HABEAS CORPUS Nº 199.570 - SP (2011⁄0050152-7)
RELATORA |
: |
MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA |
IMPETRANTE |
: |
JULIANA PASCUTTI FERREIRA DE OLIVEIRA - DEFENSORA PÚBLICA |
IMPETRADO |
: |
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO |
PACIENTE |
: |
D. E. DE L. |
EMENTA
PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. 1. EMPREGO DE ARMA DE FOGO. ARTEFATO INIDÔNEO. CONSTATAÇÃO POR PERÍCIA. AUSÊNCIA DE POTENCIALIDADE LESIVA. 2. REGIME INICIAL FECHADO. PENA-BASE. MÍNIMO LEGAL. FUNDAMENTAÇÃO. GRAVIDADE ABSTRATA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS FAVORÁVEIS. DIREITO AO REGIME MENOS GRAVOSO. SÚMULAS 718 E 719 DO STF E SÚMULA 440 DO STJ. 3. ORDEM CONCEDIDA.
1. A Terceira Seção desta Corte, no julgamento do EREsp n.º 961.863⁄RS, alinhando-se à posição esposada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, firmou a compreensão de que é prescindível a apreensão e perícia da arma de fogo para a aplicação da causa de aumento prevista no art. 157, § 2.º, I, do Código Penal, desde que comprovada a sua utilização por outros meios de prova. Ressalva do entendimento da Relatora.
2. No caso, o magistrado de primeiro grau e a Corte estadual assentaram a existência de prova pericial suficiente a demonstrar a inidoneidade da arma de fogo utilizada pelo réu, dada a sua ineficácia para a realização de disparos. Constrangimento ilegal reconhecido.
3. Não é possível a imposição de regime mais severo que aquele fixado em lei com base apenas na gravidade abstrata do delito.
4. Para exasperação do regime fixado em lei é necessária motivação idônea. Súmulas 718 e 719 do Supremo Tribunal Federal e Súmula n.º 440 deste Superior Tribunal de Justiça.
5. Ordem concedida, acolhido o parecer, a fim de reduzir a pena privativa de liberdade do paciente para 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, a ser cumprida inicialmente no regime semiaberto, mais 13 (treze) dias-multa.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça: "A Turma, por unanimidade, concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora." Os Srs. Ministros Og Fernandes, Sebastião Reis Júnior, Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ⁄RS) e Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ⁄CE) votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
Brasília, 21 de junho de 2011(Data do Julgamento)
Ministra Maria Thereza de Assis Moura
Relatora
HABEAS CORPUS Nº 199.570 - SP (2011⁄0050152-7)
RELATORA |
: |
MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA |
IMPETRANTE |
: |
JULIANA PASCUTTI FERREIRA DE OLIVEIRA - DEFENSORA PÚBLICA |
IMPETRADO |
: |
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO |
PACIENTE |
: |
D. E. DE L. |
RELATÓRIO
Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora):
Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado por Defensora Pública em favor de D. E. DE L., apontando como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Apelação Criminal n.º 990.10.341447-0).
Narra a impetração que o paciente - denunciado pela suposta prática das condutas descritas no art. 157, § 2º, inciso II, do Código Penal - foi condenado à pena de 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, a ser cumprida inicialmente no regime fechado, bem assim ao pagamento de 13 (treze) dias-multa. Do que lá foi escrito, colho estes trechos (fls. 16⁄23):
Passo a dosar a pena. Na primeira fase, fixo a pena no mínimo legal, já que o réu possui bons antecedentes, na acepção legal, e agiu com o dolo do tipo. Pena-base em 04 (quatro) anos de reclusão. Na segunda fase, não há agravantes. Embora haja confissão, nesta fase não é possível a redução aquém do mínimo legal. Na terceira fase, foi reconhecida a causa de aumento do concurso de agentes, com o aumento de 1⁄3, sendo que a pena de 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão é definitiva. [...] O réu demonstrou ousadia e desrespeito ao outro ao abordar a vítima no meio da via pública, sem se importar com as consequências. Sem contar que estava acompanhado de outra pessoa. Além disso, utilizou arma de fogo, que, ainda que inapta, causou maior temor à vítima. Embora não seja hábil para configurar a majorante, é passível de imputar um maior desvalor à conduta, refletindo no regime da pena. Assim, fixo o regime inicial fechado.
