R$ 1.000,00 (um mil reais). No entanto, as verbas sucumbenciais foram suspensas, a teor do disposto no artigo 12, da Lei 1.060/50, eis que a autora é beneficiária da gratuidade da justiça (fls. 103 a 109).
Irresignada com o decisum, apela a autora sustentando que ocorreu equívoco na sentença, sendo incontroverso que o recorrido é comerciante de veículos. Na procuração de fl. 24 ele se qualifica como comerciante.
Alega que sendo o apelado revendedor de automóveis, portanto profissional específico do ramo, é indesculpável que adquira veículo e efetue o pagamento, sem que lhe sejam transmitidos os documentos, sem a formalização do ato, sem se certificar que o vendedor possui poderes para realizar a venda, receber valor e dar quitação.
Assevera que os documentos de fls. 52 e 53, tratam-se de recibos de depósitos, sem especificidade, datados de 09/2001, portanto anteriores a entrega do veículo por parte da recorrente para o Sr. Noelci e, naturalmente, anteriores a entrega desse para os Srs. Edson e Darci, bem como ao apelado.
Assegura que era ônus do recorrido provar, plenamente, que os recibos de depósitos em nome de terceiro se referiam ao pagamento do automóvel em questão.
Sustenta que mesmo que os recibos se referissem ao pagamento do veículo em debate, teriam sido feitos à pessoa que não é proprietária do automóvel, sem poderes para vender, para receber valores e sem qualquer documento do automóvel.
Alega que é tão evidente a má-fé do recorrido, que este, utilizava o automóvel de forma irregular, isto é, sem o Certificado de Registro e Licenciamento 2002, conforme prova a certidão do Auto de Busca e Apreensão, Citação e Depósito, que consta no verso da fl. 16 do processo cautelar em apenso.
Afirma que é comum as revendas terem uma procuração dos proprietários originários dando poderes para dispor dos automóveis, de modo que, no caso dos autos, não houve a mínima preocupação do recorrido em verificar acerca da legitimidade e poderes de quem estava lhe vendendo.
Assevera que a posse do recorrido é injusta vez que adquirida precariamente, conforme declaração de fl. 88.
Assegura que a falta de licenciamento para transitar, por si só, demonstra que a posse do recorrido era clandestina e precária.
Sustenta que sob a ótica do Código de Trânsito Brasileiro se comprova a posse precária, clandestina, injusta e de má-fé do apelado.
Alega que o documento original de fl. 5 do processo cautelar apenso, acrescentada à declaração da fl. 88 deste autos, dentre outras provas e circunstâncias, são demonstrações irrefutáveis da propriedade do automóvel por parte da recorrente, bem como do esbulho que sofreu (fls. 112 a 123).
Em suas contra-razões, pugna o apelado pelo desprovimento do recurso e manutenção da decisão objurgada (fls. 127 a 137).
Após, os autos ascenderam a esta Corte.
O apelado, Giovani da Silva, interpôs medida cautelar incidental de busca e apreensão, com pedido de liminar, no presente recurso de apelação alegando, em síntese, a necessidade de permanência dos efeitos da liminar de busca e apreensão até o julgamento do recurso de apelação da ação principal, qual seja, ação de reintegração de posse, a qual não foi recebida por se encontrar a apelação pautada para julgamento.
VOTO
Sustenta a apelante ser procedente o pedido formulado na inicial de reintegração de posse, haja vista ter sofrido esbulho quando entregou o veículo GM Corsa Wind, ano 1999, cor verde, placas IIZ – 5939, chassi 9BGSC19ZOXC763747 para venda, já que jamais recebeu o preço respectivo.
A recorrente alega que ocorreu equívoco na sentença, sendo incontroverso que o recorrido é comerciante de veículos. Na procuração de fl. 24 ele se qualifica como comerciante.
A apelante entregou o veículo ao garagista e intermediário, Sr. Noelci Cardoso Maciel, na Cidade de Caxias do Sul-RS para vendê-lo (declaração acostada aos autos, fl. 88).
Este, por sua vez, procedeu a entrega do veículo aos Srs. Edson José Lancini e Darci Motta, que com aquele mantinham parceria no comércio de automóveis (fl. 88).
Em seguida, Edson e Darci ao receberem o veículo de Noelci, levaram o automóvel para a cidade de Rio do Sul-SC, sendo que concretizaram a venda ao apelado (fl. 88).
