O crime de introdução ou abandono de animais em propriedade alheia previsto no artigo 164, CP tutela a propriedade e a posse de imóveis, bem como seu uso e gozo pelo respectivo titular.
Acontece que segundo a doutrina dominante tem-se entendido que se o proprietário de um imóvel estiver com este na posse legítima de terceiro (aluguel ou arrendamento, por exemplo) e vier a abandonar ou introduzir animais nesse local, não responderá pelo delito previsto no artigo 164, CP, senão somente por eventual crime de dano (artigo 163, CP). O tema, porém, não é pacífico, havendo quem defenda a tese da ocorrência do artigo 164, CP, mesmo quando é o dono do imóvel quem abandona ou introduz os animais, desde que esse imóvel esteja na posse legítima de terceiros.
Toda a discussão se desenvolve em torno do fato de que o tipo penal do artigo 164, CP menciona “propriedade alheia”, de forma que se o agente for o dono do imóvel faltaria um elemento objetivo do tipo penal. Doutra banda, afirma-se que o termo “propriedade” nesse contexto deve ser entendido num sentido amplo, abrangendo a propriedade e a posse, o que se afigura mais correto, embora seja o pensamento até o momento minoritário.
Efetivamente entende-se que a postura doutrinária deveria se alterar, inclusive por uma interpretação que leve em conta a necessária homogeneidade com aquilo que se tem afirmado acerca do crime de violação de domicílio (artigo 150, CP), onde também se menciona a “casa alheia”, mas não se cogita permitir que, por exemplo, o locador possa a seu bel prazer invadir a casa do locatário sem sua anuência, o que seria realmente rematado absurdo. Assim também o é a possibilidade de que o dono de um terreno arrendado ou alugado possa ali colocar várias cabeças de gado, sem a autorização do arrendatário ou locatário, turbando sua posse e impedindo seu livre gozo do bem. Nada mais óbvio do que perceber que em ambos os casos a tutela se estende da propriedade até a posse, não havendo motivo para tratamento diferente.
Quando comenta o artigo 150, CP, Mirabete é assertivo ao dizer que “qualquer pessoa pode cometer o delito, inclusive o proprietário do imóvel, quando a posse estiver legitimamente com terceiro” (grifo nosso).
Não há motivo para tratamento diverso no caso do crime do artigo 164, CP, conforme também aduz Bitencourt, eis que é possível empregar um sentido abrangente de propriedade alheia que proteja não somente a propriedade, mas também a posse legítima e direta, especialmente no que se refere ao uso e gozo do bem imóvel arrendado ou alugado que pode ser turbado pela introdução ou abandono de animais no local, ainda que perpetrados pelo proprietário.
Se no crime de violação de domicílio é possível superar a expressão “casa alheia” para abranger como sujeito ativo mesmo o proprietário em casos de posse legítima de terceiros, considerando, para além da propriedade, o direito à intimidade e à vida privada; também no crime do artigo 164, CP, é viável suplantar a expressão “propriedade alheia” para estender a tutela à posse direta legítima, considerando não somente a questão da propriedade, mas do direito ao uso e gozo plenos conferidos contratualmente e que podem sofrer restrições ou até mesmo total impedimento pelo ato do abandono ou introdução de animais no imóvel.
Espera-se que a doutrina e a jurisprudência venham a ponderar com mais cuidado sobre esse tema, percebendo que uma interpretação meramente gramatical do dispositivo do artigo 164, CP não é satisfatória. É preciso haver uma visão sistemática, principalmente tendo em vista os critérios utilizados para a exegese do artigo 150, CP. A diferença dos entendimentos hoje encontrável demonstra o quão deletéria pode ser a estagnação na análise meramente gramatical, deixando passar “in albis” o viés sistemático para a aplicação de dispositivos de um mesmo diploma ou ordenamento legal. Em geral essa falha interpretativa produz desigualdades e injustiças que podem ser facilmente evitadas quando se procura homogeneizar o pensamento com a sensibilidade necessária para identificar as semelhanças de casos que por mesma ou semelhante razão devem ter idênticas soluções de direito (“ubi eadem est ratio, ib ide jus”).
REFERÊNCIAS
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