ADI 4663 Referendo-MC/RO*
RELATOR: Min. Luiz Fux
Voto: Conheço da presente ação direta, já que ajuizada por agente dotado de legitimidade ativa ad causam nos termos do art. 103, V, da Constituição Federal. Além disso, destaco que a admissibilidade de impugnação, em sede de controle abstrato, de leis orçamentárias foi reconhecida por este Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIn nº 4.048-MC/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes. Muito embora naquela hipótese estivesse em pauta lei de abertura de crédito extraordinário, de conteúdo diverso, portanto, da Lei de Diretrizes Orçamentárias ora examinada, não parece haver qualquer consequência digna de relevo, para esse fim, fundada na distinção entre os dois diplomas, já que no citado precedente operou-se a virada na tradicional jurisprudência desta Corte para assentar a plena “possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade”. Concretizando essa nova orientação, a admissibilidade de ADIn especificamente contra Lei de Diretrizes Orçamentárias foi assentada pelo Plenário deste Supremo Tribunal Federal no julgamento da medida cautelar na ADIn nº 3.949/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, superando-se os precedentes até então proferidos na ADIn nº 2.484-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 19/12/2001, e na ADIn nº 2.535-MC, Rel. Min. Sepulveda Pertence, j. em 19/12/2001.
No mérito, porém, entendo que a argumentação do autor se revela apenas parcialmente procedente.
A controvérsia dos autos reclama a análise do papel desempenhado pela Lei de Diretrizes Orçamentárias na Constituição Federal de 1988. Como se sabe, o sistema orçamentário constitucional estabelece o convívio harmonioso de três diplomas legislativos da mais alta significação, todos de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo (CF, Art. 165, caput e incisos I a III): (i) o plano plurianual, (ii) a lei de diretrizes orçamentárias e (iii) a lei orçamentária anual. O fio condutor que une teleologicamente tais atos normativos, e que inspirou o constituinte de 1988 notadamente à luz do exemplo alemão (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, Vol. V – O orçamento na Constituição, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2008, p. 78), consiste na busca pelo planejamento e pela programação na atividade financeira do Estado, de modo a concretizar os princípios da economicidade e da eficiência na obtenção de receitas e na realização das despesas públicas, indispensáveis à satisfação dos interesses sociais por uma Administração Pública guiada pelo moderno paradigma do resultado (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro paradigmas do direito administrativo pós-moderno – legitimidade, finalidade, eficiência, resultados, Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2008, p. 123 e segs.).
Assim, previu o constituinte, em primeiro lugar, a necessidade de edição de um plano plurianual, com vigência de quatro anos não coincidente com o mandato presidencial (ADCT, art. 35, § 2º, I), no qual devem ser estabelecidas as diretrizes, objetivos e metas da administração pública para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada (CF, art. 165, § 1º).
A busca pelo planejamento é concretizada, na sequência, pela edição da Lei de Diretrizes Orçamentárias, que, observando-se o prazo para devolução do respectivo projeto, pelo Legislativo, à sanção, fixado no art. 35, § 2º, II, do ADCT, tem por função precípua – mas não única, ressalte-se – orientar a elaboração da lei orçamentária anual. Deve, para tanto, compreender as metas e prioridades da administração pública, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, dispondo sobre as alterações na legislação tributária e estabelecendo a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento (CF, Art. 165, § 2º). Paralelamente, também cabe à referida espécie normativa o papel enunciado pelo art. 169, § 1º, II, da Constituição, que condiciona a criação de determinadas despesas da Administração Pública à “autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias”. Foi com base nesse pano de fundo, portanto, que esta Suprema Corte assentou, no julgamento da Questão de Ordem na ADIn nº 612/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, que a Lei de Diretrizes Orçamentárias “constitui um dos mais importantes instrumentos normativos do novo sistema orçamentário brasileiro”.
Com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal – LC nº 101/00 –, incrementou-se ainda mais o papel da Lei de Diretrizes Orçamentárias, já que o art. 4º daquela lei complementar nacional definiu caber à LDO, agora integrada também pelo Anexo de Metas Fiscais e pelo Anexo de Riscos Fiscais (§§ 1º a 3º), dispor sobre equilíbrio de receitas e despesas, critérios e formas de limitação de empenho nas hipóteses ali especificadas, normas relativas ao controle de custos e à avaliação dos resultados dos programas financiados com recursos dos orçamentos, e, por fim, demais condições e exigências para transferências de recursos a entidades públicas e privadas (Art. 4º, I, ‘a’, ‘b’, ‘e’ e ‘f’, da LRF).
Por fim, o complexo sistema orçamentário da Constituição Federal de 1988 é encerrado com a lei orçamentária anual, que deve compreender, sempre em estrita consonância com o plano plurianual e com a Lei de Diretrizes Orçamentárias (CF, art. 165, § 7º), as vertentes do orçamento fiscal, de investimento e da seguridade social (CF, art. 165, § 5º, incs. I a III), acompanhados de “demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia” (CF, art. 165, § 6º).
Pois bem. O primeiro ponto suscitado pelo autor na presente ação direta de inconstitucionalidade diz respeito à redação conferida por emenda parlamentar ao inc. XIII do art. 3º da Lei de Diretrizes Orçamentárias de Rondônia – Lei nº 2.507/11 –, que, supostamente, teria desequilibrado a harmonia que deve presidir o relacionamento entre os poderes políticos (CF, Art. 2º). Eis a redação do dispositivo:
Redação original
Art. 3°. (...)
XIII – Garantir que os Poderes sejam fortes e integrados com a sociedade que representam, com foco no exercício da cidadania através da conscientização do Povo de Rondônia, dotando-os de recursos materiais e humanos necessários ao cumprimento eficiente de suas funções.
Redação após emenda parlamentar
Art. 3°. (…)
XIII – Garantir um Poder Legislativo forte e integrado com a sociedade que representa, com foco no exercício da cidadania através da conscientização do Povo de Rondônia.
Ressoa claro, no entanto, o viés retórico atribuído ao texto normativo pelo Parlamento. Em última análise, o que pretendeu a Assembleia Legislativa estadual, com a modificação introduzida, foi apenas expressar solenemente o sentido moderno da democracia representativa, revelando a conexão ínsita entre os mandatários políticos e a sociedade representada. Se, por certo, não só o Poder Legislativo busca raízes de legitimidade no povo, já que, como afirma a Constituição Federal de 1988, é deste último que todo o poder emana (CF, art. 1º, parágrafo único), nem por isso se pode ignorar que cabe ao Parlamento, na lógica que perpassa a tripartição dos poderes, a primazia no papel de caixa de ressonância da vontade popular, derivada (i) da forma de provimento de seus cargos pela via do batismo democrático e, simultaneamente, (ii) da composição plúrima a espelhar os diversos segmentos da sociedade.