O primeiro ponto a ser analisado é a respeito da posse. Da lição do saudoso Silvio Rodrigues, possuidor "[...] é aquele que age em face da coisa corpórea como se fosse o proprietário, pois a posse nada mais é do que uma exteriorização da propriedade. A lei protege todo aquele que age sobre a coisa como se fosse o proprietário, explorando-a, dando-lhe o destino para que economicamente foi feita" (in Direito das Coisas, 28ª ed., São Paulo, Saraiva, 2003).
Por sua vez, estabelece o artigo 927 do Código de Processo Civil os requisitos da ação de reintegração de posse:
Art. 927. Incumbe ao autor provar:
[...]
II – a turbação ou o esbulho praticado pelo réu;
Fazendo um comparativo entre os requisitos supramencionados com os documentos colacionados aos autos, constata-se que a apelante não fez prova do esbulho que alega ter sido praticado pelo apelado.
O recorrido, sendo ou não comerciante de veículos, não pode ser condenado a indenizar a apelante por perdas e danos, pois esta entregou o automóvel ao Sr. Noelci para que efetuasse a venda, este passou o veículo aos Srs. Edson e Darci e estes submeteram o automóvel ao apelado, portanto, foi recebido de boa-fé.
Nos bens móveis, a aquisição da propriedade ocorre com a mera tradição do bem.
Determinam os artigos 1.226 e 1.267, do Código Civil:
Art. 1.226. Os direitos reais sobre coisas móveis, quando constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com a tradição.
[...]
Art. 1.267. A propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição.
Doutrina Washington de Barros Monteiro:
Tradição é a entrega da coisa ao adquirente, o ato pelo qual se transfere a outrem o domínio de uma coisa, em virtude de título translativo da propriedade. (...) Com essa entrega, torna-se pública a transferência. O direito pessoal, resultante do acordo de vontades, transforma-se em direito real. Antes da tradição, o domínio não se considera transferido do alienante para o adquirente. Ela é para os bens móveis o que a transcrição representa para os imóveis (in Curso de Direito Civil. 24. ed. São Paulo: Saraiva, v. 3. p. 201)
Desse modo, ao adquirir o veículo, ocorreu a tradição, pois foi transferida ao apelado o domínio do bem móvel.
A apelante assevera que sendo o apelado revendedor de veículos, portanto profissional específico do ramo, é indesculpável que adquira automóvel e efetue o pagamento, sem que lhe sejam transmitidos os documentos, sem a formalização do ato, sem se certificar que o vendedor possui poderes para realizar a venda, receber valor e dar quitação.
Não há no processo, indício de prova que evidencie que o recorrido tinha ciência da origem ilícita do veículo, registrando-se que o fato de não estar ele registrado em nome do vendedor, é habitual e não leva, essencialmente, a esta suposição.
Além disso, não possuía, junto ao documento do automóvel, qualquer restrição que impedisse a compra e venda, de modo que o apelado não poderia prever que o Sr. Edson José Lancini o teria adquirido fraudulentamente, mesmo porque, é comum que as revendedoras de veículos usados os conservem registrados em nome de seus proprietários originários.
Desse modo, manifesto que o recorrido não tinha conhecimento da origem ilícita do automóvel, razão pela qual, evidentemente, deve ser considerado como possuidor de boa-fé.
O Código Civil ao tratar do assunto, assim dispõe em seu artigo 1.201:
Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.
Sílvio de Salvo Venosa, discorrendo sobre o tema assevera:
Enfatizemos, de plano, que o interesse para a conceituação de posse de boa-fé diz respeito a dois fenômenos, quais sejam, a aquisição da coisa por usucapião e a questão dos frutos e benfeitorias da coisa possuída. Quando discutimos esses dois aspectos, a tipificação da posse de boa ou má-fé tem vital importância. Para a defesa da posse não é essencial a boa-fé, basta que seja uma posse nem violenta, nem precária, nem clandestina (Lopes, 1964, v. 6:139)
[...]
Embora existam críticos desses dispositivos (artigos 1.201 e 1.202 do Código Civil) que sustentam que o legislador criou aspecto objetivo à conceituação de boa-fé na posse, as dicções legais fazem o caso concreto depender sempre do exame da vontade do possuidor. Nesses termos, temos que examinar, no caso sob testilha, se o possuidor ignora o vício da posse. Em seguida, concluiremos cessada a boa-fé no momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.
