Ao início do mês de dezembro de 2008, exatamente alguns meses após a comemoração dos 90 anos[1] de criação do Tribunal de Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul, eclodiu uma série de acusações contra a citada Corte, da parte de um representante do Ministério Publico gaúcho, o Dr. João Barcelos de Souza Júnior[2], acusações logo secundadas pelo próprio Presidente do Tribunal de Justiça daquele Estado, o Desembargador Armínio da Rosa, o qual, de forma inusitada, propôs a própria extinção do TJM, anunciando que a Cúpula do TJRS estaria, segundo ele, a preparar um projeto de iniciativa do Tribunal que preside naquele sentido.
As razões, tanto do Promotor de Justiça quanto do Desembargador Presidente foram basicamente as mesmas, as quais enumeramos na sequência.
Para o representante do Ministério Público, o Tribunal de Justiça Militar gaúcho está contaminado pelos seguintes fatores: prática de nepotismo, interferência do Tribunal em relação aos magistrados de primeiro grau, uso recorrente de habeas corpus, corporativismo em favor de oficiais, e custo elevado pela demanda de serviços que presta.
Já para o Presidente do Tribunal de Justiça do Estado, “o Tribunal de Justiça Militar é desnecessário”, não justificando a sua estrutura para a demanda que ela possui e o custo que representa.[3]
Foi citado como precedente para a pretendida extinção, projeto de emenda constitucional que tramita na Assembléia Legislativa de Minas Gerais[4], com a mesma finalidade.
Em que pese os argumentos apresentados, de todo respeitados, pedimos vênia, para considerar a proposta de extinção da Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul, carente de razoabilidade e proporcionalidade, demonstrativa do desconhecimento da Justiça Militar e, principalmente, carente de constitucionalidade sob a ótica da Carta Magna vigente, conforme demonstraremos mais a frente.
Passemos, portanto, à análise de cada uma das razões apresentadas.
2. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE NA PROPOSTA
Acompanhamos, com pesar, a atenção midiática que se deu a uma série de denúncias feitas pelo representante do Ministério Público gaúcho atuante na Justiça Militar: nepotismo, interferência do Tribunal junto aos magistrados de 1º grau, uso recorrente de habeas corpus, corporativismo favorecendo os oficiais da Brigada Militar e alto custo do Tribunal para os cofres do Estado.
Desde já deixamos claro que não temos conhecimento direto dos fatos denunciados, por isso vamos nos abster de qualquer juízo de valor sobre eles. Mas, com a vinda de membros do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, para realizar uma auditoria na Corte castrense, razoável supor que as denúncias serão devidamente apuradas, e as medidas necessárias serão tomadas para corrigir eventuais desvios que se apresentem.
A prática de nepotismo, que tanta controvérsia tem causado, não só no Poder Judiciário, mas também no Executivo e no Legislativo, vem sendo combatida com rigor, a tal ponto que o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 13, razão pela qual, ainda que comprovado algum caso de nepotismo, não seja tal fato motivo para a extinção do Tribunal, bastando que se use o instrumento adequado para o descumprimento da Súmula Vinculante, no caso, a Reclamação ao STF, nos termos do art. 103-A, § 3º, da Constituição Federal. E isso, se a situação não for regularizada em nível de CNJ.
Interferência do Tribunal em relação aos magistrados de 1º grau é algo que temos certa dificuldade em visualizar já que os juízes togados – integrantes da carreira da Magistratura estadual e da Nação gozam de garantias e prerrogativas constitucionais (CF, art. 95). Representam o Estado-Juiz, são independentes, e ainda que aquele Tribunal de Justiça possua o adjetivo “militar” em sua designação, integra o Poder Judiciário gaúcho e não faz parte da estrutura da Brigada Militar, instituição que se encontra na condição de jurisdicionado. A hierarquia e disciplina que são atributos indispensáveis da instituição policial militar rio-grandense não se estendem para os magistrados da Justiça especializada que tutela a Brigada Militar (os princípios da hierarquia e disciplina).
