Amigos,
Alerto que tenho dois artigos sobre o tema "cotas", um defendendo as cotas nas universidades, outro criticando as cotas nos concursos. Sugiro que os dois artigos sejam lidos para entender a distinção que faço. De qualquer forma, segue um resumo aqui, criado a propósito de responder uma das muitas mensagens que recebi sobre o tema que transcrevo a seguir:
"Prezado Professor Mestre William Douglas,
Respeito muito sua mudança de opinião e, principalmente, sua postura em admitir abertamente esta mudança. Sim, somos todos "metamorfoses ambulantes". Graças a Deus, pois é isso que nos permite reparar nossos erros.
Entretanto, me perdoe, mas seu texto não entrou no mérito do porquê de cotas raciais e não sociais; ele se perdeu na emoção (o que não é nenhum demérito). Não quero aqui fazer uma crítica vazia (típica de quem discorda, mas não tem argumentos), até porque ainda estou um pouco ‘no muro’ sobre o tema, embora eu permaneça mais a favor das cotas sociais do que das raciais. É que, realmente, fiquei com a sensação de que seu novo posicionamento está tão fundado na emoção que experimentou, durante o convívio com pessoas negras em ambientes de extrema miséria e opressão, que o senhor acabou não entrando no mérito da questão. E não me refiro ao mérito jurídico, mas ao mérito retórico mesmo (se é que se pode assim classificá-lo).
Observe que o senhor menciona a realidade que presenciou e diz que foi isso que o fez mudar de posicionamento; mas não explica exatamente o porquê das cotas raciais serem melhores do que as cotas sociais (baseadas em renda).
Faço esta provocação (que, espero, seja recebida positivamente) apenas porque sempre acreditei que as cotas sociais trariam, necessariamente, o efeito positivo buscado com as cotas raciais, porém, sem o problema discriminatório destas (do ponto de vista de necessária classificação das pessoas pela cor da pele). Uma vez que, nas classes mais pobres, predominam as pessoas negras, as cotas sociais trariam o bônus das cotas raciais sem o ônus da separação por cor de pele, não?
Por favor, meu posicionamento não nega o problema grave do racismo no nosso país, cuja origem é cultural e não econômica (suas consequências é que são econômicas). Porém, considero que a cota racial traz diversos outros problemas, os quais o senhor conhece, pois já discorreu sobre eles.
No mais, obrigado por mais uma aula e espero que este e-mail me proporcione outra aula sobre o assunto.
Atenciosamente,
‘X’ | 28 anos | Salvador/BA”
Minha resposta para ele:
Caro “X”,
Agradeço seu e-mail, colocações e elogios. E elogio sua postura, educação e argumentos. Seus argumentos são bons.
Em resumo, sou a favor das cotas econômicas e raciais para universidades e estágios, mas contra quaisquer cotas nos concursos. A lógica é simples: uma coisa é dar condições para competir (estudo), outra é criar, na competição pelas vagas, uma distinção não baseada no mérito. Isso significa a redução do critério do mérito o que, finalmente, leva à acomodação do governo, que, fatalmente, deixará de resolver os problemas reais da estrutura. Ao invés de criar políticas que tornem os segmentos capazes de competir, o governo, ao que parece, prefere fraudar a competição.
Eu também sou um defensor das cotas econômicas (sociais) em detrimento das raciais, mas não acredito que estas últimas, quando bem aplicadas, sejam má ideia, apesar de todas as dificuldades para sua execução. É difícil implementar qualquer ação afirmativa, mas ainda mais difícil é dormir em paz enquanto a injustiça social permanece viva.
Meu principal foco para aceitar as cotas raciais (na educação, universidades e estágios, enfatizo) decorre de reconhecer que o pobre negro, notadamente, tem de enfrentar dois muros ao passo que o pobre branco "apenas" um. Quando digo um "muro", ou dois, me refiro a um conjunto de circunstâncias que vão desde os preconceitos até a estrutura emocional, passando por todo o largo espectro de obstáculos que pobres de todas as raças e cores enfrentam.
As cotas econômicas são bem melhores que as raciais, não tenho dúvida disso. Creio que se deve investir mais nelas, e mais ainda em enfrentar a questão estrutural da precarização da educação, especialmente em áreas mais carentes. Mas enquanto não é feita essa reforma de base, vejo com bons olhos recorrermos às ações afirmativas que funcionam com um paliativo útil. Em meio a tudo isso, no entanto, temo que o governo se acomode com esses paliativos, afinal, não podemos contar só nas ações "emergenciais" e não resolver a questão de fundo. Contudo, creio que por algum tempo podemos acumular modelos diferentes de ações afirmativas quando se acumularem também os motivos que as justificam.
Eu não diria que foi a emoção que me fez mudar de opinião sobre as cotas nas universidades, mas sim testemunhar a realidade. E é como quem testemunha dela que não quero que aqueles heróis que estudam sejam tachados de incompetentes nos concursos por ter acesso diferenciado aos cargos públicos.
Estou certo que resolvendo a questão da educação (onde as cotas têm sentido assegurando que todos tenham o direito e o acesso às informações) o povo negro, e também o povo pobre, de todas as cores, mostrará que é capaz de competir para assumir qualquer cargo.
Repito: alguns ativistas do movimento negro erram quando forçam teses que mais prejudicam do que ajudam, e é nesse ponto que reside o exagero das cotas nos concursos públicos. Nesse campo aponto o seguinte: se entre os mais pobres existem mais negros que brancos, as cotas econômicas (para estudar) alcançarão mais negros ainda.
Apesar disso, repito: tenho pressa, a pressa de que Betinho falava. Quem tem fome de justiça também tem essa pressa. Portanto, que tenhamos ambas as cotas e aceleremos o processo, mas que lutemos por cotas inteligentes e bem aplicadas. E essa razoabilidade se alcança com percentuais melhor estruturados.
Aliás, espero que o Itamaraty já tenha excluído aquele branco de olhos verdes que usou a cota para negros.
Enfim, concordo com você: cotas econômicas (sócias, como diz) são melhores, mas voto em ter as duas. Mas as duas para o estudo, nunca para se escolher quem tomará posse em um cargo público.
Já que devemos provocar, resta uma pergunta: vai valer para o Congresso também? E para a Presidência da República? Que tal seria se após quatro presidentes brancos tivéssemos uma cota racial para Presidente, e fosse obrigatório escolher um negro?
Bem, o debate está posto. Que possamos escolher os melhores caminhos.
Obrigado por sua mensagem, e grande abraço para o amigo.
William Douglas, juiz federal/RJ, professor e escritor, mestre em Direito (UGF), Pós-graduado em Políticas Públicas e Governo (EPPG/UFRJ). William é militante da EDUCAFRO mas nestes artigos está se manifestando no plano pessoal.
Para simplficar, eis os links:
Artigo a favor das cotas nas universidades/estágios/bolsas:
http://blogwilliamdouglas.blogspot.com.br/2009/03/carta-aberta-ao-senado-e-ao-povo.html
Artigo contra as cotas nos concursos públicos:
http://blogwilliamdouglas.blogspot.com.br/2011/05/cotas-raciais-nos-concursos-o-exagero.html
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