[...] Desse modo, não se afasta a necessidade do exame do psiquismo do agente para concluir por sua boa ou má-fé. Essa boa-fé na posse não interfere por si só no aspecto dominial e na ação petitória.
[...]
Haverá posse de má-fé quando 'o possuidor está convencido de que sua posse não tem legitimidade jurídica, e nada obstante, nela se mantém' (Pontes, 1977:70). [...] A consciência de possuir legitimidade deve vir cercada de todas as cautelas e investigações idôneas para caracterizar o fato da posse. Há necessidade, portanto, de um aspecto dinâmico nessa ciência de boa-fé.
[...] Evidente que o erro de fato produz uma situação de boa-fé.
[...]
Em determinadas circunstâncias, o erro (e também a ignorância) de direito, de lei não cogente, pode caracterizar posse de boa-fé, enquanto não alertado ou não ficar ciente o possuidor (in Direito Civil, 6ª edição, Direitos reais, Editora Atlas, São Paulo, 2006, p. 64 e 65).
Verifica-se que não se produziu nos autos existência de má-fé por parte do apelado, ou conluio seu com os Srs. Edson José Lancini e Darci Motta. Não se comprovou ter ele conhecimento da negociação havida entre a apelante e o Sr. Noelci Cardoso Maciel, e deste com os Srs. Edson e Darci.
Tem-se, portanto, que é terceiro de boa-fé.
Se posteriormente o negócio realizado entre aqueles senhores não foi cumprido, por qualquer motivo, incabível exigir-se do recorrido que devolva o bem que adquirira de quem se tinha como dono.
Cabe à lesada procurar ressarcir-se dos danos causados pelo inadimplemento da obrigação pelo outro contraente, não contra terceiro de boa-fé.
No mesmo sentido, citam-se alguns julgados da Corte Catarinense, que já enfrentou questões semelhantes, in verbis:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – EMBARGOS DE TERCEIRO – LIMINAR CONCEDIDA – PROPRIEDADE E POSSE DO EMBARGANTE COMPROVADAS – TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE DE VEÍCULO PELA TRADIÇÃO (CC, ARTS. 1.226 E 1.267) – BOA-FÉ DO TERCEIRO ADQUIRENTE EVIDENCIADA – PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS INSCULPIDOS NO ARTIGO 1.046 DO CPC.
Para o deferimento de liminar em sede embargos de terceiro, a teor do art. 1.051 do CPC, basta uma análise perfunctória das provas coligidas aos autos, as quais devem suficientemente demonstrar a posse de boa-fé do embargante (Agravo de Instrumento n. 2006.036064-3, da Capital, rel. Desa. Salete Silva Sommariva, j. em 30-1-2007).
AGRAVO DE INSTRUMENTO – EMBARGOS DE TERCEIRO - CONCESSÃO DE LIMINAR DE MANUTENÇÃO DO TERCEIRO EMBARGANTE NA POSSE DO VEÍCULO - PRESSUPOSTOS PRESENTES - COMPROVAÇÃO DA POSSE E DA QUALIDADE DE TERCEIRO DE BOA-FÉ - MANUTENÇÃO DO EMBARGANTE NA POSSE DO BEM – RECURSO PROVIDO.
[...]
"Quando munido de boa fé, o terceiro adquirente de bem móvel não poderá ter seu direito de fruição restringido por constrição judicial" (Agravo de instrumento n. 04.017659-7, de Blumenau, rel. Des. Wilson Augusto do Nascimento, j. 12.11.2004) (Agravo de instrumento n. 2005.022494-2, de Itapema, rel. Des. Sérgio Roberto Baasch Luz, j. em 7-3-2006).
AÇÃO ORIGINÁRIA DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. LIMINAR CONCEDIDA. APREENSÃO EFETIVADA.
"TERCEIRO ADQUIRENTE DE BOA-FÉ. OPOSIÇÃO DE EMBARGOS DE TERCEIRO. IMPROCEDÊNCIA EM PRIMEIRA INSTÂNCIA. PROVA DOS AUTOS QUE ATESTAM TER HAVIDO A COMPRA DO BEM SOB A ÉGIDE DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ. NECESSIDADE DE REINTEGRAÇÃO DA POSSE DESTE. PRECEDENTES. SENTENÇA REFORMADA.
'APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS DE TERCEIRO -- COMPRA E VENDA DE VEÍCULO - TRADIÇÃO - POSSE DE BOA-FÉ DEMONSTRADA - LEGITIMIDADE ATIVA - INSURGÊNCIA RECURSAL DESPROVIDA
'Uma vez perfeito e acabado o negócio, não há como pretender exigir-se de terceiro que arque com o ulterior desmancho da transação. Cabe ao lesado procurar ressarcir-se dos danos causados pelo inadimplemento da obrigação junto ao outro contraente, não contra terceiro de boa-fé' (Apelação cível n. 45.601, de Tubarão, publicada DJE de 10.07.96. Relator Des. Orli Rodrigues) (AC n. 1997.003806-2, de Brusque, rel. Jorge Schaefer Martins, j. em 25-11-2004)
Nessa linha de princípio, a presunção de boa-fé que milita em favor do possuidor do bem adquirido prevalece até prova em contrário.
A apelante assegura que os documentos de fls. 52-53, tratam-se de recibos de depósitos, sem especificidade, datados de 09-2001, portanto anteriores a entrega do veículo por parte da recorrente para o Sr. Noelci e, naturalmente, anteriores a entrega desse para os Srs. Edson e Darci, bem como ao apelado.
A apelante não rebateu suficientemente esta situação, porquanto não juntou documentação, ou qualquer outro tipo de prova acerca da data da entrega do automóvel ao Sr. Noelci.
Desse modo, sendo inequívoca a prova da aquisição do veículo, resta assentada a legítima propriedade do apelado.
Não era ônus do recorrido provar que os recibos de depósitos em nome de terceiro se referiam ao pagamento do automóvel em questão. O apelado juntou os comprovantes de depósitos (fls. 52-53) para provar que efetuou o pagamento do veículo e cabia à apelante desconstituir esta prova, o que não ocorreu.
Sustenta a recorrente que o documento original de fl. 05 do processo cautelar apenso, acrescentada à declaração de fl. 88 destes autos, dentre outras provas e circunstâncias, são demonstrações irrefutáveis da propriedade do automóvel por parte da apelante, bem como do esbulho que sofreu.
A posse exercida pelo apelado sobre o veículo é plenamente legal, razão pela qual não se evidencia qualquer ato que possa ser entendido como esbulho.
A par disso, tem-se que a fim de obter a tutela possessória, ex vi do disposto no artigo 333, I, do CPC, era ônus da autora ter provado que a posse do réu sobre o veículo deriva de vício ou defeito, isto é, que a posse não é justa.
E, compulsando os autos, vislumbra-se que a autora não fez prova que os depósitos feitos pelo réu ao Sr. Edson José Lancini foram feitos antes da data da entrega do veículo ao Sr. Noelci e muito menos fez prova do esbulho.
Logo, diante da fragilidade das provas produzidas, remanesce a posse de fato do réu apelado, pois não restou demonstrado, a estreme de dúvidas, o fato constitutivo da autora apelante, a teor do inciso I do art. 333 do CPC.
Assim, sem a ocorrência da posse, o provimento judicial reclamado só pode direcionar-se a um único posicionamento, que é a inviabilização da pretensão em foco.
Acerca do tema, aliás, se posiciona a jurisprudência:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE DE VEÍCULO – POSSE E PERDA DA POSSE NÃO COMPROVADAS – DOCUMENTOS QUE PRESSUPÕE A INEXISTÊNCIA DA POSSE – AUSÊNCIA DE ESBULHO – EXEGESE DO ART. 927 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – EXTINÇÃO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO, EX OFFICIO – RECURSO PREJUDICADO. (Apelação cível n. 2005.014448-6, de Lages, Relator: Des. Substituto. Sérgio Izidoro Heil, j. 27-03-2007)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. POSSE E PROPRIEDADE DE BEM MÓVEL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. LIMINAR. No caso concreto, há fortes indícios de que o agravado adquiriu a propriedade do bem e de que ao menos a posse do mesmo o foi de modo livre de vícios. Na hipótese, dizendo-se possuidoras ambas as partes, mantém-se o bem com aquela que já o tem (art. 1.211 do Código Civil). Agravo de instrumento desprovido. (TJRS, Agravo de Instrumento n. 70006923254, rel. Des. Sejalmo Sebastião de Paula Nery, j. em 18-12-2003).
