“Um currículo é um balanço sem passivos."
(Robert Half)
Isso de curriculum vitae dá pano para manga... E sobre o tema, deixarei aqui algumas fotografias que dele tenho na alma.
Lembro-me do CV do meu pai: extenso, alentado e cuidado por ele como um homem cuida de seu filho amado. Ele se esmerava em fazê-lo cada dia melhor e mais apresentável, tanto em conteúdo quanto em forma. Eram folhas e folhas de feitos, cursos, atividades, nomeações para isto e aquilo. Era tão grande e forrado que me deixava medo. Medo... Mas quando me vi jovem adulto me peguei com os mesmos esmeros e atenções, fazendo do meu o melhor que eu podia. Essa é uma das fotografias que tenho desse assunto. Há quem diga que o meu CV é melhor do que o do meu pai e nisso existem dois erros crassos. Primeiro, porque cada um tem sua história, segundo, porque creio que o dele é melhor e provo isso com facilidade: se eu tivesse nascido no meio do mato, sem luz elétrica, nem escola por perto, e tivesse que ter me esforçado na lavoura todo o dia para só à noite ler e reler à luz de lamparina, não creio que teria ido tão longe quanto ele. E isso me traz outra fotografia: uma coisa é o currículo no papel, esse que entregamos a quem queremos impressionar para fins de contratação ou para nos apresentarmos melhor; outra coisa é o currículo espiritual, o da alma, que é aquele que a gente imprime em nossa história e a garra que nos fez ser donos do currículo de papel.
Mas há outros currículos. Falarei deles, mas antes continuarei falando do de papel.
Sei de muita gente que mente no currículo, e vez ou outra pegamos gente fina fraudando dados no Lattes ou em mentiras menos públicas, mas igualmente reprováveis. O gozado é que já vi gente sendo contratada por causa do CV e demitida por causa da falta do currículo espiritual, ou seja, da competência e experiência que se ganha ao obter as linhas que se escrevem no currículo de papel, ou digital, se for o caso.
O currículo tem um lado de “olha com quem você está falando”, mas quando precisamos contratar alguém, é exatamente isso que precisamos.
Outra fotografia é a seguinte. Durante muito tempo o professor que chegasse nos cursos que eu coordenava e tivesse mestrado ou doutorado era “não contratado” de plano. Explico. Antigamente, e esta é uma foto antiga que deixo aqui nessa espécie de álbum de fotos que são os artigos, as faculdades não exigiam esses títulos. O MEC acabou por fazê-los na prática obrigatórios e assim hoje tudo é diferente. Mas antigamente, quem sabia dar aula estava em sala, quem não sabia ia fazer pós- graduação lato ou stricto sensu. Claro que algumas pós ensinavam a trabalhar e eram procuradas por bons professores. Mas volto a dizer: isso mudou. Todavia, deixo essa fotografia para lembrar da diferença entre ter o diploma e saber o que fazer com ele, entre ter o título técnico e ser um bom profissional ou saber dar aula sobre o assunto. Saber é uma coisa; saber fazer, outra; ensinar, uma terceira. Outra foto.
Recebi uma vez exatos 50 currículos para contratar uma assistente. Quarenta e sete não anotavam que a candidata sabia Word. Eram tempos mais antigos, ano de 1997. Entre estes, tinha até currículo com marca de gordura, de algo como um copo que tenha sobre ele sido depositado. Um copo sujo. Se o CV era porco assim, imagine a dona! Eliminado de pronto. Dos três que restaram, duas sabiam Word e a outra, na entrevista, indagada sobre isso, disse que “não sabia, mas aprenderia em uma semana”. Isso fez com que eu pensasse nela, que ela passasse pelo primeiro filtro, mas eu tinha pressa. Eu admirei sua atitude, mas precisava de alguém que já soubesse e não que fosse aprender. Se não houvessem duas candidatas que soubessem, seria escolhida, anoto. Das duas restantes, escolhi Ingrid. Ela tinha um CV de papel menos recheado que o de sua concorrente, mas a outra não me passou ter lealdade ao emprego. Ela mudava muito rápido e temi gastar tempo treinando alguém que iria embora logo que ouvisse proposta melhor. Era o currículo não escrito que me fez escolher a outra. Ingrid recusou propostas de vencimento melhor apostando junto comigo no meu sonho, que ela passou a sonhar junto. Estamos juntos até hoje e somos sócios. Outra foto: há coisas que o currículo não diz nas letras, mas sussurra nas entrelinhas.