Em outras palavras, a redação que ao final se atribuiu ao inc. XIII do art. 3º da Lei impugnada limitou-se a proclamar o papel central do Legislativo na democracia representativa, sem que daí se possa extrair qualquer consequência de ordem jurídica. Neste cenário, o alegado risco de fortalecimento do Poder Legislativo não supera, a rigor, o mero plano da retórica, notadamente porque o dispositivo referido não impõe ao Chefe do Poder Executivo qualquer espécie de conduta que de fato privilegie a Assembleia Estadual na execução orçamentária. Não havendo, assim, perspectiva de concentração de poder ou de que se enseje um cenário propício à prática de arbitrariedades, descabe falar em ofensa ao princípio da Separação de Poderes, razão pela qual rejeito o vício de inconstitucionalidade alegado com relação ao art. 3º, inc. XIII, da LDO de Rondônia.
Passa-se algo diverso, contudo, no que concerne ao inc. XVII do referido art. 3º. Assim dispõe a norma impugnada, verbis:
Dispositivo acrescentado por emenda parlamentar
Art. 3°. (…)
XVII - Garantir a aplicação dos recursos das emendas parlamentares ao orçamento estadual, das quais, os seus objetivos passam a integrar as metas e prioridades estabelecidas nesta Lei.
Nos limites cognitivos próprios à sede cautelar, entendo que o dispositivo padece de inconstitucionalidade à luz do princípio da Separação de Poderes (CF, art. 2º) e da teleologia que inspira o art. 165, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal.
Com efeito, e na linha do que se afirmou mais acima, ao plano plurianual e à lei de diretrizes orçamentárias compete a fixação de “metas e prioridades da administração pública”, restringindo-se o domínio do primeiro àquelas relacionadas às “despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada” (OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 386), nos termos do art. 165, §§ 1º e 2º, da Constituição Federal, de modo a orientarem a elaboração e a execução da lei orçamentária anual à luz do necessário planejamento.
Neste cenário, tolerar, como faz a Lei do Estado de Rondônia, que o Poder Legislativo simplesmente afirme que qualquer decisão casuística que venha a ser por ele tomada, no futuro, ao tempo da deliberação sobre as emendas ao projeto de Lei Orçamentária anual, seja tocada, automaticamente, pelo regime especial das “metas e prioridades da Administração Pública” representaria, em última análise, a frustração do propósito da Constituição, esvaziando as regras dos §§ 1º e 2º do art. 165 do texto constitucional com a chancela de uma espécie de renúncia de planejamento, em prol de regime de preferência absoluta das decisões do Legislativo.
Sabe-se, por certo, que as Leis de Diretrizes Orçamentárias não gozam de força normativa suficiente a ensejar o nascimento de direitos subjetivos a eventuais interessados na concretização das políticas públicas nela enunciadas, de vez que, como já assentado pela jurisprudência desta Corte, “a previsão de despesa, em lei orçamentária, não gera direito subjetivo a ser assegurado por via judicial” (AR 929, Relator(a): Min. RODRIGUES ALCKMIN, TRIBUNAL PLENO, julgado em 25/02/1976, RTJ VOL-00078- 02 PP-00339). A moderna teoria do direito constitucional, porém, tem ressaltado que as virtualidades da Constituição, inspirada na pretensão de disciplinar o fenômeno político, não podem ser reduzidas exclusivamente ao domínio judicial, cabendo falar em interpretação constitucional realizada pelo legislador e pelo administrador, aos quais se deve reconhecer também papel fundamental na concretização do conteúdo das normas constitucionais (CHEMERINSKY, Erwin. Constitucional law – principles and policies, New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2011, pp. 26-30, mais especialmente à p. 28). Assim, a inexistência de repressão judicial não reduz à insignificância o dever de fidelidade, para a elaboração da lei orçamentária anual, ao planejamento delineado no plano plurianual e na lei de diretrizes orçamentárias, cujo controle deve permanecer a cargo dos agentes políticos dos Poderes Legislativo e Executivo no exercício de suas funções, em hipótese exemplar de diálogo institucional entre os poderes políticos.
Portanto, ausente a programação e o planejamento inerentes à elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias, a outorga desse status especial de maneira uniforme e invariável perde a respectiva razão subjacente, sobretudo por não ser possível apontar qualquer distinção de relevo, para esse fim, entre as decisões políticas advindas de emendas parlamentares à Lei Orçamentária Anual e, de outro lado, as decisões políticas similares tomadas pelo Poder Executivo ao encaminhar o respectivo projeto de Lei no exercício da reserva de iniciativa prevista no art. 165, III, da Constituição.
É que, à luz da necessária harmonia entre os poderes políticos (CF, Art. 2º), todas as normas previstas na versão promulgada da lei orçamentária anual, sejam elas emanadas da proposta do Poder Executivo ou de emenda apresentada pelo Poder Legislativo, devem ser observadas com o mesmo grau de vinculação pela Administração Pública. Tradicionalmente, sempre reputou a doutrina financista que o orçamento consubstanciava mera norma autorizativa de gastos públicos, sem qualquer pretensão impositiva. Afirma-se, assim, que ainda “hoje a Administração continua com a palavra final para (…) contingenciar dotações orçamentárias”, de modo que nada obrigaria o Chefe do Poder Executivo a realizar as despesas previstas no orçamento (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, Vol. V – O orçamento na Constituição, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2008, p. 457-8 e 128).