Recorreram o Ministério Público e a Defesa ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Na oportunidade, a acusação buscou o reconhecimento da causa de aumento do emprego de arma de fogo. A Defesa pleiteou a absolvição do paciente por insuficiência de provas e, subsidiariamente, a modificação do regime prisional e o afastamento da causa de aumento do concurso de agentes.
A Quinta Câmara de Direito Criminal negou provimento ao recurso o réu e deu provimento ao da acusação a fim de reconhecer a incidência da causa de aumento do emprego de arma de fogo, majorando a pena para 05 (cinco) anos e 06 (seis) meses de reclusão, mais 13 (treze) dias-multa. Recebeu o acórdão os seguintes fundamentos (fls. 24⁄34):
As penas devem ser revistas. As bases foram fixadas no mínimo e majoradas em 1⁄3 pela qualificadora. O aumento, com o reconhecimento da qualificadora do emprego de arma, deve ser da ordem de 3⁄8, que melhor atende à perfeita individualização da reprimenda, tudo em homenagem ao princípio da proporcionalidade da pena. Tal princípio exige uma proporção entre a valoração da ação e a sanção e um equilíbrio entre a prevenção geral e a prevenção especial para o comportamento do agente que vai ser submetido à sanção penal. É preciso, então, buscar esse equilíbrio. E uma ação dolosa executada com dupla qualificadora deve merecer valoração mais severa, porque está a demonstrar maior grau de periculosidade do agente. As reprimendas, assim, passam a ser de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de reclusão e 13 (treze) dias-multa (valor unitário mínimo).
O regime fechado, no caso, é absolutamente necessário. O roubo é exemplo concreto da violência dos dias de hoje. Portanto, aquele que se associa a outro indivíduo, aborda a vítima em plena via pública, e subtrai, mediante violência e grave ameaça, bens de qualquer valor, deve ser afastado temporariamente do convívio social, até comprovar merecimento para retornar, porque a conduta é grave, não só o crime. O autor de um roubo, como regra, mostra uma personalidade inteiramente contrária aos preceitos ético-jurídicos mais comezinhos que orientam a convivência social, fundamento mais do que razoável, insisto e repito, para a imposição do regime fechado, com a observação de que a primariedade e a menoridade do acusado não o fazem menos perigoso.
Quem age de forma ousada, fria, bem pensada, com intuito de levar pânico a terceiros indefesos, apenas para satisfazer sua ambição econômica, não tem compromisso com as regras de convivência social e não pode merecer o afago do Estado até que demonstre merecimento, submetendo-se, antes, à pena em regime de retiro pleno. Não se trata de mera opinião acerca da gravidade do crime, com reflexos no regime de cumprimento da pena.Trata-se, na verdade, de estabelecer regime indispensável a criminoso que não pode, temporariamente, ser submetido a regime mais liberal.
No Superior Tribunal de Justiça, sustenta o impetrante a ilegalidade da decisão que reconheceu a causa de aumento do emprego de arma de fogo. Argumenta que "conforme laudo pericial encartado aos autos (documento anexo), a arma era inapta à realização de disparos" (fl. 03).
Sublinha ser "equivocado o entendimento da Colenda 5ª Câmara Criminal, para a qual apenas o abalo emocional da vítima serve para majorar a pena" (fl. 03). No pormenor, colaciona precedentes desta Casa e invoca a Súmula n.º 174⁄STJ.
Destaca que as decisões ordinárias não demonstraram "quais as condições subjetivas do paciente que demandariam a fixação do regime mais severo" (fl. 04). Pondera que o paciente é primário e que a pena-base foi estabelecida no mínimo legal. Invoca as Súmulas n.º 718 e n.º 719 do Supremo Tribunal Federal, bem assim o enunciado n.º 440 desta Casa de Justiça.
Diante disso requer, em tema liminar, possa o paciente aguardar no regime semiaberto o julgamento final deste habeas corpus. No mérito, busca o afastamento da causa de aumento prevista no art. 157, § 2º, inciso I, do Código Penal e a modificação do regime inicial de cumprimento de pena para o semiaberto.
