No presente artigo comentarei sobre a proposta do Governo Federal de criar cotas para concursos federais. É sabido que devemos evitar a teofobia e a intenção de muitos de definir como deve ser o pensamento e opinião alheios. As ações afirmativas raciais são outro espaço onde os exageros podem atrapalhar o consenso e o progresso das lutas sociais, que são dever moral de nosso tempo. E sobre elas quero pontuar o exagero da vez e, por isso, um desserviço à causa. Sou defensor das cotas raciais há tempos, já por duas vezes as defendi em audiências públicas no Senado Federal. Escrevi inúmeras vezes artigos em defesa delas, e publiquei, como editor, livros em sua defesa. Invariavelmente ouço ou leio amigos e leitores magoados comigo por eu defender as cotas raciais. Me perdoem, defendo sim.
Pois bem, exatamente por defendê-las venho aqui dizer que quem as conseguiu está perto de começar a destruí-las. Como sempre, pelo exagero. Pela mania humana de, podendo, ir além do que deve. Volto a citar: “A lei, ora a lei, o que é a lei se o Major quiser?” – O que é bom-senso, justiça, razoabilidade, autolimitação dos próprios atos quando o detentor temporário do poder pode ir além?
A meu ver, o exagero só atrapalha. O equilíbrio salvaria a Humanidade.
Vale anotar que insistirei nas cotas raciais pelo menos até que venham as cotas sociais com o devido financiamento e estrutura. Até lá, as cotas raciais ajudam a responder pela urgência de se consertar um país que ainda precisa de alforria. Ou seja, até que se implante um sistema melhor de modo eficiente, não podemos abrir mão dos outros instrumentos possíveis, mesmo que não sejam os ideais.
E onde chegamos agora? Nas cotas raciais nos concursos. Eis o homem, outra vez, abusando. Abuso grave. Já que passaram as cotas nas universidades, porque não também nos concursos? E nas empresas? “Exageremos outra vez! Façamos o que podemos! Aproveitemos o poder para inverter a mão dos abusos!”
Reparem: uma coisa é colorir de todas as nossas cores todos os lugares. Ver negros nos restaurantes finos, ver negras desfilando nas Fashion Weeks, isso será ótimo. Outra coisa é, no afã de acelerar este, de fato, vagarosíssimo processo, errar a mão e prestar um desserviço a todos, inclusive à própria causa.
Não devemos ter cotas raciais nos concursos, como se propõe. Uma coisa é ter cotas nas escolas, nas universidades, nos estágios. Aí sim, pois estamos falando de preparação para a vida e para o mercado. Essas cotas devem ser mantidas, aperfeiçoadas e, com o passar do tempo, obtido seu bom efeito, suprimidas. Mas as cotas nos concursos pervertem o sistema do mérito. Para o direito e oportunidade de estudar, é razoável dar compensações diante de um país e sistema ainda discriminadores, mas não para se alcançar os cargos públicos.
Nesse ponto, as críticas que os contrários às cotas fazem irão fazer sentido: aquilo de se dizer que “Fulano está aqui só por causa das cotas”. Isso pode ser tolerado em uma faculdade, de onde o cotista saia e mostre que, quando tem oportunidades, compete de igual para igual, acha seu espaço ao sol. Contudo, quando estamos diante de um concurso público, ou igualmente de seleção para empresas, influir no sistema de avaliação é uma perversão inadequada. Querer isso é ir além do razoável e, ao se insistir na tese, presta-se um desserviço ao país e à causa.
Os motivos são bem claros: é lícito dar a quem quer estudar algum diferencial competitivo, compensador de uma ou outra circunstância. De modo diametralmente oposto, é abusivo repetir tais privilégios quando o assunto é o ingresso definitivo no mercado de trabalho. Simples assim. Cotas: para estudar, pode; para arrumar emprego, aprenda como todo mundo. Venha disputar sua vaga em condições de igualdade, e que passe o melhor preparado: branco, preto, pobre, rico, gay, hetero, bonito ou feio.
Como disse um professor de Direito Constitucional que conheço, “daqui a pouco quem se sente ‘normal’, quem não for negro, índio, gay, cadeirante, obeso mórbido, filho de bombeiro ou PM morto em serviço estará em risco de extinção, sem poder disputar as vagas públicas e privadas, loteadas por toda sorte de regalias para quem se articulou nos Legislativos ou nos órgãos de ‘promoção da igualdade’ de quem quer que seja. Pior que tudo, cada vez menos se estimulará o estudo e o trabalho, o mérito e o esforço, porque a partir de agora para entrar nos cargos, ou nos empregos, bastará ter carteira de espoliado. Será o tempo em que quem não tiver nenhum argumento para ser prestigiado ingressará com ação judicial onde pedirá apoio, e algum juiz ou tribunal deverá, em um ‘salto triplo carpado hermenêutico’, provavelmente rasgando algum texto legal, proteger por fim a última classe a não ter algum favor legal que substitua o mérito. Será um país onde o estudo e o trabalho serão substituídos pelo, já anunciado antes, ‘princípio do coitadinho’.”
As políticas afirmativas acolhidas pela Constituição são aquelas direcionadas ao fim da desigualdade, e não à sua perpetuação. Contudo, a forma como está se promovendo a igualdade é equívoca e tacanha, vez que não cria mecanismos para que a realidade social mude nem estímulo pessoal para o esforço. Existem muitas portas para se ingressar em programas sociais, cotas, gentilezas públicas, verbas a serem mal versadas, e poucas portas para que as pessoas saiam dos favores do governo, ou das situações onde os favores são justificáveis.
Prefiro um país onde os espoliados sejam amparados e onde tenham oportunidade de estudar, de aprender, mas que na hora de se definir de quem é uma vaga, que ela seja do mais bem preparado. Será um país de sonho. Parafraseando o Pastor Martin Luther King Jr, um país onde todos possam estudar, mas em que, na hora de as pessoas conseguirem um emprego ou cargo público, “elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”. Para ingressar nos cargos, nem valerá ser negro, ou índio, ou bonito, ou feio, ou gay, ou hetero, ou do partido, ou muito amigo. Para ingressar nos cargos, competência. E isso fará com que todos estudem.
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