Portanto, mesmo que o CNJ constate alguma irregularidade no TJM, é de se supor (em nome da presunção de legitimidade dos atos da Corte), que essas sejam pontuais, e nunca institucionais, como se possa, equivocadamente, sugerir.
Quanto ao uso recorrente de habeas corpus, que se poderá dizer? Esta é uma garantia constitucional posta em favor de qualquer cidadão – ainda que seja Oficial militar -, que tenha, em algum momento, lesão ou ameaça de lesão a sua liberdade de ir e vir.
Acreditamos que o Tribunal de Justiça Militar não conceda HC sem ter ao menos, sido provocado. Isto porque uma das principais características da jurisdição – e garantia de sua imparcialidade, é a inércia processual. Ademais o pedido pode ser interposto sem qualquer formalidade, por qualquer pessoa, e também pelo Ministério Público se constatar que alguma pessoa carece da proteção constitucional.
Portanto, o número excessivo de habeas corpus não pode ser motivo para a extinção do Tribunal de Justiça Militar, principalmente porque eles partem em defesa dos réus. Mesmo porque, previsto no art. 5º, LXVIII, da Carta Magna, tal instituto, por se constituir em cláusula pétrea, sequer está sujeito à deliberação de proposta de emenda constitucional (CF, art. 60, § 4º, inciso IV).
A tentativa de comparação entre o volume de processos do Tribunal de Justiça gaúcho com o volume da Corte castrense não serve de paradigma como pretendido.
Com efeito, uma análise serena irá revelar que o Tribunal de Justiça Militar tem como jurisdicionados os integrantes da Brigada Militar: os da ativa (22.133) e, eventualmente os da reserva (16.810), totalizando 38.943 jurisdicionados.[5] Já o Tribunal de Justiça do Estado tem a população do Rio Grande do Sul, 10.582.887[6] pessoas como jurisdicionados. Ora, não parece difícil perceber que o número de jurisdicionados do Tribunal de Justiça do Estado é mais de 250 vezes os jurisdicionados da Justiça Militar. Pretender que as demandas sejam equivalentes é ignorar regras de matemática e de possibilidade física do juiz.
Como já foi dito durante os trabalhos da Constituinte em 1986, não será acrescendo à massacrante carga de processos que sobrecarregam os tribunais de justiça, nem ostentando estatísticas, que o Judiciário alcançará os níveis desejáveis de prestígio, em índices acabrunhantes na atualidade.[7]
A Justiça Militar Estadual é uma Justiça especializada, que hoje tem por competência o processo e julgamento dos crimes militares e das ações judiciais contra atos disciplinares militares das polícias e dos corpos de bombeiros militares. Tutelam os valores das forças militares estaduais, a disciplina e a hierarquia, contribuindo para a regularidade dessas instituições, que são encarregadas de missão constitucional em favor da sociedade a que servem: a polícia ostensiva e a própria preservação da ordem pública. Por isso é Justiça que se mede pelo alto grau de especialização e não pelo mero número de processos. Aliás, imaginar-se o TJM abarrotado de processos é visualizar a Brigada Militar como um reduto de criminosos, o que, a toda evidência, não se pode pretender. Policiais Militares representam a Força do Estado, são regidos por regras próprias e diversas do cidadão comum. Saem diuturnamente às ruas e podem agir contra aqueles a quem deviam proteger. Por isso devem ser controlados. “Sem controle, a força armada pode oferecer riscos às instituições: voltar-se contra elas, mitigá-las ou destruí-las.” [8]
Isso já seria suficiente para concluir que a proposta do Presidente do Tribunal de Justiça se apresenta carente de razoabilidade e proporcionalidade (para usarmos termos tão em voga ultimamente), mais se assemelhando à decisão do médico, que diagnosticando um tumor ainda não comprovado pelos exames necessários, resolve cortar a perna do paciente!
Outras considerações, entretanto se fazem necessárias.
3. FAVORECIMENTO DE OFICIAIS, CORPORATIVSMO, ETC.
Os motivos apresentados para a extinção do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul incluem ainda o favorecimento de oficiais, condenação só de praças, corporativismo, etc.
A cantilena é antiga e se repete de tempos em tempos.