CIVIL – POSSESSÓRIA – AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE – PROVA TESTEMUNHAL E DEMAIS ELEMENTOS QUE NÃO SÃO SUFICIENTES À DEMONSTRAÇÃO DE ATOS DE POSSE DO AUTOR SOBRE A ÁREA EM LITÍGIO – ÔNUS DA PROVA QUE INCUMBE ÀQUELE QUE ALEGA – EXEGESE DO ART. 333, I, DO CPC – REQUISITOS DO ART. 927 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL NÃO DEMONSTRADOS – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA – RECURSO DESPROVIDO. A insuficiência de prova de qualquer dos requisitos elencados no art. 927 do Código de Processo Civil – in casu, o exercício anterior da posse dita esbulhada – conduz ao inacolhimento da proteção possessória (AC n. 2003.022026-7, rel. Des. Marcus Tulio Sartorato).
Enfatiza Ovídio Baptista da Silva:
Como todo o direito sustenta-se em fatos, aquele que alega possuir um direito deve, antes de mais nada, demonstrar a existência dos fatos em que tal direito se alicerça. Pode-se, portanto, estabelecer, como regra geral dominante de nosso sistema probatório, o princípio segundo o qual à parte que alega a existência de determinado fato para dele derivar a existência de algum direito, incumbe o ônus de demonstrar sua existência. Em resumo, cabe-lhe o ônus de produzir a prova dos fatos por si mesmo alegados como existentes (in Curso de Processo Civil, 3. ed., vol. 1, Porto Alegre, Editora Sérgio Fabris, 1996, p. 289).
Sobre o ônus da prova, retira-se da lição de Humberto Theodoro Júnior:
Não há um dever de provar, nem à parte contrária assiste o direito de exigir a prova do adversário. Há um simples ônus, de modo que o litigante assume o risco de perder a causa se não provar os fatos alegados e do qual depende a existência do direito subjetivo que pretende resguardar através da tutela jurisdicional. Isto porque, segundo a máxima antiga, fato alegado e não provado é o mesmo que fato inexistente" (in Curso de direito processual civil, 26. ed., vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 423).
Ora, sabe-se que na ação de reintegração de posse "é do autor o ônus de provar a sua posse, o esbulho praticado pelo réu, a data da moléstia e, em razão desta, a perda da posse; do contrário, ausente um ou mais dos requisitos legais engastados no artigo 927 do Código de Processo Civil, impõe-se a improcedência do pleito reintegratório" (TJSC, AC n. 1999.017977-0, de Chapecó, rel. Des. Luiz Carlos Freyesleben, j. em 28-8-2003) (grifei).
No entanto, considera-se importante buscar na doutrina o conceito de esbulho, o qual fundamenta a proteção legal ao fato da posse, para que se possa determinar, no caso concreto, a existência ou não da ocorrência do ato.
Na doutrina, Maria Helena Diniz conceitua-o como:
O esbulho é o ato pelo qual o possuidor se vê despojado da posse, injustamente, por violência, por clandestinidade e por abuso de confiança. De maneira que é esbulhador: estranho que invade casa deixada por inquilino; o comodatário que deixa de entregar a coisa dada em comodato findo o prazo contratual; o locador de serviço, dispensado pelo patrão, que não restitui a casa que recebera para morar (in Direito das coisas, 20ª ed., 4º vol., São Paulo, Saraiva, 2004, p. 86).
Joel Dias Figueira Júnior acrescenta:
Em suma, o esbulho é qualquer ato molestativo que acarrete ao possuidor, injustamente, a perda da posse, correspondente à privação total ou parcial do poder de fato sócio-econômico de utilização e disponibilidade (in Posse e Ações Possessórias, Fundamentos da Posse, vol. I, Curitiba, Juruá, 1994, p. 241 e 242).
Dessa maneira, por meio do conceito amplo de esbulho, verifica-se a inexistência dos pressupostos exigidos pelo CPC, tendo em vista tratar-se de um caso específico, no qual atinge o fator incerteza, não configurando concretamente a ação do apelado como um esbulho possessório, em face da ausência de prova convincente de sua ocorrência.
Dessa forma, forçoso concluir-se, diante da precariedade das provas trazidas aos autos pela autora, que o Togado a quo agiu com acerto julgando improcedente o pleito reintegratório.
Diante do exposto, é medida de rigor desprover o recurso, mantendo-se incólume a sentença de primeiro grau.
DECISÃO
Nos termos do voto do Relator, nega-se provimento ao recurso.
Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Exmos. Srs. Des. Marcus Tulio Sartorato e Sérgio Izidoro Heil.
Florianópolis, 15 de maio de 2007.
Fernando Carioni
PRESIDENTE E RELATOR
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