O pedido de liminar foi indeferido (fls. 41⁄43).
Prestadas as informações (fls. 73⁄97), foram os autos encaminhados ao Ministério Público Federal (Subprocurador-Geral Paulo da Rocha), que se manifestou pela concessão da ordem (fls. 100⁄104).
As últimas informações, extraídas do endereço eletrônico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, dão conta de que, em 27.04.2011, foi deferido o pedido de progressão ao regime semiaberto.
É o relatório.
HABEAS CORPUS Nº 199.570 - SP (2011⁄0050152-7)
EMENTA
PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. 1. EMPREGO DE ARMA DE FOGO. ARTEFATO INIDÔNEO. CONSTATAÇÃO POR PERÍCIA. AUSÊNCIA DE POTENCIALIDADE LESIVA. 2. REGIME INICIAL FECHADO. PENA-BASE. MÍNIMO LEGAL. FUNDAMENTAÇÃO. GRAVIDADE ABSTRATA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS FAVORÁVEIS. DIREITO AO REGIME MENOS GRAVOSO. SÚMULAS 718 E 719 DO STF E SÚMULA 440 DO STJ. 3. ORDEM CONCEDIDA.
1. A Terceira Seção desta Corte, no julgamento do EREsp n.º 961.863⁄RS, alinhando-se à posição esposada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, firmou a compreensão de que é prescindível a apreensão e perícia da arma de fogo para a aplicação da causa de aumento prevista no art. 157, § 2.º, I, do Código Penal, desde que comprovada a sua utilização por outros meios de prova. Ressalva do entendimento da Relatora.
2. No caso, o magistrado de primeiro grau e a Corte estadual assentaram a existência de prova pericial suficiente a demonstrar a inidoneidade da arma de fogo utilizada pelo réu, dada a sua ineficácia para a realização de disparos. Constrangimento ilegal reconhecido.
3. Não é possível a imposição de regime mais severo que aquele fixado em lei com base apenas na gravidade abstrata do delito.
4. Para exasperação do regime fixado em lei é necessária motivação idônea. Súmulas 718 e 719 do Supremo Tribunal Federal e Súmula n.º 440 deste Superior Tribunal de Justiça.
5. Ordem concedida, acolhido o parecer, a fim de reduzir a pena privativa de liberdade do paciente para 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, a ser cumprida inicialmente no regime semiaberto, mais 13 (treze) dias-multa.
VOTO
Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA (Relatora):
Busca o impetrante neste habeas corpus seja afastada a causa de aumento relativa ao emprego de arma de fogo, bem assim a modificação do regime prisional.
Sobre o primeiro ponto, convém tecer algumas considerações, por mim esposadas no julgamento do EREsp n.º 961.863⁄RS, de relatoria do Desembargador convocado Celso Limongi, em 13.12.2010.
Não são raros os problemas decorrentes da eficácia de novéis normas mistas, de que exemplo o art. 366 do Código de Processo Penal. Assim, comandos de direito material comparecem no Código de Processo Penal - como prescrição e extinção de punibilidade -, e regras de direito processual habitam no Código Penal - lembro que o tema ação penal dispõe de todo um capítulo na Parte Geral.
Por mais que perquira, não consigo divisar a questão posta em debate apenas sob o ângulo processual, atinente à prova do corpo de delito, para que se possa admitir o aumento de pena nos termos do art. 157, § 2º, inciso I, do Código Penal.
A respeito da noção de corpo de delito, é imperioso registrar a lição de Rogério Lauria Tucci, em sua magnífica monografia sobre o tema:
[...]
Daí, à evidência, sua manifesta importância, a ser objetivada, de logo (e ainda que num relance, dado orientar-se nosso estudo, como é óbvio, a outro campo de trabalho, com o qual se relaciona intimamente), no Direito Penal material. E isto, por certo, em virtude de originar-se o conceito de tipo delitivo do tradicional corpus delicti, sua proclamada raiz histórica, no sentido primeiro da correspondência a toda ação punível , ou seja, ao fato objetivo. (Do corpo de delito no Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 5-6).