Já em 1986, por ocasião dos trabalhos da Constituinte, a Associação dos Magistrados das Justiças Militares Estaduais – AMAJME, juntamente com a Presidência dos Tribunais Militares de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo, editou um pequeno, mas precioso livreto, com objeções e respostas relacionadas ao funcionamento da Justiça Militar Estadual[9], que atualmente, ainda se fazem pertinentes.
Em documento encaminhado a Assembléia Legislativa[10], o Presidente do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul, Juiz-Coronel Sérgio Antonio Berni de Brum, apresentou aos senhores Deputados, dados estatísticos que vão de encontro às denúncias feitas contra a referida Corte. Assim, tomando-se por base o 1º semestre de 2008, de todos os julgamentos ocorridos em 1º grau de jurisdição, foi verificado um porcentual de 87,7% de recursos da parte da Defesa contra um porcentual de 12,2% de recursos oriundos do Ministério Público, o que permite concluir que a maioria das decisões proferidas pelos Juízes de Direito e pelos Conselhos de Justiça vai de encontro ao entendimento do Ministério Público.
E não se diga que o reduzido número de recursos apresentados pelo Ministério Público se dá em decorrência do número de condenações, pois no mesmo 1º semestre de 2008, segundo dados do Tribunal de Justiça Militar, 63,1% dos processos julgados foram de absolvições, contra 36,9% de condenações.
Ainda de acordo com a os dados apresentados aos parlamentares gaúchos, não é verdade que não se condena oficiais, principalmente oficiais superiores. No ano de 2007 o Tribunal condenou 28 (vinte e oito) oficiais, entre Superiores, Intermediários e Subalternos, nenhum, diga-se de passagem, prescrito. Das 298 condenações ocorridas em 2007 na Justiça Militar gaúcha, 8,05% foi de Oficiais. Ressalte-se que aproximadamente 8% do efetivo total da Brigada Militar é composto por Oficiais, o que mostra o equilíbrio das decisões.[11]
4. CUSTO E DEMANDA DE SERVIÇO
Um dos pontos altos das denúncias proferidas contra o Tribunal de Justiça Militar foi o “alto custo” para seu funcionamento e manutenção. Conforme já referido ao início, o próprio Presidente do Tribunal de Justiça do Estado considerou que a extinção da Justiça especializada será um grande momento para o Estado, que seu custo (cerca de R$ 23,5 milhões em 2008) é alto e que seus funcionários representariam um ganho para a Justiça comum, que necessita de pessoal e que passaria a julgar crimes cometidos por servidores da Brigada.
Já o Promotor de Justiça autor das denúncias iniciais entende que este dinheiro faria chover para cima na Brigada Militar e na Polícia Civil.[12]
É no mínimo curioso que o Presidente do Tribunal de Justiça considere alto o custo orçamentário do Tribunal de Justiça Militar e que não tenha referido que esse mesmo custo representa apenas – e tão somente 0,11% do orçamento do Estado e, principalmente, 1,57% do orçamento do Tribunal de Justiça para o mesmo ano que é cerca de 1,5 bilhões de reais [13]. Fica difícil aceitar que essa pretendida transferência fosse de alguma forma, revitalizar o Judiciário do Estado.
Da mesma forma – e aqui apenas para argumentar, ainda que se extinguisse a Justiça Militar, seu orçamento jamais iria fazer chover para cima nas duas polícias estaduais, por um simples motivo: existe uma separação de poderes e o orçamento das polícias está inserido no orçamento da Secretaria de Segurança, que é subordinada ao Governo do Estado, e não se confunde com o Poder Judiciário, ao qual está assegurada autonomia administrativa e financeira, nos termos do art. 99 da Constituição Federal.
Com toda certeza se faz necessário uma injeção de recursos na segurança pública deste imenso país e o Rio Grande do Sul não foge à regra, mas isto somente ocorrerá quando houver a consciência política de que segurança pública é antes de tudo um dever do Estado (CF, art.144), e, portanto não pode ser plataforma política de ninguém.