Novas vozes, porém, inspiradas nos princípios da Separação de Poderes (CF, art. 2º), da legalidade orçamentária (CF, art. 165, caput e inc. I a III) e da democracia (CF, art. 1º, caput), têm apontado para a necessidade de se conferir força vinculante ao orçamento público, como forma de reduzir o incontrastável arbítrio do Poder Executivo em prol da imposição de um dever relativo – e não verdadeiramente absoluto, saliente-se – de observância das normas do orçamento anual. Confira-se, sobre o tema, a preciosa lição de Eduardo Bastos Furtado de Mendonça, em obra que corresponde à dissertação defendida no Programa de Mestrado em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) sob a orientação do Professor Luís Roberto Barroso, verbis:
“IV. Os problemas da prática brasileira atual
(…) apesar de todas as limitações referidas acima, o processo orçamentário poderia ter, pelo menos, a importância de expor à crítica pública as decisões sobre o emprego dos recursos públicos. Contudo, nem isso ocorre, uma vez que as decisões expostas não correspondem às reais. A tese de que o orçamento é meramente autorizativo – que não decorre expressamente de nenhum enunciado normativo – faz com que o Poder Executivo possa liberar as verbas previstas na medida da sua discrição. Algumas despesas são tidas como obrigatórias, mas não por estarem no orçamento, e sim por decorrerem da Constituição ou de outras leis. As decisões efetivamente produzidas no orçamento não decidem de fato, admitindo-se que o Executivo possa redecidir tudo e seguir uma pauta própria de prioridades. E tudo isso sem nem mesmo estar obrigado a motivar as novas escolhas.
Essa constatação já seria suficientemente grave, mas pode ser piorada. O poder conferido pelo orçamento autorizativo não é o de gastar em atividade diversa da prevista. É apenas o poder de não agir, o poder de não fazer nada. Para remanejar recursos entre opções de gasto, a Constituição instituiu um procedimento formal, exigindo o manejo de créditos adicionais. Assim, o que o orçamento autorizativo permite, na prática, é a inércia. Essa prerrogativa evidentemente esvazia a decisão sobre as prioridades públicas, produzida no processo deliberativo. O executivo realiza um novo juízo sobre tais prioridades e pode entender que não são prioridades de fato, passando por cima do que fora decidido. Tal poder ainda pode ser usado para dois propósitos:
i) o Executivo pode retardar a liberação dos recursos e, na prática, até condicioná-la a determinados interesses políticos. Já são famosas as liberações orçamentárias ocorridas em período eleitoral ou em momentos de crise política, geralmente em projetos de interesse direto dos parlamentares;
ii) o Executivo pode reter os recursos até o final do exercício, geralmente tendo em vista a superação de metas fiscais. A ligação entre os contingenciamentos orçamentários e as metas de superávit primário já são noticiadas pela imprensa e sequer são negadas pelo Poder Executivo. Contingenciamentos expressivos são realizados poucos dias depois da aprovação do orçamento. Veja-se que não se está condenando essa opção do emprego do dinheiro público, em si mesmo, e sim sustentando que ela não deveria ser tratada com mais deferência do que todas as outras opções, contornando o processo deliberativo orçamentário. As metas fiscais são levadas em conta na elaboração do orçamento, que já é aprovado com dotações para o pagamento de encargos e amortizações da dívida pública, bem como com dotações de reserva. Aumentar tais dotações é uma decisão orçamentária possível, devendo se submeter ao procedimento instituído pela Constituição. Não se justifica que o Presidente tenha um poder imperial nessa matéria, redefinindo prioridades de forma monocrática e imotivada.
V. A mudança possível e necessária
(…) o orçamento deve ser vinculante, em alguma medida. Não se deve assumir como corriqueiro que as decisões produzidas possam ser simplesmente ignoradas, sem qualquer procedimento formal. Nesse ponto, duas modalidades de vinculação foram apresentadas. A primeira é a que se entende verdadeiramente devida, decorrente dos princípios constitucionais analisados. Por isso foi denominada de vinculação autêntica. A segunda consiste apenas no dever de motivar eventuais desvios da rota planejada, uma obrigação de dar satisfações sobre os motivos que justificariam a decisão. Foi denominada vinculação mínima. Cabe fazer uma nota sobre cada uma delas.
i) vinculação autêntica: cuida-se da vinculação stricto sensu. O orçamento aprovado deve ser tratado como a generalidade dos atos do Poder Público, com presunção de imperatividade. Modificações serão possíveis por meio de créditos adicionais, tal como já ocorre atualmente. Inclusive por meio de créditos suplementares, que muitas vezes podem ser abertos por decisão autônoma do Presidente. A única prerrogativa que desapareceria seria o poder de não agir, a inércia referida acima. Algumas considerações são necessárias:
- O orçamento teria eficácia de lei, mas não de ato supralegal. Isso significa que certas decisões, vedadas ao legislador, tampouco poderiam ser produzidas pela via do orçamento. Existem espaços de reserva de administração, atos cuja realização é atribuída à Administração Pública, que pode decidir sobre a conveniência da sua realização. Assim, entendesse que a Administração não pode, em situações normais pelo menos, ser obrigada a celebrar contratos ou realizar concursos públicos. Eventuais dotações que prevejam recursos para essas atividades não as converteriam em obrigatórias.
- as dotações podem ser redigidas com diferentes níveis de especificidade. Esse dado irá influir na extensão do dever imposto ao agente encarregado da execução. Seria ingênuo supor que todas as atividades administrativas concretas serão previstas no orçamento. Além de impossível, isso seria até contraproducente. Assim, é possível identificar a existência de uma discricionariedade interna, verificada no interior da própria dotação, em extensão variável. Se o legislador quiser ser específico, poderá ser. Assim como pode impor exigências específicas pelas leis em geral, sem que se cogite de qualquer violação à separação de poderes. A discricionariedade administrativa é balizada pela lei, não o contrário. No entanto, a tendência – por motivos mais do que evidentes – é que predominem dotações de conteúdo aberto, atribuindo grande liberdade de atuação ao Administrador. A observação do orçamento público, nos dias de hoje, demonstra que a imensa maioria das dotações segue essa linha, muitas vezes definindo apenas uma determinada política pública em seus objetivos gerais.
Em qualquer caso, especialmente nos casos de dotação aberta, a vinculação orçamentária nunca deverá ser convertida em um dever genérico de gastar ou em um direito subjetivo ao gasto, considerado em si mesmo. A ordem jurídica impõe deveres ao Estado, que podem envolver custos. Isso é diferente de se exigir o gasto por si mesmo. No caso de dotações em que uma atividade seja desde logo especificada, esta será exigível. É possível que a dotação não seja exaurida, e.g., em razão de economias inesperadas.