É claro, convenhamos, que o debate se avizinha ao Direito Processual Penal, mas com ele não se confunde. Faço um paralelo. Nos crimes contra a integridade física, não se tendo procedido à perícia após trinta dias, desaparecendo a incapacidade para as ocupações habituais, a questão da tipicidade (se lesão corporal grave ou leve) do comportamento deixa de ser penal para se tratar de matéria de fato? Em meu sentir, não.
Na espécie, penso que a tarefa de demonstração da ofensividade do instrumento do crime jamais poderia incumbir à Defesa, porque, em se tratando de prova penal, a defesa não tem qualquer ônus, nem mesmo de provar eventual excludente de crime.
Ao contrário, cabe à acusação fazer a prova, indene de dúvida, acerca da existência material do fato, sua autoria e responsabilidade penal. A dúvida, no caso, favorece o acusado. E isso porque, para uma condenação, o juiz penal tem que ter a certeza moral acerca do acontecimento penal. À defesa não cabe fazer prova da certeza, mas se o juiz tiver a menor e tênue dúvida, não pode proferir um édito condenatório.
No crime de roubo majorado pelo uso da arma de fogo, não se está laborando com uma causa de justificação ou com uma eximente, que a defesa traria como um contra-argumento, ou um álibi. Pelo contrário, foca-se em uma circunstância - majorante - cuja demonstração está a cargo da acusação.
Confira-se, a propósito do ônus da prova em matéria penal:
Antes porém de analisarmos o ônus da prova do Ministério Público, é necessário verificar se existe um prévio ônus de afirmar para o acusador.
Do ponto de vista do ônus da prova, é extremamente importante o ônus de afirmar. O ônus de afirmar é um antecedente lógico e cronológico do ônus da prova. Ao ônus de afirmar os fatos segue o ônus de comprová-los. Em consequência, somente há o ônus de provar os fatos que foram anteriormente afirmados.
[...]
Em suma, no campo penal, a atividade probatória do Ministério Público é regida por ônus e não por deveres . Ao Ministério Público incumbe o ônus da prova da culpa do acusado, além de qualquer dúvida razoável.
[...]
O fato imputado ao réu e que constitui o objeto do processo penal é um fato concreto, isto é, um acontecimento, um suceder histórico que se afirma ocorrido. Diversamente, o fato para fins de direito penal é uma abstração, um modelo, um tipo penal que prevê abstratamente uma conduta.
Estabelecida esta distinção entre o conceito processual de fato e a correspondente noção penalística, é importante destacar que, quando se faz alusão ao fato como objeto da prova, trata-se fato em sua acepção processual, isto é, de um concreto acontecimento que ocorreu no passado e que deverá ser demonstrado no processo. (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Ed. RT, 2003, p. 227-230 e 301-302).
Sobre a natureza típica das circunstâncias do crime, dentre elas as causas de aumento de pena, lembro a lição do Professor de Direito Penal da USP David Teixeira de Azevedo:
As circunstâncias do crime são dotadas de tipicidade, constituindo modelos jurídico-penais. A sua estrutura típica não participa daquela do tipo
incriminador, estando à volta do tipo principal como elementos típicos-satélites, a colorir o fato típico de maior ou menor ilicitude e⁄ou a transfundir ao agente maior ou menor culpa jurídico-penal. (Dosimetria da pena: causas de aumento e diminuição. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 48)
O mesmo doutrinador, relativamente às particularidades da causa de aumento em testilha, ensina:
Outro tanto sucede no delito de roubo. O aumento de pena de um terço até metade em decorrência do emprego de arma (art. 157, § 2.º, I, do Código Penal), do concurso de duas ou mais pessoas (art. 157, § 2.º, II), ou do fato de a vítima estar em serviço de transporte (art. 157, § 2.º, III) decorre da maior lesividade ao bem juridicamente tutelado (patrimônio e a integridade física e a liberdade da pessoa). Com a utilização da arma recrudesce-se o constrangimento e violência moral e física, o que sucede também com o concurso de duas ou mais pessoas. (Op. cit, p. 136).
Em relação ao exame de corpo de delito, confira-se o magistério do Professor Titular da Faculdade de Direito da USP, Vicente Greco Filho, acerca dos cuidados que devem ser tomados para que possa ser viabilizada a sua escorreita substituição:
Para que a substituição do exame de corpo de delito pela prova testemunhal possa ocorrer validamente, porém, é preciso que o desaparecimento dos vestígios seja decorrente de causas não-imputáveis aos órgãos de persecução penal.