5. OUTRAS TENTATIVAS DE EXTINÇÃO DO TJM-RS
Esta é a terceira vez que se grita tão alto contra a Justiça Militar do Estado. Octavio Augusto Simon de Souza[14] lembrou com muita clareza que a Constituição Estadual de 1967, surpreendentemente, suprimiu a então Corte de Apelações (atual TJM), passando suas competências para o Tribunal de Justiça. Então, o Governador Walter Peracchi Barcellos representou ao Procurador-Geral da República, para ingressar com uma ação direta de inconstitucionalidade ante o Supremo Tribunal Federal, que a rejeitou em virtude da opção concedida aos Estados pela Constituição Federal[15]. E a publicação no Diário Oficial da União ocorreu somente em junho de 1969, tendo havido recurso em face da decisão majoritária.
Assim, no decorrer de toda essa tramitação e daquele período de tempo, sem decisão definitiva, o Tribunal Militar do Estado continuou a exercer suas funções e a julgar as apelações vindas da primeira instância. Em seguida, veio a lume a Emenda Constitucional nº 1, de 17.10.1969. Os Tribunais Militares antigos foram mantidos e retornou-se ao status quo ante.[16]
Posteriormente, em 1981, um deputado estadual propôs emenda à Constituição Estadual, buscando a extinção do Tribunal Militar, sob a justificativa da auto-organização do Estado, conferida pela Constituição Federal de então. Ele argumentou que o Estado poderia adotar “o princípio democrático de submeter seus policiais militares ao julgamento da justiça comum em segunda instância” [17]. A proposta recebeu parecer favorável da Comissão de Constituição e Justiça, e a Assembléia Legislativa gaúcha aprovou-a em outubro de 1981. Contudo, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade da Emenda, por vício de iniciativa.[18]
O saudoso Ministro Soares Muñoz, constou do seu voto, o seguinte:
“(...) Não cabe à Assembléia Legislativa iniciar processo legislativo visando à reforma da organização e divisão judiciárias do Estado[.] O poder constituinte dos Estados-Membros não é originário e nem absoluto; é derivado e dependente da ordem jurídica instituída na Constituição Federal. Aquilo que as Assembléias Legislativas estaduais não podem fazer através de lei ordinária, em face da matéria pertencer à iniciativa de outro Poder, não o podem, também, por vida de emenda constitucional.”[19]
Aproveitando o momento, e já que foi citada como precedente a ser seguido, já se pode verificar que a proposta de emenda constitucional nº 37/2007, de autoria do Deputado Durval Angelo, do PT, visando a extinção do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, padece da mesma inconstitucionalidade, ou seja, vício de iniciativa.
6. O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO
Neste ponto parece estar bem claro que ainda que a eventual proposta de extinção do Tribunal Militar tenha seu trâmite na Assembléia Legislativa, carece esta Casa de Leis de legitimidade para a iniciativa da proposta.
A questão se resume, portanto, em saber se o Tribunal de Justiça teria – ou não, legitimidade para tanto.
Uma leitura apressada nos dispositivos do art. 125, § 3º, da Carta Magna poderia levar à conclusão afirmativa. Todavia, a questão não é tão simples como parece, merecendo inclusive uma reflexão histórica.
Com efeito, dispõe o art. 125, § 3º da Constituição Federal que ‘a lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar Estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes’ (com a redação determinada pela EC n. 45/2004).
Aos menos avisados o dispositivo conteria uma faculdade, retratada pela locução verbal “poderá criar”, e dai a conclusão lógica de que, aquele que pode criar poderia, evidentemente, extinguir, principalmente porque compete aos tribunais de justiça a criação e extinção de cargos e a alteração da organização e da divisão judiciárias (CF, art. 96, inciso II, letras ‘b’ e ‘d’).
Esta, entretanto, é uma meia verdade.
Primeiro, porque a Justiça Militar Estadual sempre existiu, e sua história confunde-se com a evolução dos Estados-Membros, em um entrelaçamento difícil de desfazer.