No caso de dotações que não realizem tal identificação, o que pode exigir é uma execução razoável. Isso significa que o administrador não poderá simplesmente ignorar a dotação – que espelha uma prioridade definida no processo deliberativo – nem lhe dar execução meramente simbólica. É possível exigir que sejam desenvolvidas atividades compatíveis com a expressão econômica da dotação, que afinal espelha o “grau de prioridade” a ela atribuído. Não se deve exigir, porém, que os recursos sejam necessariamente exauridos, cabendo ao administrador demonstrar, de forma motivada, os motivos pelos quais os recursos remanescentes não puderam ser empregados (imagine-se, e.g., que atividades importantes tenham sido desenvolvidas, mas os recursos remanescentes não sejam capazes de financiar uma nova iniciativa adequada à natureza do setor em questão). Como se percebe, abre-se um espaço de controle pelo princípio da razoabilidade, com as ressalvas a ele pertinentes (especialmente o cuidado que os agentes controladores devem ter para não sufocar escolhas legítimas e substituí-las por suas preferências pessoais). Vale destacar que esse tipo de controle da atividade administrativa com base em parâmetros fluidos não representa qualquer novidade para a ordem jurídica.
ii) vinculação mínima: cuida-se aqui do mínimo do mínimo, apenas o dever de motivar o descumprimento da previsão inicial. A rigor, sequer se trata de verdadeira vinculação, salvo por exigir que o administrador leve em conta a decisão orçamentária e forneça motivos para a sua superação. Com isso, evita-se, ao menos, que o contingenciamento passe despercebido, obrigando o administrador a assumir formalmente uma posição e sustentá-la no espaço público. Como se sabe, a exigência de motivação encontra amparo em diversos dispositivos constitucionais e legais. No caso há algumas circunstâncias a merecer especial consideração.
- A motivação se justifica pelo descumprimento da previsão inicial, que fora assentada no processo deliberativo público. Introduzir essa nova decisão no espaço público é o mínimo que se pode fazer para evitar que o processo político seja inteiramente falseado. Adicionalmente, a motivação é necessária para que a nova opção possa ser compreendida. Como referido, cada opção de emprego do dinheiro público tem um valor intrínseco, mas é somente na comparação com outras opções que se pode avaliar plenamente seu mérito. Sem motivação, uma decisão pontual dirá muito pouco a seus destinatários, a menos que se trate de manifestação teratológica. Cabe ao administrador – que por definição sabe os motivos que o levam a decidir – expor tais motivos de forma pública e racional, conectando o ato específico com o sistema no qual se insere. Somente assim será possível um controle social minimamente efetivo.
- Por uma inferência lógica, é possível concluir que o dever de motivar não impõe um ônus elevado do ponto de vista organizacional. Veja-se que havia uma pauta de prioridades, definida por um procedimento deliberativo parlamentar conduzido a partir de projeto encaminhado pelo próprio Poder Executivo. Se esse plano inicial está sendo superado, parece evidente que o responsável pela decisão sabe os motivos e deverá ser capaz de enunciá-los. Motivação não significa fabricação de motivos sob pressão ou encomenda, e sim a sua exteriorização. Isso é ainda mais verdadeiro quando se foge a um planejamento inicial. A própria Constituição incorporou essa lógica, conferindo a todos os indivíduos o direito de solicitar informações ao Poder Público, inclusive sobre assuntos de interesse coletivo ou geral (CF/88, art. 5º, XXXIII). Basta, portanto, que a Administração forneça por conta própria as respostas que teria de fornecer mediante provocação.
Por meio de uma vinculação autêntica, ou mesmo pela vinculação mínima a que se acaba de descrever, o processo deliberativo orçamentário seria convertido em verdadeiro momento decisório, criando-se um novo e privilegiado espaço de controle social do Poder Público, sem prejuízo das demais implicações referidas ao longo do trabalho. O orçamento deveria funcionar como uma pauta de prioridades, definida de forma deliberativa e com ampla publicidade. No entanto, como não é vinculante nem mesmo a priori, o resultado é exatamente o oposto. O orçamento se converte na saída fácil: uma forma de manter na pauta decisória formal e até de dar tratamento supostamente privilegiado a questões que não poderiam ser simplesmente esquecidas – como diversas necessidades sociais prementes –, sem, contudo, assumir compromissos reais. Criasse uma pauta simbólica de prioridades, que acaba falseando o processo político. Tal constatação já bastaria para se pensar em levar a sério o orçamento público e sua execução”. (MENDONÇA, Eduardo Bastos Furtado de. A constitucionalização das finanças públicas no Brasil – devido processo orçamentário e democracia, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2010, p. 392-7).
No limite das possibilidades das práticas constitucionais ainda vigentes no cenário nacional, impõe-se reconhecer ao menos a denominada vinculação mínima das normas orçamentárias, capaz de impor um dever prima facie de acatamento, ressalvada a motivação administrativa que justifique o descumprimento com amparo na razoabilidade. É este, portanto, o sentido próprio da vinculação do Poder Executivo ao orçamento anual, e que não permite qualquer distinção, para esse fim, entre as normas oriundas de emendas parlamentares ou aqueloutras remanescentes do projeto encaminhado pelo Executivo.
Registro, nesse ponto, que deve ser rejeitado o argumento de violação ao princípio da impessoalidade, suscitado pelo autor com amparo nos “interesses pessoais de cada parlamentar” subjacentes à sistemática de apresentação das emendas. Muito embora, conforme assinala a doutrina, o regime das emendas parlamentares ao orçamento possa ensejar manipulações casuísticas de modo a satisfazer interesses individuais, não se pode ignorar que a teleologia que o informa deita raízes, em abstrato, na concepção democrática de controle da máquina administrativa pelo Legislativo, como instrumento de realização de políticas públicas setoriais canalizadas ao Parlamento pelos mandatários políticos, que conferem voz às demandas sociais através das emendas apresentadas. Fala-se, assim, em uma autêntica função de controle do orçamento público, norteada pelo afã de concretizar o princípio democrático no domínio financeiro (MENDONÇA, Eduardo Bastos Furtado de. A constitucionalização das finanças públicas no Brasil – devido processo orçamentário e democracia, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2010, p. 143 e segs.). Por isso, e levando-se em conta que não se deve proibir o uso pelo mero risco de abuso, descabe falar, in casu, em ofensa ao princípio da impessoalidade.
Acolho, assim, a argumentação da inicial para reconhecer o vício de inconstitucionalidade material do art. 3º, inc. XVII, da LDO de Rondônia, por violar o princípio da Separação de Poderes e por subverter a teleologia que informa os §§ 1º e 2º do art. 165 da Constituição.