O exemplo clássico do corpo de delito indireto é o do homicídio com o corpo jogado ao mar, não sendo possível o exame necroscópico.
Se, porém, os vestígios desapareceram em virtude da inércia, inclusive a burocrática, dos órgãos policiais ou judiciais, a menor segurança da prova testemunha não pode ser carreada ao acusado. Assim, se a vítima de um um furto com arrombamento, cansada de esperar a visita dos peritos, manda consertar a janela arrombada e, por ocasião do exame, não se constatam mais vestígios, a prova testemunhal não pode suprir a falta da perícia. (Manual de processo penal. 4. ed. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 222).
Portanto, somente quando, por razões alheias à vontade das autoridades, for absolutamente impossível proceder-se à perícia é que se promove o exame de corpo de delito indireto, ou, na sua falta, mediante prova testemunhal. Já no tocante à perícia no instrumento do crime, inexiste previsão normativa das referidas providências supletivas, o que torna mais difícil ainda aceitar um laudo indireto ou a avaliação de lesividade da arma pelo simples (e atécnico) olhar da vítima ou de testemunhas.
Neste passo, penso ser importante precisar qual é o bem jurídico objeto de tutela por meio da tipificação do roubo. Cuida-se de delito inserido no catálogo daqueles contra o patrimônio. Todavia, revela-se crime complexo, dado que contempla, ainda, a proteção da liberdade (mediante a elementar grave ameaça ) e⁄ou da integridade física (com a inclusão do termo violência ).
É de se concentrar, para os fins de deslinde do presente feito, na combinação da subtração com a grave ameaça . Esta última pode ser exercida de vários modos, como a utilização, verbi gratia, de formulações verbais, que incutem no sujeito passivo o receio de mal grave e futuro. Também é possível a utilização de gestual, pelo qual se vença a resistência do ofendido, que, resignado, entrega o objeto material.
Além da figura prevista no caput, o legislador serviu-se, para proteger de maneira mais efetiva os valores em questão, de um rol de majorantes no seio do parágrafo segundo do artigo 157 do Código Penal. Assim, caso o roubador empregue, por exemplo, um revólver, tem-se uma ameaça com maior poder vulnerante. Daí apenar-se de modo mais intenso, porquanto há claro risco para a integridade física da vítima, visto que o agente pode vir a concretizar o mal, caso a vítima não contribua para o sucesso delitivo.
Com este mesmo raciocínio, em atenção ao cânone constitucional da ofensividade, esta colenda Terceira Seção revogou a Súmula n. 174, desta Corte. O fator preponderante que levou à alteração do norte jurisprudencial foi a modificação no critério, passou-se de um exame subjetivo para um objetivo. Então, em sintonia com o princípio da exclusiva tutela de bens jurídicos, imanente ao Direito Penal do fato, próprio do Estado Democrático de Direito, a tônica hermenêutica passou a recair sobre a afetação do bem jurídico. Assim, reconheceu-se que o emprego de arma de brinquedo não representava maior risco para a integridade física da vítima; tão só gerava temor nesta, ou seja, revelava apenas fato ensejador da elementar "grave ameaça".
Do mesmo modo, não se pode incrementar a pena de forma desconectada da tutela do bem jurídico ao se enfrentar a hipótese em exame. Pontue-se:
(I) Sem a apreensão, como seria possível dizer que a arma do paciente não era de brinquedo ou se encontrava desmuniciada?
(II) Sem a perícia, como seria possível dizer que a arma do paciente não estava danificada?
Assim, por entender tratar-se o emprego de arma de fogo de circunstância objetiva, em meu sentir, é imperiosa a prévia demonstração da indenidade do mecanismo lesivo, o que somente se viabiliza mediante sua apreensão e conseqüente elaboração do exame pericial.
Ressalto, todavia, que a matéria foi objeto de deliberação pela Terceira Seção desta Corte, a quem compete uniformizar a jurisprudência em matéria penal, na sessão do dia 13.12.2010, no julgamento do EREsp n.º 961.863⁄RS, de relatoria do Desembargador Convocado Celso Limongi. Em tal ocasião, fiquei vencida no ponto, prevalecendo a compreensão de ser prescindível a apreensão e a perícia da arma para a incidência da majorante, impondo-se a verificação, caso a caso, da existência de outras provas que atestem a utilização do instrumento.
