AP 602/SC*
RELATOR: Min. Celso de Mello
EMENTA: EXCEÇÃO DA VERDADE OPOSTA A DEPUTADO FEDERAL. CRIME DE CALÚNIA. DISCIPLINA RITUAL DA “EXCEPTIO VERITATIS” NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PROCESSO PREMATURAMENTE ENCAMINHADO AO STF. DEVOLUÇÃO AO JUÍZO DE ORIGEM. EXCEÇÃO DA VERDADE NÃO CONHECIDA.
- A exceção da verdade, quando deduzida nos crimes contra a honra que autorizam a sua oposição, deve ser admitida, processada e julgada, ordinariamente, pelo juízo competente para apreciar a ação penal condenatória.
- Tratando-se, no entanto, de “exceptio veritatis” deduzida contra pessoa que dispõe, “ratione muneris”, de prerrogativa de foro perante o STF (CF, art. 102, I, “b” e “c”), a atribuição da Suprema Corte restringir-se-á, unicamente, ao julgamento da referida exceção, não assistindo, a este Tribunal, competência para admiti-la, para processá-la ou, sequer, para instruí-la, razão pela qual os atos de dilação probatória pertinentes a esse procedimento incidental deverão ser promovidos na instância ordinária competente para apreciar a causa principal (ação penal condenatória). Precedentes. Doutrina.
DECISÃO: Observo que o ilustre magistrado processante não só deixou de efetuar controle de admissibilidade sobre a exceção da verdade oposta pelo querelado ao querelante, que é Deputado Federal, mas, também, sequer procedeu à instrução probatória dessa verdadeira ação declaratória incidental, o que faz incidir, na espécie, a jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria:
“A formalização da ‘exceptio veritatis’, contra aquele que goza de prerrogativa de foro ‘ratione muneris’ perante o Supremo Tribunal Federal, desloca, para esta instância jurisdicional, somente o julgamento da exceção oposta.
Para esse efeito, impõe-se que a exceção da verdade, de competência do Supremo Tribunal Federal, seja previamente submetida a juízo de admissibilidade que se situa na instância ordinária. Resultando positivo esse juízo de admissibilidade, a ‘exceptio veritatis’ deverá ser processada perante o órgão judiciário inferior, que nela promoverá a instrução probatória pertinente, eis que a esta Corte cabe, tão-somente, o julgamento dessa verdadeira ação declaratória incidental.
A competência do Supremo Tribunal Federal para o julgamento da exceção da verdade resume-se, na linha da jurisprudência desta Corte, aos casos em que a ‘demonstratio veri’ disser respeito ao delito de calúnia, no qual se destaca, como elemento essencial do tipo, a imputação de fato determinado revestido de caráter delituoso (...).”
(RTJ 152/12-13, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Como se sabe, deduzida a exceção da verdade, e após admitida, instaura-se, em seu âmbito, a pertinente dilação probatória. A exceção, por qualificar-se como meio de defesa, confere, ao réu (excipiente), o direito de provar a veracidade da imputação por ele feita à vítima, quer se trate do crime de calúnia, quer se cuide, excepcionalmente, do delito de difamação, desde que, nesta última hipótese, o ofendido seja funcionário público e a ofensa refira-se ao exercício da atividade funcional (RT 615/258).
A exceção da verdade - que constitui inequívoco meio de defesa -, quando deduzida nos crimes contra a honra que autorizam a sua oposição, deve ser admitida, processada e julgada, ordinariamente, pelo juízo competente para apreciar a ação penal condenatória.
Tratando-se, no entanto, de exceção da verdade oposta a pessoa que dispõe, “ratione muneris”, como ocorre com os congressistas, de prerrogativa de foro, “a competência para o julgamento da exceção da verdade é do Tribunal competente para julgar a pessoa com tal prerrogativa”, eis que somente esse Tribunal - o Supremo Tribunal Federal, no caso - pode proclamar haver “o querelante praticado infração penal ou fato desonroso no desempenho de suas funções” (JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 1.124, 7ª ed., l999, Atlas).
Vê-se, portanto, presente o contexto desta causa, que a competência do Supremo Tribunal Federal, na espécie, limita-se, unicamente, ao julgamento da exceção da verdade, não lhe cabendo, em conseqüência, admitir e processar a “exceptio veritatis”, nem praticar os atos de dilação probatória pertinentes a esse procedimento incidental.