Passo ao exame da validade do art. 12, caput e parágrafos, da Lei impugnada, que prevê a distribuição proporcional, entre os poderes políticos, de quaisquer acréscimos na receita do Estado advindos de excesso de arrecadação. Os dispositivos foram assim redigidos, verbis:
Redação original
Art. 12. O Poder Legislativo e Judiciário, o Ministério Público, o Tribunal de Contas do Estado e a Defensoria Pública do Estado compreendendo seus órgãos, fundos e entidades, elaborarão suas respectivas propostas orçamentárias para o exercício financeiro de 2012, tendo como parâmetro para a fixação das despesas da fonte de recursos do tesouro, o conjunto das dotações orçamentárias consignadas na Lei nº 2.368, de 22 de dezembro de 2010 e as suplementações ocorridas durante o exercício de 2011, excetuadas as decorrentes de abertura de créditos adicionais por superávit financeiro, acrescidas de 6,2% (seis pontos e dois décimos percentuais).
§ 1°. A fixação das despesas de outras fontes de recurso dos Poderes, Legislativo e Judiciário, do Ministério Público, do Tribunal de Contas e da Defensoria Pública do Estado terá como parâmetro a projeção de receitas para o exercício de 2012, compreendendo as receitas de seus respectivos fundos, bem como a estimativa de realização de convênios, operações de créditos e outras transferências.
§ 2º. Existindo excesso de arrecadação na fonte de recursos 100, especificamente nas receitas de IRRF, IPVA, ITCMD, ICMS e FPE, no exercício financeiro de 2012, os valores apurados serão repartidos de forma proporcional ao orçamento inicial dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como do Ministério Público do Estado, Tribunal de Contas do Estado e Defensoria Pública do Estado.
§ 3°. A repartição dos recursos previstos no parágrafo anterior se dará por meio da apuração, realizada pelo Poder Executivo, ao final do segundo quadrimestre do exercício da existência de saldo positivo das diferenças, acumuladas mês a mês, entre a arrecadação prevista e a realizada, ficando o Poder Executivo, autorizado a proceder à repartição do montante apurado de acordo com a participação percentual de cada Poder e órgão em relação ao total do orçamento da fonte de recursos do tesouro aprovado para o exercício de 2012.
Redação após emenda parlamentar
Art. 12. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o Ministério Público, o Tribunal de Contas do Estado e a Defensoria Pública do Estado compreendendo seus órgãos, fundos e entidades, elaborarão suas respectivas propostas orçamentárias para o exercício financeiro de 2012, tendo como parâmetro para a fixação das despesas da fonte de recursos 0100, o conjunto das dotações orçamentárias consignadas na Lei nº 2.368, de 22 de dezembro de 2010 e as suplementações ocorridas durante o exercício de 2011, excetuadas as decorrentes de abertura de créditos adicionais por superávit financeiro, acrescidas do mesmo percentual de projeção de crescimento do total das receitas da fonte de recursos 0100 para o exercício financeiro de 2012.
§ 1°. A fixação das despesas de outras fontes de recurso dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, do Ministério Público, do Tribunal de Contas e da Defensoria Pública do Estado terá como parâmetro a projeção de receitas para o exercício de 2012, compreendendo as receitas de seus respectivos fundos, bem como a estimativa de realização de convênios, operações de créditos e outras transferências.
§ 2º. Existindo excesso de arrecadação na fonte de recursos 0100, no exercício financeiro de 2012, os valores apurados serão repartidos de forma proporcional ao orçamento inicial dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como do Ministério Público do Estado, Tribunal de Contas do Estado e Defensoria Pública do Estado.
§ 3º. A repartição dos recursos previstos no parágrafo anterior se dará por meio da apuração, realizada pelo Poder Executivo, ao final do segundo quadrimestre do exercício da existência de saldo positivo das diferenças, acumuladas mês a mês, entre a arrecadação prevista e a realizada, devendo o Poder Executivo, mediante autorização Legislativa, proceder à repartição do montante apurado de acordo com a participação percentual de cada Poder e órgão em relação ao total do orçamento da fonte de recursos do tesouro aprovado para o exercício de 2012.
§ 4º. No exercício financeiro de 2012, se verificado apuração de superávit financeiro na fonte de recursos 0100 do Poder Executivo, referente a excesso de arrecadação do exercício financeiro de 2011, os valores apurados serão repartidos de forma proporcional ao orçamento no final do exercício financeiro de 2011 dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como do Ministério Público do Estado Tribunal de Contas do Estado e Defensoria Pública do Estado.
Segundo o autor, a sistemática da Lei, na forma em que aprovada na Assembleia Legislativa, ao “permitir que 100% (cem por cento) de todas as receitas que porventura ingressem nos cofres estaduais sirvam de base para os repasses aos Poderes, aí incluídos o Ministério Púbico, o Tribunal de Contas e a Defensoria Pública, inviabiliza a atuação do Executivo, que como já dito em linhas anteriores deve atender uma série de demandas nas mais diversas áreas, a exemplo da saúde, educação e as de cunho social”. Sustenta, ainda, que autorização do Poder Legislativo prevista no § 3º do dispositivo traduziria “interferência teratológica” nas atribuições do Poder Executivo, violando a cláusula constitucional de Separação de Poderes.
Com a devida vênia, no entanto, o argumento não procede. Como asseverou a Advocacia-Geral da União nos presentes autos, ao defender a validade do dispositivo, “o orçamento ordinário, aquele que a Administração Pública deverá gerir no exercício vindouro, é o que deve ser considerado como parâmetro para o planejamento das ações e políticas de saúde, educação, infraestrutura, e outras políticas sociais, e também para que os demais Poderes possam planejar suas ações. O superávit de receita constitui apenas uma hipótese e, nessa condição, deve ser tido como eventual pela Administração e pelos demais Poderes e entidades. Se a hipótese for efetivamente materializada, os três Poderes, o Tribunal de Contas, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado de Rondônia receberão tratamento proporcional ao acréscimo auferido, em observância ao princípio da isonomia”. Não cabe falar, portanto, em risco real de engessamento do Executivo, de vez que as políticas públicas serão realizadas de acordo com a projeção inicial da realização das receitas tributárias, já asseguradas ainda que não haja o excesso de arrecadação.
Mais do que isso, impõe-se, na realidade, um tratamento sistemático do tema, que se harmonize com a lógica que preside a hipótese inversa, isto é, de déficit na arrecadação tributária. Com efeito, o art. 9º da Lei de Responsabilidade Fiscal determina que “se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subseqüentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias”. Ou seja, a limitação de empenho em decorrência de realização a menor das metas fiscais atinge, nos termos da Lei Complementar nº 101/00, todos os poderes políticos, que devem realizá-la por ato próprio, já que julgada inconstitucional por esta Suprema Corte, quando da apreciação da medida cautelar na ADIn nº 2.238, Rel. Min. Ilmar Galvão, a interferência do Poder Executivo sobre os demais prevista no § 3º do referido art. 9º. E, em disposição que guarda estrita consonância com a norma ora em análise, prevê o § 1º do art. 9º da LRF que “no caso de restabelecimento da receita prevista, ainda que parcial, a recomposição das dotações cujos empenhos foram limitados dar-se-á de forma proporcional às reduções efetivadas”.