Dessarte, em respeito à própria missão desta Corte Superior de Justiça de assegurar a uniformidade na interpretação das normas infraconstitucionais, acato o entendimento firmado pela egrégia Terceira Seção, embora ressalvando meu ponto de vista, e passo à análise do caso concreto.
O Juiz de Direito da Oitava Vara Criminal de São Paulo, no bojo do édito condenatório, asseverou (fl. 22):
[...] Por outro lado, afasto o emprego de arma de fogo. O laudo apresentado demonstra que a arma era inapta a ser utilizada. Assim, não houve risco à vida da vítima, argumento majoritário para a aceitação da majorante.
A Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por seu turno, deu provimento ao apelo do Ministério Público, com base na seguinte fundamentação (fl. 32):
As qualificadoras também restaram comprovadas, de sorte que a pretensão do Ministério Público deve ser acolhida. Se o testemunho da vítima tem força bastante para a confirmação da autoria e da materialidade do delito, com mais razão deve ser aceito para o reconhecimento das causas de aumento incidentes (emprego de arma e concurso de agentes). [...] Quanto à qualificadora do emprego de arma, ainda que a perícia tenha atestado ser a arma apreendida inapta à realização de disparos (folhas 54⁄56), o fato é que a vítima ficou sobremaneira intimidada e atemorizada pelo seu emprego, tanto que não reagiu, tudo a autorizar o reconhecimento da majorante. O que importa nesse campo é a verificação do resultado, isto é, se o objeto apresentado à vítima como sendo uma arma incutiu nela temor impeditivo de qualquer resistência, hipótese verificada, à saciedade, nos autos.
No presente habeas corpus, o conjunto probatório coligido aos autos destaca a inidoneidade da arma de fogo por meio da prova pericial (fl. 22 da sentença).
Nesse contexto, a utilização de arma inidônea, como forma de intimidar a vítima do delito de roubo, caracteriza a elementar grave ameaça, porém, não permite o reconhecimento da majorante de pena, o qual está vinculado ao potencial lesivo do instrumento, pericialmente comprovado como ausente no caso, dada a sua ineficácia para a realização de disparos.
A propósito, o seguinte precedente:
CRIMINAL. HABEAS CORPUS. ROUBO DUPLAMENTE CIRCUNSTANCIADO. REINCIDÊNCIA NÃO EVIDENCIADA. PACIENTE QUE PRATICOU O DELITO ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO ANTERIOR. EMPREGO DE ARMA DE FOGO. CAUSA DE AUMENTO DE PENA. ARMA DEFEITUOSA. CONSTATAÇÃO POR PERÍCIA. AUSÊNCIA DE POTENCIALIDADE LESIVA. MAJORANTE NÃO CARACTERIZADA. REGIME FECHADO. FIXAÇÃO COM ESTEIO NA GRAVIDADE GENÉRICA DO DELITO. PENA-BASE FIXADA NO MÍNIMO LEGAL. ORDEM CONCEDIDA.
I. Hipótese na qual o paciente foi condenado pela prática de roubo simples, sendo-lhe concedido o direito de descontar a reprimenda em regime aberto, assim como de aguardar o julgamento do apelo em liberdade.
II. Colegiado de origem que reformando o édito condenatório, reconheceu a reincidência do réu, bem como a incidência da causa de aumento de pena relativa ao emprego de arma de fogo, tendo, ainda, imposto o regime inicialmente fechado para o desconto da reprimenda.
III. Diante da comprovada ausência de potencialidade lesiva da arma empregada no roubo, atestada em laudo pericial, mostra-se indevida a imposição da causa de aumento de pena prevista no inciso I do § 2º, do art. 157 do CP.
IV. A condenação anterior considerada para fins de reincidência que transitou em julgado após o cometimento do delito objeto do presente writ, afastando, assim, a incidência do art. 63 do CP.