Segundo, porque sempre é bom lembrar que em nível constitucional[20], nem a Carta Imperial de 1824, nem a Constituição da República de 1891 fizeram qualquer menção em seus textos à Justiça Militar. A Constituição de 1934 previu a Justiça Militar da União (artigos 84 a 87), no que foi secundada pela Constituição de 1937 (artigos 111 a 113). Foi a Carta Magna de 1946, que tratou em seu texto da Justiça Militar Estadual (art. 124, XII), prevendo como órgão de primeira instância os Conselhos de Justiça e como de segunda instância um Tribunal Especial ou Tribunal de Justiça. Foi exatamente a Constituição Federal de 1967 que, mudando a redação dos dispositivos referentes à Justiça dos Estados, dispôs que a lei, mediante proposta do Tribunal de Justiça, poderia criar Justiça Militar Estadual, tendo como órgão de primeira instância os Conselhos de Justiça e de segunda um tribunal especial ou Tribunal de Justiça (art. 136, § 1º, d). Ficou a Justiça Militar Estadual pendente, para ser criada nos Estados, de proposta do Tribunal de Justiça, no entanto, repisem-se, todos os Estados da União já possuíam sua Justiça Militar. A grande mudança ocorreu com a Emenda Constitucional nº 1, promulgada em 17.10.1969, a qual, ao prever a Justiça Militar dos Estados, dispôs ser a mesma constituída em primeira instância pelos Conselhos de Justiça, que terão como órgãos de segunda instância, o próprio Tribunal de Justiça (art. 144, IV, letra d). Conquanto tenha sido abolida a possibilidade de serem criados os tribunais especiais, fixando a competência recursal para o próprio Tribunal de Justiça, o art. 192 da Emenda nº 1, declarou: são mantidos como órgãos de segunda instância da Justiça Militar Estadual, os tribunais especiais criados, para o exercício dessas funções, antes de 15 de março de 1967, ou seja, as Cortes de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo.
Já a Carta Magna de 1988, trouxe novamente a possibilidade do Tribunal Militar Estadual, que havia sido abolida pela Emenda Constitucional nº 1/69, condicionando, entretanto, sua criação à existência de um efetivo militar superior a 20 mil integrantes do Estado considerado.
Daí porque se pode afirmar que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul não tem legitimidade para propor a extinção do Tribunal Militar do Estado, pela incidência, ao caso, do princípio da proibição do retrocesso, também chamado de princípio da não-regressão.
Ora, o princípio da “não regressão”, também mencionado na doutrina jurídica como “cláusula de não-regressão”, está desde há muito presente no direito internacional. No direito comunitário europeu, encontra-se nomeadamente relacionado às liberdades de circulação de mercadorias, pagamentos, capitais e pessoas, proporcionando a “livre-circulação” das mesmas.[21]
Tal princípio, todavia, não ficou restrito ao âmbito do direito comunitário europeu. No Brasil, a discussão, ainda incipiente, dirige-se para os direitos sociais conquistados em atenção ao princípio da dignidade humana.
Com efeito, pondera Álvaro dos Santos Maciel, que na medida em que a dignidade da pessoa humana é elevada como fundamento constitucional, surge o chamado “princípio de não-retrocesso
social” também denominado por alguns doutrinadores de aplicação progressiva dos direito sociais, visando à garantia e progresso de conquistas alcançadas pela sociedade.
Este princípio foi expressamente acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro através do Pacto de São José da Costa Rica e caracteriza-se pela impossibilidade de redução dos direitos sociais amparados na Constituição, garantindo ao cidadão o acúmulo de patrimônio jurídico.
A vedação de retrocesso social na ordem democrática, especialmente em matéria de direitos fundamentais sociais, pretende evitar que o legislador infraconstitucional venha a negar (no todo ou em parte essencial) a essência da norma constitucional, que buscou tutelar e concretizar um direito social resguardado em seu texto. A inclusão de tal proibição na ordem jurídica deu-se para impedir a violação do núcleo essencial do Texto Magno, e, por conseqüência, a supressão de normas de justiça social.[22]
A jurisprudência nacional, tendo em vista a quem é dirigido o princípio da proibição de retrocesso (legislador ou constituinte derivado), ainda não apresenta julgados em que reconhecida expressamente a aplicação judicial de tal norte interpretativo. Contudo, não é difícil constatar, por exemplo, que tendo a Constituinte de 1988 elevado o Ministério Público brasileiro à condição de defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos direitos sociais e individuais indisponíveis, dotando-o de sólidas prerrogativas funcionais e institucionais, não poderá o Constituinte estadual, restringir suas prerrogativas nem restringir seu campo de atuação.