Ainda currículos. Um pretenso contratado, em outra seleção, havia tido sete empregos em dois anos. Ele me explicou detalhadamente como em cada um deles havia sido injustiçado, como seus patrões anteriores não souberam valorizá-lo. Eu o contratei, confesso. Porém, lhe disse que ou estava julgando mal os fatos ou era o empregado mais azarado do mundo, mas que agora ele teria uma chance de provar, pois eu era um bom patrão. Passados poucos meses, e não poucos erros, demiti o sujeito pelos merecimentos que ele tinha. Ouvi, tempos depois, que ele disse em algum lugar que eu tinha sido injusto e não havia sabido valorizá-lo. Pior, virou pastor evangélico. Infelizmente é um lugar onde é mais fácil se esconder um mau profissional, pois atrás do diálogo com o divino é mais fácil esconder suas maldades. Aprecio muito a função pastoral de padres, rabinos e pastores. Ela é linda. Deveria estar mais protegida dos pilantras, mas este é outro assunto.
Eu guardo comigo, diferentemente da citação da epígrafe, meu currículo de derrotas. Elas me servem para duas finalidades prestativas, boas e dignas. Primeiro, conto meus reveses para que todos saibam que deles se pode extrair matéria-prima para as vitórias e conquistas. Meus erros e derrotas me humanizam ao mesmo tempo em que, de certo modo, endeusam aqueles que ainda estão nessa fase. Eu, com isso, digo o que a Bíblia cita: “Sois deuses”. “Podeis transformar, como o Cristo fez com água o vinho, derrotas em vitórias, se fizeres o que os milagres humanos não prescindem: humildade, aprendizado e novas e melhores tentativas”. Este é o primeiro préstimo.
Mas há outro: de vez em quando me sento com meu currículo feio, o negativo, o das derrotas. Eu o uso para me lembrar de minha humanidade e dela colher uma nova e cada diz mais necessária humildade. Ayrton Senna dizia isso: vitórias são muito perigosas, elas o fazem ficar indolente se não tiver cuidado. Por essa razão os chineses mandam, após a vitória, afiar as facas.
Meu currículo de derrotas me ajuda a me lembrar de onde eu vim, e como foi duro. Eu as olho e lembro-me vagarosamente, como se aprecia uma boa fruta, o que cada uma delas me ensinou. E também me serve para eu ter orgulho de mim, por eu não ter parado naquele lugar. Elas me dão orgulho e me lembram do quanto eu fui corajoso em não ter desistido após experimentá-las, as derrotas. E se antevejo gigantes à minha frente, olhar minhas derrotas, e em seguida as vitórias que vieram, me faz não temer gigante algum. Todo Davi precisa de Golias. Davi sem Golias é só um pastor menino: reis são feitos de Golias caídos. E, claro, não esquecer o Rei Davi: ele, no trono, confessou, àquele que o tirou de trás das malhadas: “Sou pobre e necessitado”. Meu currículo de derrotas me lembra que eu também o sou. Isso me faz humilde e, portanto, forte.
Sobre currículos, lembro uma história ainda, e com essa foto termino esta carta. Ao contratar um novo gerente, o superexecutivo mandou eliminar os menos aptos, e dos 836 currículos recebidos restaram “apenas” 136. A secretária informou que aqueles eram os melhores e os pôs, todos, em cima da mesa do chefe. Ele pegou quase todos, uns 90 e jogou no lixo, e mandou que convocassem para entrevistas os 20 a 30 que sobraram. Assustada, petrificada mesmo, sua secretária indagou se entre aqueles desprezados não poderia haver algum talento. A resposta foi simples: “Minha filha, tudo o que essa empresa não precisa agora é de alguém sem sorte”. Outra foto.
Você pode ter o melhor currículo do mundo, mas não despreze a sorte. Eike Batista, na visão 360 graus, fala sobre isso, uma pitada de sorte. A Bíblia diz que é ela, a sorte, que faz a escolha entre poderosos. Todos que gostam de futebol conhecem a expressão “sorte de campeão”, e Nelson Rodrigues chamou a sorte de “bola vadia”, que pode mudar o resultado de um jogo de campeonato. Salomão, o homem mais sábio que já viveu, disse que a sorte acontece a todos, e que ela pode mudar tudo.
Enfim, quero estar pronto quando a sorte sorrir, quero – no que depender de mim – ter meu melhor currículo para apresentar quando for preciso. O de papel, o da alma. E quero ter sorte. E não desejo para você nada senão o que desejo para mim: prepare seus currículos. E boa sorte.
Juiz Federal, Titular da 4ª Vara Federal de Niterói - Rio de Janeiro; Professor Universitário; Mestre em Direito, pela Universidade Gama Filho - UGF; Pós-graduado em Políticas Públicas e Governo - EPPG/UFRJ; Bacharel em Direito, pela Universidade Federal Fluminense - UFF; Conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ; Professor Honoris Causa da ESA - Escola Superior de Advocacia - OAB/RJ; Professor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas - EPGE/FGV; Membro das Bancas Examinadoras de Direito Penal dos V, VI, VII e VIII Concursos Públicos para Delegado de Polícia/RJ, sendo Presidente em algumas delas; Conferencista em simpósios e seminários; Autor de vários livros. Site: www.williamdouglas.com.br<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DOUGLAS, William. Currículos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 nov 2012, 03:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1360/curriculos. Acesso em: 22 nov 2024.
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