V. A gravidade abstrata do delito perpetrado que não se presta a fundamentar o regime prisional mais severo, em especial quando a pena-base foi fixada no mínimo legal, tendo as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal sido favoravelmente sopesadas (Súmula⁄STJ nº 440).
VI. Deve ser concedida a ordem a fim de anular o acórdão proferido pelo Tribunal de origem, restabelecendo-se a sentença condenatória da lavra do Juízo da 12ª Vara Criminal de São Paulo.
VII. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator. (HC 190.313⁄SP, Relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, DJe de 04.04.2011.)
Feitas tais considerações, passa-se ao cálculo da pena a ser aplicada em desfavor do paciente.
A pena-base, fixada no mínimo lega - 04 (quatro) anos -, foi exasperada de 3⁄8 (três oitavos), em face das causas de aumento previstas no art. 157, § 2º, incisos I e II, do Código Penal, perfazendo 05 (cinco) anos e 06 (seis) meses de reclusão. Afastada a majorante pelo emprego de arma de fogo e aplicada a fração mínima de 1⁄3 (um terço), a pena privativa de liberdade deve ser diminuída à 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, mais 13 (treze) dias-multa.
Relativamente ao pedido de modificação do regime inicial de cumprimento de pena, também assiste razão ao impetrante. Isso porque, não se mostra idônea a imposição de regime mais gravoso quando, considerando a primariedade do réu e o fato de as circunstâncias judiciais não lhe serem desfavoráveis, o tanto o Juiz quanto o Tribunal de Justiça fixaram a pena-base no mínimo. Já me manifestei sobre o tema, redigindo esta ementa:
PENAL. HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. EMPREGO DE ARMA DE FOGO. ARTEFATO DE BRINQUEDO. AFASTAMENTO DA CAUSA DE AUMENTO. REGIME INICIAL FECHADO. PENA-BASE. MÍNIMO LEGAL. FUNDAMENTAÇÃO. GRAVIDADE ABSTRATA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS FAVORÁVEIS. DIREITO AO REGIME MENOS GRAVOSO. SÚMULAS 718 E 719 DO STF E SÚMULA 440 DO STJ. ORDEM CONCEDIDA.
1. O enunciado n.º 174 da Súmula deste Sodalício permitia o maior rigor punitivo no roubo, quando do emprego de arma de brinquedo. No entanto, o referido verbete sumular foi revogado no julgamento do Recurso Especial n.º 213.054⁄SP, na sessão de 24.10.01, da Terceira Seção, deste Superior Tribunal de Justiça.
2. É pacífico, nesta Corte Superior, o entendimento de que não incide a causa de aumento de pena prevista no art. 157, § 2º, I, do Código Penal, quando a arma é de brinquedo.
3. Não é possível a imposição de regime mais severo que aquele fixado em lei com base apenas na gravidade abstrata do delito.
4. Para exasperação do regime fixado em lei é necessária motivação idônea. Súmulas 718 e 719 do Supremo Tribunal Federal e Súmula n.º 440 deste Superior Tribunal de Justiça. 5. Ordem concedida para afastar a causa de aumento de pena prevista no inciso I do § 2º do art. 157 do Código Penal e fixar o regime semiaberto para o início do cumprimento da reprimenda, restabelecendo a sentença condenatória. (HC 167.525⁄SP, de minha relatoria, Sexta Turma, DJe de 04.05.2011.)
In casu, aplicam-se os verbetes sumulares, a seguir transcritos:
Fixada a pena-base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da sanção imposta, com base apenas na gravidade abstrata do delito. (Súmula⁄STJ nº 440)
A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada. (Súmula⁄STF n.º 718)
A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea. (Súmula⁄STF n.º 719)
Confiram-se, a propósito, acórdãos proferidos pela Sexta e Quinta Turmas desta Corte:
HABEAS CORPUS. PENAL. ROUBO. SENTENÇA CONDENATÓRIA. FRAGILIDADE DO CONJUNTO PROBATÓRIO. NECESSIDADE DE ANÁLISE E VALORAÇÃO DE PROVA. INCOMPATIBILIDADE COM A VIA ELEITA. REGIME INICIAL MAIS SEVERO PARA O INÍCIO DO CUMPRIMENTO DA PENA. DECISÃO FUNDAMENTADA APENAS NA GRAVIDADE GENÉRICA DO DELITO. SÚMULA 718⁄STF. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.