Guardadas as devidas proporções, o raciocínio para os Tribunais Militares dos Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo é o mesmo. Quando a EC nº 1/69, aboliu a possibilidade de criação de novos tribunais militares estaduais, ressalvou aqueles criados antes de 15 de março de 1967 (MG, RS e SP), portanto, reconhecendo-lhes a legitimidade necessária para continuar existindo na sociedade brasileira. Foi uma conquista social legítima de cada uma dessas Cortes estaduais.
Diz-se conquista social porque, a Constituição Federal de 1988, ao tratar dos Direitos e Garantias Fundamentais, afirma, textualmente, em seu art. 6º, caput, serem direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados e, claro, o direito à segurança.
O direito à segurança social (segurança material) integra no dizer de José Afonso da Silva, a categoria dos direitos sociais do homem consumidor[23] e, dizemos nós, abrangem, não só o exercício da segurança pública propriamente dita, como de todos os organismos estatais responsáveis pela concretização dos direitos estabelecidos no caput do art. 6º, neles incluídos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro, e aqueles que exercem funções essenciais para a administração da Justiça.
Portanto, a existência do Tribunal Militar do Rio Grande do Sul é muito mais uma garantia à sociedade gaúcha do que à Brigada Militar, já que a Corte tem como seus jurisdicionados exatamente aqueles a quem a Carta Magna conferiu o exercício da polícia ostensiva e a própria preservação da ordem pública, e como já se disse anteriormente, a força tem que ser controlada, sob pena de poder voltar-se contra a população a quem deve servir.
Isto não significa que a Justiça Militar não possa ser modificada ou extinta em tempo de paz, conforme já ocorreu em alguns países, como Portugal por exemplo.
Mas isso há que ser feito de forma serena, estudada, e acima de tudo, no foro legítimo, que é o Congresso Nacional, a cargo da Constituinte brasileira.
Da forma como está sendo proposta, a extinção do Tribunal Militar do Rio Grande do Sul se apresenta como inconstitucional, de duas formas: por ilegitimidade de iniciativa, caso a proposta seja da Assembléia Legislativa; por violação da violação do princípio da proibição do retrocesso, caso a proposta seja do Tribunal de Justiça.
Com a devida vênia, para nós, a proposta carece ainda de razoabilidade e proporcionabilidade em face das circunstâncias fáticas apresentadas como eventuais desvios do Tribunal e que não justificam a sua extinção.
Não se esqueça igualmente que o Tribunal Militar do Estado não é composto apenas por Oficiais da Brigada Militar, mas dele fazem parte, legitimamente juízes que são representantes do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil e da Magistratura estadual, em uma composição que envolve ainda a participação do Governo do Estado e de sua Assembléia Legislativa.
Com a palavra a sociedade organizada, os representantes do povo, o Poder Judiciário gaúcho e, se for o caso, o Supremo Tribunal Federal.
[1] ‘ No Rio Grande do Sul, a Justiça Militar existiu mesmo antes da Justiça comum. Chegou a bordo das naus portuguesas que integravam a expedição militar de Silva Paes, em 1737’. Apud GARCIA, João Carlos Bona. Tribunal Militar do Estado do Rio Grande do Sul: 85 anos. Revista Direito Militar nº 41, Florianópolis, maio / junho de 2003, p.17.
[2] Promotor faz denúncia sobre o TJM-RS. Porto Alegre: Jornal Correio do Povo, 05.12.2008.
[3] Judiciário estuda fim da Justiça Militar. Zero hora.com, disponível em zerohora.clicrbs.com.br, acesso em 18 de dezembro de 2008.