Na realidade, “A exceção da verdade, de competência do STF, há de submeter-se, antes, a juízo de admissibilidade e a processo, que se situam na instância ordinária” (RT 578/403 - grifei).
Impende assinalar, ainda, por necessário, que os atos de instrução probatória pertinentes à “exceptio veritatis” deverão efetivar-se com observância da cláusula constitucional do “due process of Law”, assegurando-se, aos sujeitos processuais, em conseqüência, o respeito à garantia do contraditório (RTJ 85/367 - RT 621/328), eis que, consoante adverte JULIO FABBRINI MIRABETE (Código de Processo Penal Interpretado”, p. 1.123, 7ª ed., l999, Atlas), “Sendo uma exceção, e em decorrência de suas conseqüências com relação à pessoa da vítima, a exceção da verdade é submetida ao contraditório, não podendo o juiz reconhecê-la sem a observância das regras estipuladas na lei” (grifei).
Esse entendimento - que reflete o magistério doutrinário sobre o tema ora em análise (FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “Processo Penal” vol. 4/152, item n. l3, 11ª ed. 1989, Saraiva; VICENTE GRECO FILHO, “Manual de Processo Penal”, p. 386-387, l991, Saraiva; MAGALHÃES NORONHA, “Curso de Direito Processual Penal”, p. 303, item n. 164, 19ª ed., l989, Saraiva; EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, “Código de Processo Penal Brasileiro Anotado”, vol. V/222-223, item n. 1.008, 2ª ed., l946, Freitas Bastos, v.g.) - projeta-se, por igual, na jurisprudência dos Tribunais (RT 520/485 - RT 542/373-374 – RT 621/328), inclusive na desta Suprema Corte:
“A ‘exceptio veritatis’ constitui ação declaratória incidental destinada, em sua precípua função jurídico-material, a viabilizar ‘a prova da veracidade do fato imputado’. Tem pertinência nos processos penais condenatórios instaurados pela prática do delito de calúnia. É igualmente admissível - não obstante o caráter mais limitado de sua formulação - nos procedimentos persecutórios que tenham por objeto o crime de difamação. Neste caso, porém, a exceção da verdade somente se admitirá se o ofendido for agente público e a imputação difamatória disser respeito ao exercício de suas atividades funcionais.
Com a formalização da ‘exceptio veritatis’, instauram-se relações processuais regidas pelo princípio do contraditório, incumbindo, o ‘onus probandi’, exclusivamente, ao próprio excipiente. A este compete, em conseqüência, fazer a prova de suas alegações. O ônus da adequada instrução probatória, no procedimento incidental da ‘exceptio veritatis’, pertence ao próprio excipiente, a quem se aplicam as normas relativas à disciplina legal da prova. Demonstrada a veracidade do fato delituoso imputado a terceiro, restará descaracterizado, no plano da tipicidade penal, o próprio delito de calúnia.
O eventual estado de dúvida referente à falsidade das imputações caluniosas deve ser desfeito mediante atividade probatória plenamente desenvolvida por iniciativa dos excipientes. Se estes não conseguem, por falta de melhor diligência, demonstrar a veracidade das alegações, impõe-se a rejeição da ‘exceptio veritatis’, prevalecendo, em conseqüência, a presunção ‘juris tantum’ de falsidade, que é inerente à figura da calúnia (...).”
(RTJ 145/546, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Em suma: a competência penal originária do Supremo Tribunal Federal restringir-se-á, na espécie destes autos, apenas ao julgamento da “demonstratio veri” concernente ao delito de calúnia.
Assim sendo, determino a devolução destes autos ao órgão judiciário de origem (Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal da comarca de Joinville/SC), a fim de que lá seja processada a exceção da verdade deduzida pelo querelado.
Somente após realizados os atos de instrução probatória referentes à “exceptio veritatis”, justificar-se-á, então, o encaminhamento deste processo incidental ao Supremo Tribunal Federal, para o efeito exclusivo de julgamento da exceção oposta e, assim mesmo, apenas no que concerne ao delito de calúnia atribuído ao ora excipiente (RTJ 68/316 - RTJ 149/32-33 - RTJ 152/12-13).
Desse modo, e em face das razões expostas, não conheço da presente exceção da verdade, que foi prematuramente encaminhada ao Supremo Tribunal Federal.
Publique-se.
Brasília, 1º de julho de 2011.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
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