Em outras palavras, se o ônus da limitação de empenho recai sobre todos os poderes, não parece violar o postulado da razoabilidade a escolha do legislador de Rondônia por repartir proporcionalmente o bônus advindo de excesso de arrecadação. Ressalto, ademais, que questão similar restou apreciada por esta Corte, ainda que também em sede de medida cautelar, no julgamento da ADIn nº 3.652, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Naquela oportunidade, não foi vislumbrada qualquer inconstitucionalidade em disposição da Lei de Diretrizes Orçamentárias de Roraima de 2005 (Lei Estadual nº 503/05) que impunha a “distribuição do superávit orçamentário aos Poderes e ao Ministério Público”, notadamente à luz do frágil argumento de descumprimento da vedação constitucional à “vinculação de receitas de impostos a órgão, fundo ou despesa” (CF, art. 167, IV). A ementa do acórdão foi assim redigida:
I. ADIn: L. est. 503/05, do Estado de Roraima, que dispõe sobre as diretrizes orçamentárias para o exercício de 2006: não conhecimento. 1. Limites na elaboração das propostas orçamentárias (Art. 41): inviabilidade do exame, no controle abstrato, dado que é norma de efeito concreto, carente da necessária generalidade e abstração, que se limita a fixar os percentuais das propostas orçamentárias, relativos a despesas de pessoal, para o ano de 2006, dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e do Ministério Público: precedentes. 2. Art. 52, caput e §§ 1º e 3º: ausência de parâmetro constitucional de controle. II. ADIn: L. est. (RR) 503/05, art. 52, § 2º: alegação de ofensa ao art. 167 da Constituição Federal: improcedência. Não há vinculação de receita, mas apenas distribuição dos superavit orçamentário aos Poderes e ao Ministério Público: improcedência. III. ADIn: L. est. (RR) 503/05, art. 55: alegação de contrariedade ao art. 165, § 8º, da Constituição Federal: improcedência. O dispositivo impugnado, que permite a contratação de operação de crédito por antecipação da receita, é compatível com a ressalva do § 8º, do art. 165 da Constituição. IV. ADIn: L. est. (RR) 503/05, art. 56, parágrafo único: procedência, em parte, para atribuir interpretação conforme à expressão “abertura de novos elementos de despesa”. 1. Permitidos a transposição, o remanejamento e a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra, desde que mediante prévia autorização legislativa, no caso substantivada no dispositivo impugnado. 2. “Abertura de novos elementos de despesa” - necessidade de compatibilização com o disposto no art. 167, II, da Constituição, que veda “a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais”. (ADI 3652, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 19/12/2006, DJ 16-03-2007 PP-00020 EMENT VOL-02268-03 PP- 00377 RTJ VOL-00201-03 PP-00930)
Tampouco viola a cláusula da Separação de Poderes a exigência de autorização legislativa para a repartição proporcional do montante apurado em excesso de arrecadação, prevista no § 3º do art. 12 da Lei de Diretrizes Orçamentária de Rondônia. É que a autorização legislativa nessa hipótese está em harmonia com o tratamento conferido pela Lei Federal nº 4.320/64 ao excesso de arrecadação, mencionado pelo art. 43, § 1º, II, deste último diploma como uma das hipóteses que ensejam a abertura de créditos suplementares ou especiais, definindo-se, no § 2º do dispositivo, que “entende-se por excesso de arrecadação, para os fins deste artigo, o saldo positivo das diferenças acumuladas mês a mês entre a arrecadação prevista e a realizada, considerando-se, ainda, a tendência do exercício”. E para a abertura de tais créditos, como se sabe, faz-se imprescindível a autorização legislativa específica, nos termos do art. 167, V, da Constituição Federal, que pode até mesmo constar já da própria lei orçamentária anual (CF, Art. 165, § 8º).
Ou seja, enquanto a redação original do art. 12, § 3º, da LDO de Rondônia já consubstanciava a própria autorização legislativa para a destinação orçamentária do excesso de arrecadação, a alteração promovida no dispositivo por emenda parlamentar apenas optou por diferir para um momento futuro a prática deste mesmo ato, incrementando a fiscalização da Assembleia sobre a execução orçamentária à luz da incerteza quanto à realização da receita, sendo que ambas as alternativas encontram guarida nas regras constitucionais orçamentárias.
Rejeito, portanto, a alegação de inconstitucionalidade do art. 12, caput e §§, da Lei.
De outro lado, sustenta o autor também a inconstitucionalidade do art. 15 da LDO, que amplia a possibilidade de concessão de subvenção social a entidades privadas sem fins lucrativos para além do âmbito das despesas estritamente de custeio. Eis a redação do dispositivo:
Redação original
Art. 15. É vedada a inclusão, na lei orçamentária e em seus créditos adicionais, de dotações a título de subvenções sociais, ressalvadas aquelas destinadas à cobertura de despesas de custeios a entidades privadas sem fins lucrativos, de atividades de natureza continuada, que preencham uma das seguintes condições: (...)
Redação após emenda parlamentar
Art. 15. É vedada a inclusão, na lei orçamentária e em seus créditos adicionais, de dotações a título de subvenções sociais, ressalvadas aquelas destinadas à cobertura de despesas a entidades privadas sem fins lucrativos, de atividades de natureza continuada, que preencham uma das seguintes condições: (...).
Toda a argumentação do autor, neste ponto, parte da premissa de que seria aplicável às emendas parlamentares à Lei de Diretrizes Orçamentárias o disposto no art. 63, I, primeira parte, da Constituição Federal, segundo o qual “não será admitido aumento da despesa prevista nos projetos de iniciativa exclusiva do Presidente da República”. Assim, segundo afirma, não poderia o Legislativo ter ampliado, por emenda, o âmbito das subvenções sociais, já que a consequência direta deste novo regime seria a imposição de “uma despesa além daquilo que foi proposto e que é possível de ser executado por quem efetivamente tem essa competência, o Poder Executivo”.
