As mulheres que dirigem veículos correm o risco de danificar seus ovários. Quem afirmou isso? Alguma pesquisa científica, fundada em comprovações sérias feitas em uma Universidade confiável? Não. Um xeque árabe: Saleh al-Lohaidan (Folha 30/9/13, p. A11). Ele afirmou o seguinte: “Se uma mulher dirige sem que seja por pura necessidade, ela poderá ser afetada fisiologicamente. Estudos médicos demonstram que dirigir afeta automaticamente os ovários, e empurra a pélvis para cima”; “Mulheres que dirigem têm filhos com problemas”. Mulher na Arábia Saudita que é surpreendida dirigindo é multada. Houve tempo em que era processada criminalmente. Há uma campanha agora naquele país que incentiva as mulheres a desafiarem a proibição. O site que pregava a rebelião foi tirado do ar.
Uma afirmação como essa, posto que restringe direitos básicos das pessoas (de dirigir veículos), só poderia merecer crédito se fosse acompanhada de um mundo de pesquisas médico-científicas. Não as havendo (ao menos, confiáveis), tudo se resume a uma questão de fé e de exercício do poder. Uma das interpretações bíblicas diz que Deus criou o Universo e dispôs tudo de forma hierárquica, conforme as aptidões e poderes de cada um. Quem tem poder ou sabedoria manda e quem não tem obedece. O superior domina, o inferior é dominado. Consoante essa visão de mundo, os maridos (os homens) são superiores, as esposas (as mulheres) são inferiores. O que eles falam vira lei. Claro que as mulheres do mundo inteiro civilizado estão em pé de guerra contra toda essa cultura retrógrada. As proibições religiosas fazem sempre recordar todos os que foram mortos (Bruno Giordano, por exemplo) ou quase mortos (Galileu Galilei, por exemplo) pelo cristianismo, por terem afirmado que a Terra girava em torno do Sol. Disseram heresia! Fogueira! Hoje pedem desculpas, mas a crueldade já foi praticada (especialmente contra os hereges e contra as bruxas).
Para quem tem interesse no tema, recomendo a leitura de um dos mais fantásticos livros da atualidade: A virada – O nascimento do mundo moderno (de Stephen Greenblatt). Fiquei embevecido com a história da recuperação, em 1417, do livro Da natureza das coisas, escrito pelo poeta romano Lucrécio, em 50 a.C. (um epicurista). O livro é encontrável na internet (já fiz uma cópia e estou lendo). Foi uma das fontes de inspiração e de sedimentação do Renascentismo, ou seja, de Copérnico, Bruno Giordano, Maquiavel, Michelângelo, Leonardo da Vinci, Rafael, Boticelli, Galileu Galilei, Descartes, Montaigne etc. Resulta evidente, da sua leitura, o quanto é fundamental, mesmo que em pleno século XXI, a compreensão do ignorantismo, no seu sentido de exploração da ignorância. Há quem conquista benefícios ou dinheiro com a exploração da ignorância alheia.
Quando Freud e Jung desembarcaram no Porto de Nova York ficaram impressionados com a receptividade dos admiradores norteamericanos. Freud teria dito a Jung: “Mas eles não sabem que nós estamos trazendo a peste!” (a psicanálise). A redescoberta dos poemas de Lucrécio (7400 poemas), em 1417, depois de o livro ter ficado mil anos escondido num mosteiro, no centro da Alemanha, equivaleu a uma peste, consolidadora do Renascentismo (ou Renascimento).
Que a descoberta da obra de Lucrécio faz parte do Renascimento (ou Renascença ou Renascentismo) não há dúvida, porque este período histórico europeu (muito forte na Itália, mas somente aí) vai (mais ou menos) do século XIV ao século XVI. Por que “Renascimento”? Porque se trata de um período que redescobre ou revaloriza a cultura clássica (sobretudo) grega e romana. Lucrécio fez parte dessa cultura (escreveu seu livro Da natureza em 50 a.C.). O Renascimento constitui um divisor de águas na história da humanidade: marca o fim da Idade Média bem como o início da Modernidade (das novas formas de governo, do capitalismo etc.). São incontáveis as transformações da vida humana em razão da cultura renascentista: nas artes, na religião, nas sociedades, na política, na economia, na filosofia, na poesia, na prosa etc. A cultura clássica grega e romana caracteriza-se pelo humanismo e naturalismo. Os renascentistas são também conhecidos como humanistas. Trata-se da redescoberta do mundo, da filosofia, do modo ver as coisas e a natureza, a religião, a poesia etc.
As obras antigas eram escritas em papiro (a de Lucrécio também o foi). Gutemberg ainda não existia. Os papiros se deterioravem com facilidade. Os escritos sobre eles eram facilmente removíveis. Aliás, muitos monges praticavam o palimpsesto (a arte de apagar os manuscritos antigos para usar os pergaminhos novamente, copiando textos do catolicismo). O acaso preservou os 7400 poemas de Lucrécio. Poggio (um italino humanista, que trabalhava na Curia do Vaticano) descobriu o seu livro. Um amigo o transcreveu, em outros papiros (em Firenze). Preservou-se um patrimônio da humanidade, que pode ser visto nesta cidade até hoje.
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