[4] PEC 37/2007, de autoria do Deputado Durval Angelo, do PT. Publicada no Diário do Legislativo em 29.11.2007. A proposta parece ter sido rejeitada e, ao contrário, houve expansão de Auditorias Militares para o interior de Minas Gerais, que até então contava com Auditorias somente na Capital.
[5] Fonte: Brigada Militar perde efetivos:www.zerohora.clicrbs.com.br. Dados de 28.05.2008, acesso em 04.01.2009.
[6] Dados do Censo / IBGE-2007, disponível em WWW.scp.rs.gov.br/ATLAS/atlas.asp?menu=292, acesso em 04.01.2009.
[7] A Justiça Militar Estadual e a Constituinte: Aspectos fundamentais. Porto Alegre: Diretoria da Revista de Jurisprudência e outros impressos do TJM/RS, 1986, p.8.
[8] Idem, p. 5.
[9] A Justiça Militar Estadual e a Constituinte: Aspectos fundamentais, já citado.
[10] Encaminhado pelo Ofício nº 010/2009, do TJM/RS, em data de 13.01.2009.
[11] Dados constantes do documento Respostas às manifestações do Promotor, entregue mediante ofício na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, em data de 13.01.2009.
[12] Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 05.12.2008.
[13] Jornal Zero Hora, idem.
[14] Juiz civil do TJM/RS, integrante do quinto constitucional, oriundo do Ministério Público.
[15] ADIN 749-RS/67. Decisão publicada na RTJ 50/738, em dezembro de 1969.
[16] Justiça Militar: uma comparação entre os sistemas constitucionais brasileiro e norteamericano. Curitiba: Editora Juruá, 2008, p.104
[17] Justificativa apresentada pelo Deputado Ibsen Pinheiro na PEC 30/81.
[18] ADIN 1.102-0/RS.
[19] Justiça Militar: uma comparação entre os sistemas constitucionais brasileiro e norteamericano, p. 105.
[20] Vide a Justiça Militar Federal e Estadual em face das Constituições Brasileiras, in ASSIS, Jorge Cesar de. Justiça Militar Estadual. Curitiba: Editora Juruá, 1992, páginas 40-48.
[21] Parecer n° 03/05 da Ordem dos Advogados de Portugal. Disponível em:<htpp://www.oab.pt>. Acesso em 12.07.2007.
[22]Do princípio do não retrocesso social. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1926>, acesso em 15.01.2009.
[23] Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p.290.
Membro do Ministério Público da União. Promotor da Justiça Militar, exercendo suas atividades na Procuradoria da Justiça Militar em Santa Maria/RS. Oficial da reserva não remunerada da Polícia Militar do Estado do Paraná, lecionou na Academia Policial Militar do Guatupê e no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças. Foi também Promotor de Justiça do Paraná, entre os anos de 1995 a 1999. Sócio fundador da Associação Internacional das Justiças Militares e membro correspondente da Academia Mineira de Direito Militar. Articulista assíduo em várias revistas jurídicas e Palestrante do Direito Militar, em inúmeros eventos, destacando-se o 1º Encontro Internacional de Direitos Humanos, Direito Penal e Direito Militar, realizado em Brasília/DF, em novembro de 2000, e o II Encontro Internacional de Direito Humanitário e Direito Militar, realizado em Florianópolis/SC, em dezembro de 2003. Semana de Reflexão sobre a Justiça Militar, realizado na cidade de Praia, República de Cabo Verde, em março de 2008, aonde palestrou a convite do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas daquele país, e o 3º Encontro de Direito Humanitário e Direito Militar, realizado pela Associação Internacional das Justiças Militares-AIJM, na cidade de Santiago, Chile, em maio de 2008, onde atuou na condição de Secretário Geral - Ad Hoc, da AIJM. Autor de livros relacionados a área militar. Site: www.jusmilitaris.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ASSIS, Jorge Cesar de. A inusitada proposta de extinção da Justica Militar Gaúcha Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jan 2009, 02:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/177/a-inusitada-proposta-de-extincao-da-justica-militar-gaucha. Acesso em: 24 nov 2024.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
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