Mas essa premissa não se mostra verdadeira. Com efeito, a parte final do art. 63, I, da Constituição excepciona a vedação ao aumento de despesa justamente nas hipóteses dos §§ 3º e 4º do art. 166 da Constituição, que tratam, respectivamente, do regime das emendas parlamentares “ao projeto de lei do orçamento anual” e “ao projeto de lei de diretrizes orçamentárias”. Em outras palavras, e como afirma a doutrina, “é admissível emenda que aumente a despesa nos projetos ali referidos”, já que “as restrições ao direito de emenda nesses casos são de outra ordem” (SILVA, José Afonso. Processo constitucional de formação das leis, São Paulo: Ed. Malheiros, 2006, p. 200), isto é, as contidas nos referidos §§ 3º e 4º do art. 166 da Constituição.
Ademais, ressalte-se que ao regime das emendas à Lei de Diretrizes Orçamentárias, que “não poderão ser aprovadas quando incompatíveis com o plano plurianual” (§ 4º do art. 166 da CF), sequer são aplicáveis as regras formais acerca das emendas à Lei Orçamentária Anual, previstas no § 3º do art. 166. Tal conclusão é extraída da análise sistemática da redação do caput e dos parágrafos do art. 166 da Constituição: no caput faz-se menção expressa aos “projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais”, de modo a conferir um regime formal comum aos referidos diplomas; no inc. I do § 1º, de igual forma, alude-se à emissão de parecer pela Comissão mista permanente de Senadores e Deputados sobre “os projetos referidos neste artigo”, igualmente de forma ampla, portanto; no § 5º, novamente, faz uso o constituinte da expressão ampla “projetos a que se refere este artigo”, também utilizada pelo § 7º; por fim, o § 6º do dispositivo adota redação similar à do caput, mencionando “os projetos de lei do plano plurianual, das diretrizes orçamentárias e do orçamento anual”. Diversamente, porém, no § 3º o constituinte conferiu redação restritiva, para disciplinar exclusivamente “as emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem”, enunciando os requisitos previstos nos três incisos que o compõem. Essa mesma lógica presidiu a redação do § 4º do dispositivo, que alude apenas às “emendas ao projeto de lei de diretrizes orçamentárias”. Assim, os regimes formais das emendas à Lei de Diretrizes Orçamentárias e à Lei Orçamentária Anual se mostram absolutamente inconfundíveis, precisamente na linha do que assinala a doutrina especializada do tema, que separa com precisão os requisitos para cada qual (TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, Vol. V – O orçamento na Constituição, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2008, p. 441; OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, p. 399; e SILVA, José Afonso. Processo constitucional de formação das leis, São Paulo: Ed. Malheiros, 2006, p. 325).
E veja-se que o dispositivo impugnado, a rigor, encontra amparo no art. 4º, I, ‘f’, da Lei de Responsabilidade Fiscal, mencionado anteriormente, segundo o qual compete à Lei de Diretrizes Orçamentárias dispor sobre “demais condições e exigências para transferências de recursos a entidades públicas e privadas”. Se acolhida a tese do autor, no entanto, restariam praticamente inviabilizadas quaisquer emendas parlamentares sobre o conteúdo do art. 4º, I, ‘f’, da LRF, subtraindo o tema da devida apreciação do parlamento.
Por fim, a argumentação do autor se volta para questionar a validade do art. 22, caput e parágrafo único, da Lei ora impugnada. Confira-se a redação do dispositivo:
Redação original
Art. 22. Para o atendimento de despesas com emendas ao projeto de lei orçamentária, apresentadas na forma dos §§ 2º e 3º do artigo 166 da Constituição Federal, o Poder Executivo disponibilizará na Secretaria de Estado de Planejamento e Coordenação Geral - SEPLAN o montante de R$ 24.000.000,00 (vinte e quatro milhões de reais) para emendas individuais e R$ 24.000.000,00 (vinte e quatro milhões de reais) para emendas de bloco ou bancada.
§ 1°. Nos termos do caput do artigo 136-A da Constituição Estadual, no exercício de 2012 serão de execução obrigatória as emendas aprovadas pelo Poder Legislativo de que trata este artigo.
§ 2°. Constará na lei orçamentária demonstrativo das emendas parlamentares aprovadas pela Assembleia Legislativa na mesma forma e nível do detalhamento estabelecido no Art. 4° desta lei.
§ 3°. As emendas parlamentares ao projeto de lei orçamentária para o exercício de 2012 deverão estar em conformidade com os objetivos e metas relativas aos programas temáticos constantes no plano Plurianual PPA para o período de 2012-2015.
Redação após emenda parlamentar
Art. 22. Para o atendimento de despesas com emendas ao projeto de lei orçamentária, apresentadas na forma dos §§ 2º e 3º do artigo 166 da Constituição Federal, o Poder Executivo disponibilizará na SEPLAN o montante de R$ 54.000.000,00 (cinquenta e quatro milhões de reais) para emendas individuais e R$ 54.000.000,00 (cinquenta e quatro milhões de reais) para emendas de bloco ou bancada.
Parágrafo único. Nos termos do caput do artigo 136-A da Constituição Estadual, no exercício de 2012 serão de execução obrigatória as emendas aprovadas pelo Poder Legislativo de que trata este artigo.
Sustenta o autor, em primeiro lugar, que a nova redação conferida ao caput do dispositivo pela Assembleia ofenderia o art. 63, I, da Constituição por provocar aumento de despesa no Projeto de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, na linha do que se mencionou mais acima com relação ao art. 15 da LDO de Rondônia. Pelas mesmas razões antes referidas, portanto, rejeito, nesse ponto, o vício de inconstitucionalidade.
