“No julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 583523, realizado na sessão de 03.10.13, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, declarou não recepcionado pela Constituição Federal (CF) de 1988 o artigo 25 da Lei de Contravenções Penais (LCP), que considera como contravenção o porte injustificado de objetos como gazuas, pés-de-cabra e chaves michas por pessoas com condenações por furto ou roubo ou classificadas como vadios ou mendigos. Segundo o ministro Gilmar Mendes, relator do processo, o dispositivo da LCP é anacrônico e não foi recepcionado pela CF por ser discriminatório e contrariar o princípio fundamental da isonomia”.
No meu livro Fundamentos e limites do direito penal (RT) cuidei do tema da seguinte forma: “Delitos de suspeita: um especial grupo dentro dos delitos de “possessão” (ou de simples posse) é constituído pelos denominados delitos de suspeita, que incriminam a posse de uma coisa sob a presunção de que possa ser utilizada em algum delito. A conduta é sancionada in se, porque constituiria, levando em consideração determinadas condições pessoais do sujeito, indício de uma possível intenção de praticar algum delito. Não existe um início de execução desse hipotético ilícito, senão a punição por uma mera presunção da intenção de cometê-lo. Exemplo marcante disso é o art. 25 da Lei das Contravenções Penais (posse de chaves falsas ou gazuas, depois de ter sido condenado por furto ou roubo, desde que não prove o agente a destinação legítima)”.
“No derrogado art. 509 do anterior Código Penal espanhol se previa como crime a posse de gazuas ou outros instrumentos destinados à prática de um furto. () Semelhante fato típico ainda existe na Itália (CP, art. 707). As hipóteses contempladas no art. 25 da LCP (no Brasil) e no art. 707 do Código Penal italiano, além de vulnerarem princípios básicos do Direito penal (ofensividade, materialização do fato etc.), constituem uma categoria jurídico-penal com sérias implicações processuais e constitucionais porque introduzem na descrição legal uma presunção de que a coisa pode ser utilizada na realização de um hipotético delito: e a inversão da carga da prova exigida pelo tipo penal é inconstitucional”.
Acertadamente “o ministro Gilmar Mendes lembrou que a Lei de Contravenções Penais foi instituída por meio de decreto-lei, em 1941, durante o período ditatorial conhecido como Estado Novo. “Não há como deixar de reconhecer o anacronismo do tipo penal que estamos a analisar. Não se pode admitir a punição do sujeito apenas pelo fato do que ele é, mas pelo que faz", afirmou. "Acolher o aspecto subjetivo como determinante para caracterização da contravenção penal equivale a criminalizar, em verdade, a condição pessoal e econômica do agente, e não fatos objetivos que causem relevante lesão a bens jurídicos importantes ao meio social”.
Continua a notícia do STF: “O RE 583523 teve repercussão geral reconhecida pelo Supremo por tratar da admissibilidade constitucional da punição criminal de alguém pelo fato de já ter sido anteriormente condenado e, ainda, por discutir os limites constitucionais da noção de crime de perigo abstrato, o que demonstrou a necessidade de análise da constitucionalidade da norma da LCP. Na ocasião em que foi reconhecida a repercussão geral, o STF considerou que o tema tem profundo reflexo no "ius libertatis", bem jurídico fundamental, e, por este motivo, ultrapassa os limites subjetivos da causa”.
“O recurso foi interposto pela Defensoria Pública do Rio Grande do Sul contra acórdão do Tribunal de Justiça gaúcho (TJ-RS) que manteve a condenação do recorrente, por posse não justificada de instrumento de emprego usual na prática de furto, com base no artigo 25 da LCP, pois anteriormente havia sido condenado por furto. Em sustentação oral na sessão plenária, o defensor público Rafael Rafaelli considerou que o dispositivo da LCP inverte o ônus da prova ao determinar a presunção de culpa de pessoas por sua condição de miserabilidade ou por ter antecedentes criminais”.
“O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, retificou o parecer anterior do Ministério Público Federal (MPF) para considerar que o dispositivo legal não está recepcionado pela Constituição Federal. Em seu entender, a norma dá tratamento jurídico desigual a cidadãos já socialmente desigualados. Segundo ele, ao invés de restabelecer o equilíbrio entre situações díspares acentua a desigualdade”. “A norma acaba por inverter o princípio constitucional da presunção de inocência”, disse.
A interpretação dos delitos de “possessão” como “puros” atos preparatórios e particularmente a interpretação do antigo art. 509 (tenência de ferramentas para o roubo), “levava como conseqüência sua concepção como delitos de suspeita nos que não era necessário nem provar que efetivamente se fossem a utilizar com a finalidade de cometer roubos ou falsidades, sendo suficiente sua posse sem poder provar sua origem” (cf. Corcoy Bidasolo, Mirentxu. Delitos de peligro y protección de bienes jurídico-penales supraindividuales, p. 282). A STC 105/89, não obstante, declarou a inconstitucionalidade desta interpretação do preceito de tenência de ferramentas para o roubo por supor uma inversão da carga da prova que infringia o art. 24.2, C.E., de presunção de inocência.
Cf. Marinucci, Giorgio; Dolcini, Emilio. Corso de Diritto penale, p. 447. A Corte Constitucional espanhola considerou inconstitucional a interpretação do antigo art. 509 que admitia a inversão da carga de prova (cf. STC 105/89).
Precisa estar logado para fazer comentários.