1. Alegações de fragilidade do conjunto probatório coligido em desfavor do paciente demandam, inexoravelmente, apreciação e valoração de matéria fático-probatória, vedadas nesta via. Precedentes.
2. Nos termos da Súmula 718⁄STF, 'A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para a imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada'.
3. Na hipótese, a fixação pelo Tribunal a quo do regime inicial fechado pela prática do crime de roubo na forma tentada, com base apenas na gravidade genérica do delito, constitui constrangimento ilegal, por inobservância do disposto no art. 33, § 2º, alínea c, do referido diploma legal.
4. Fixada a pena-base no mínimo legal, a aplicação de regime prisional mais gravoso para o início do cumprimento da reprimenda atenta contra o art. 33, § 3º, do referido diploma legal.
5. Ordem parcialmente concedida a fim de fixar o regime aberto para o início do cumprimento da reprimenda. (HC 55.808⁄PB, Relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, DJ de 19.06.2006.)
PENAL E PROCESSUAL. ROUBO QUALIFICADO. PENA FIXADA NO MÍNIMO LEGAL. REGIME FECHADO. RÉU PRIMÁRIO. BONS ANTECEDENTES. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS FAVORÁVEIS. REGIME DE CUMPRIMENTO MODIFICADO PARA O SEMI-ABERTO. CONCESSÃO DA ORDEM.
O regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade deve considerar, além da quantidade da pena aplicada (§ 2º do art. 33 do CP), as condições pessoais do réu (§ 3º do art. 33 c⁄c art. 59 do CP), sendo vedado, em regra, avaliar apenas a gravidade abstrata do crime. Afirmadas favoráveis as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, incabível a imposição de regime inicial fechado, quando a lei permite regime mais benéfico, sem fundamentação objetivamente motivada. A gravidade do crime de roubo, em si mesma, não é capaz de determinar a imposição do regime inicial fechado, posto que ínsita ao tipo penal. 'A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea.' (Súmula 719 do STF) Ordem CONCEDIDA para estabelecer o regime semi-aberto. (HC 52.535⁄RJ, Relator Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, DJ de 25.09.2006.)
Além disso, entendo que a gravidade – fundamento da sentença e do acórdão guerreado – não é suficiente para o agravamento do regime, porquanto a violência é elementar do tipo e já foi considerada pelo legislador quando da cominação das penas previstas para o crime de roubo.
Enfim, sendo o paciente primário e sem antecedentes, se fixada a pena básica no mínimo legal e se não ultrapassa 08 (oito) anos de reclusão a pena final, o regime legalmente adequado é o intermediário.
Ante o exposto, acolhido o parecer ministerial, concedo a ordem a fim de afastar a causa de aumento prevista no art. 157, § 2º, inciso I, do Código Penal e reduzir a pena privativa de liberdade à 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, a ser cumprida inicialmente no regime semiaberto, mais 13 (treze) dias-multa.
É como voto.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
SEXTA TURMA
Número Registro: 2011⁄0050152-7 |
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HC 199.570 ⁄ SP |
MATÉRIA CRIMINAL |
Números Origem: 4592010 50100198520 990103414470
EM MESA |
JULGADO: 21⁄06⁄2011 |
Relatora
Exma. Sra. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA
Presidente da Sessão
Exma. Sra. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. MOACIR MENDES DE SOUSA
Secretário
Bel. ELISEU AUGUSTO NUNES DE SANTANA
AUTUAÇÃO
IMPETRANTE |
: |
JULIANA PASCUTTI FERREIRA DE OLIVEIRA - DEFENSORA PÚBLICA |
IMPETRADO |
: |
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO |
PACIENTE |
: |
D. E. DE L. |
ASSUNTO: DIREITO PENAL - Crimes contra o Patrimônio - Roubo Majorado
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia SEXTA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:
"A Turma, por unanimidade, concedeu a ordem de habeas corpus, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora."
Os Srs. Ministros Og Fernandes, Sebastião Reis Júnior, Vasco Della Giustina (Desembargador convocado do TJ⁄RS) e Haroldo Rodrigues (Desembargador convocado do TJ⁄CE) votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
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