Registro, ainda, que, como assenta a jurisprudência desta Corte, não se mostra cabível o controle em sede de ADIn da eventual incompatibilidade entre as disposições da Lei de Diretrizes Orçamentárias e o conteúdo do plano plurianual. Com efeito, alude o autor – de forma excessivamente genérica, ressalte-se – que a majoração dos valores destinados às emendas parlamentares estaria em desconformidade com o plano plurianual, o que atrairia o vício de inconstitucionalidade por ofensa ao art. 166, § 4º, da Constituição. Contudo, tal argumentação extravasa os limites do parâmetro estritamente constitucional de validade das leis, único apto a amparar a atuação concentrada deste Supremo Tribunal Federal, sendo por isso mesmo matéria mais adequada a ser ventilada no domínio político, na linha do que já se aludiu mais acima. Nesse sentido, confiram-se as ementas dos acórdãos proferidos por esta Corte na ADIn nº 2.343, Rel. Min. Nelson Jobim, e na ADIn nº 1.428-MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, nas quais reputou-se inadmissível a verificação da suposta desarmonia entre Lei estadual e a respectiva Lei de Diretrizes Orçamentária, adotando razões que se aplicam igualmente ao presente caso, verbis:
CONSTITUCIONAL. LC Nº 192/2000, DO ESTADO DE SANTA CATARINA. CRIAÇÃO DE CARGOS DE JUÍZES SUBSTITUTOS E DE ASSESSORES PARA ASSUNTOS ESPECÍFICOS. PREVISÃO DE SUA ADEQUAÇÃO AO PERCENTUAL ORÇAMENTÁRIO DESTINADO AO PODER JUDICIÁRIO PELA LEI DE DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIOS. NECESSIDADE DE ANÁLISE DE SUA INCONSTITUCIONALIDADE EM FACE DA LEI DE DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS, FUNDAMENTAÇÃO INADMISSÍVEL EM FACE DE AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. AÇÃO NÃO CONHECIDA. (ADI 2343, Relator(a): Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 28/03/2001, DJ 13-06-2003 PP-00008 EMENT VOL- 02114-02 PP-00281 RTJ VOL 00192-01 PP-00078)
MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI CATARINENSE Nº 9.901, DE 31.07.95: CRIAÇÃO DE CARGOS DE PROVIMENTO EFETIVO DE FISCAIS DE TRIBUTOS ESTADUAIS E DE AUDITORES INTERNOS. ALEGAÇÃO DE QUE A EDIÇÃO DA LEI NÃO FOI PRECEDIDA DE PREVIA DOTAÇÃO ORCAMENTARIA NEM DE AUTORIZAÇÃO ESPECIFICA NA LEI DE DIRETRIZES ORCAMENTARIAS (ART. 169, PAR. ÚNICO, I E II, DA CONSTITUIÇÃO). 1. Eventual irregularidade formal da lei impugnada só pode ser examinada diante dos textos da Lei de Diretrizes Orçamentarias (LDO) e da Lei do Orçamento Anual catarinenses: não se esta, pois, diante de matéria constitucional que possa ser questionada em ação direta. 2. Interpretação dos incisos I e II do par. único do art. 169 da Constituição, atenuando o seu rigor literal: e a execução da lei que cria cargos que esta condicionada as restrições previstas, e não o seu processo legislativo. A falta de autorização nas leis orçamentarias torna inexequível o cumprimento da Lei no mesmo exercício em que editada, mas não no subsequente. Precedentes: Medidas Liminares nas ADIS n.s. 484-PR (RTJ 137/1.067) e 1.243-MT (DJU de 27.10.95). 3. Ação Direta de Inconstitucionalidade não conhecida, ficando prejudicado o pedido de medida cautelar. (ADI 1428 MC, Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 01/04/1996, DJ 10-05-1996 PP-15131 EMENT VOL-01827-03 PP-00371 RCJ v. 21, n. 138, 2007, p.113)
Em segundo lugar, a inconstitucionalidade do parágrafo do art. 22 decorreria, segundo o autor, da ofensa ao princípio da Separação dos Poderes, já que concedido regime de obrigatória execução tão-somente às emendas parlamentares ao orçamento.
Como se vê, a redação do parágrafo único do art. 22 guarda estrita sintonia com o disposto no art. 3º, XVII, da mesma Lei, analisado anteriormente no presente voto. O dispositivo, ademais, faz expressa alusão ao art. 136-A da Constituição do Estado de Rondônia, cujo teor é o seguinte:
“Art. 136-A. Programação constante da lei orçamentária anual, decorrentes de Emendas de parlamentares é de execução obrigatória, até o limite estabelecido em lei. (Acrescido pela Emenda Constitucional nº 21, de 03/07/2001)
§ 1º. As dotações decorrentes de emendas de parlamentares serão identificadas na lei orçamentária anual. (Acrescido pela Emenda Constitucional nº 21, de 03/07/2001)
§ 2º. São vedados o cancelamento ou o contingenciamento, total ou parcial, por parte do Poder Executivo, de dotação constante da lei orçamentária anual, decorrente de emendas de parlamentares. (Acrescido pela Emenda Constitucional nº 21, de 03/07/2001)”
Por certo, não se mostra cabível, nesta sede, apreciar a constitucionalidade da norma inscrita na Constituição Estadual, já que fora dos limites do pedido veiculado na inicial da presente ação direta. Tampouco é possível analisar a validade do disposto no referido parágrafo único do art. 22 à luz do art. 136-A da Constituição de Rondônia, porquanto restrito o parâmetro de controle, na jurisdição constitucional abstrata exercida pelo STF, à força normativa da Constituição Federal.
Nestas balizas, e levando-se em conta exclusivamente o sistema orçamentário delineado na Constituição Federal de 1988, entendo que o parágrafo único do art. 22 da Lei nº 2.507/11 do Estado de Rondônia padece de inconstitucionalidade material à luz do princípio da Separação de Poderes, por idênticas razões que conduziram à declaração de inconstitucionalidade do art. 3º, XVII, da mesma Lei.
Com efeito, os princípios da Separação de Poderes (CF, art. 2º), da legalidade orçamentária (CF, art. 165, caput e inc. I a III) e da democracia (CF, art. 1º, caput) impõem a força vinculante prima facie das normas orçamentárias, nos termos da lição acima referida de MENDONÇA, Eduardo Bastos Furtado de. A constitucionalização das finanças públicas no Brasil – devido processo orçamentário e democracia, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2010, p. 392-7. Não há amparo constitucional, assim, à pretensão de conceder regime formalmente distinto exclusivamente às emendas parlamentares, sob pena de desrespeito à harmonia que deve reinar entre os poderes políticos (CF, art. 2º).
Ex positis, defiro parcialmente a medida cautelar apenas para suspender a eficácia do inc. XVII do art. 3º e do parágrafo único do art. 22 da Lei nº 2.507/11 do Estado de Rondônia.
É como voto.
* julgamento pendente de conclusão
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRASIL, STJ - Superior Tribunal de Justiça. STF - Lei de Diretrizes Orçamentárias e caráter vinculante Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr 2012, 22:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/jurisprudências/28514/stf-lei-de-diretrizes-orcamentarias-e-carater-vinculante. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: TJSP - Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Por: TRF3 - Tribunal Regional Federal da Terceira Região
Por: TJSC - Tribunal de Justiça de Santa Catarina Brasil
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