Segundo ensina Lima Vaz aquilo que se tornou consenso chamar de “crise da modernidade” a desembocar no chamado pensamento “pós – moderno”, não tem como referencial a “modernidade” que se costuma indicar com o advento do pensamento cartesiano (René Descartes). Essa seria uma modernidade mais recente. A verdadeira modernidade é encontrável bem anteriormente na linha temporal no século VI a.C. com o surgimento do pensamento dos “físicos” ou “Filósofos da Natureza” pré – socráticos. Mais especificamente o marco se encontra no pensamento de Tales de Mileto. Com esse filósofo inicia-se uma tradição da filosofia ocidental, uma “moda” ou um “modo” de pensar, donde se pode derivar a palavra “modernismo”.
Esse “modo” de pensar, de fazer filosofia é um projeto que tem pelo menos 26 séculos de tradição e se caracteriza pela busca incessante da compreensão do mundo por meio de um princípio unitário, unificador, o que nada mais é do que uma manifestação da natureza da razão humana que tende a unificar as coisas. Por exemplo, quando se pensa numa cadeira, há uma ideia de cadeira com certos atributos que pode ser aplicada unificadamente a todas as cadeiras existentes. Por isso somos capazes de reconhecer uma cadeira em qualquer lugar e distingui-la, por exemplo, de um gato. Dessa forma, percebe-se que o mundo dos sentidos está ligado à multiplicidade, enquanto que o mundo da razão tende à unidade. Eu vejo, toco, cheiro etc., muitas cadeiras, muitos gatos, mas minha ideia de cadeira ou gato é única.
O projeto filosófico que se inicia embrionariamente com Tales de Mileto e outros pré – socráticos e se estende por séculos afora tem sua sustentação na crença na racionalidade humana como instrumento de busca de um princípio unificador capaz de ensejar uma compreensão adequada do mundo.
Note-se, porém, que essa é uma concepção tipicamente ocidental, já que na filosofia e na teologia orientais prevalece o entendimento de que a razão é totalmente ilusória. Na verdade, constitui-se em um obstáculo que deve ser superado.
Isso é apenas uma observação, vez que a chamada “crise da modernidade” é também um acontecimento tipicamente ocidental, motivo pelo qual é preciso manter a questão neste eixo específico.
A grande crise surge com o relativismo que provoca um movimento contrário à tradição secular. Movimento este em direção a uma fragmentariedade que se contrapõe a qualquer projeto de unidade. O que valia para o mundo dos sentidos passa a igualmente valer para o mundo da razão humana. Daí ganha relevância a chamada Filosofia da Linguagem (Wittgenstein – “jogos de linguagem”), a crítica da linguagem como cristalizadora artificial de um mundo dinâmico (Nietzsche), o apontamento da debilidade da razão humana para acessar ao “ser” (Kant). Em resumo, toda uma concepção calcada na crença de que a razão humana não dá conta do mundo, de que não há verdade, não há realidade, há apenas “jogos de linguagem”, nomes (nominalismo), categorias mentais, vontade de poder no que tange a eternizar o que é passageiro. Ou seja, o mundo que vemos, sobre o qual falamos é apenas e tão somente um construto de nossas mentes.
Portanto, o que entra em crise na modernidade é a convicção tradicional de que a razão é um princípio unificador válido.
Dessa aparente denúncia de uma ilusão secular que, na verdade, se constitui em uma tremenda ilusão da filosofia contemporânea, totalmente, ela sim, incapaz de se sustentar para além do papel, advém uma série de consequências, dentre as quais a mentalidade revolucionária quanto à possibilidade de mudanças radicais da realidade (que sequer existe, não é mesmo?) através, por exemplo, da mera alteração vocabular ou da simples satisfação da vontade humana. Como no título de um livro de Marshall Berman, “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Tudo se torna proteico, indefinido, passível de manipulação ou molde. Se na tradição religiosa o Verbo (palavra) Divino era constitutivo das coisas, agora o verbo (a palavra, o pensamento) humano (novo “deus”) também se torna constitutivo de uma “realidade” fluida.
É claro que essa concepção pós – moderna ou ensejada pela crise da modernidade, como já frisado, não pode sair do papel. É óbvio que ela é uma ilusão, um truque de prestidigitação intelectual por meio do qual o mundo real passa por ilusionismo e o ilusionismo em si se impõe como única fórmula possível.
A absoluta insustentabilidade dessas concepções que emergem da crise da modernidade é nítida porque, por exemplo, se tudo é relativo, então logo de cara essa afirmação é relativa e se nega a si mesma. A afirmação não é somente obviamente falsa, mas logicamente inviável, já que algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Caso contrário, somente o relativismo não seria relativo.
Ademais, no papel é bem fácil afirmar que o mundo não existe e que é mera construção de categorias ou pensamentos humanos. Uma parede à nossa frente e o choque de nossa cabeça contra ela, mesmo junto com todo nosso pensamento será o suficiente para desmentir o que parece tão sustentável no papel que aceita tudo.
Inobstante a vacuidade dessas concepções, fato é que a mentalidade moderna ou pós – moderna (como queiram), vem com ares de novidade e traz consigo exatamente a apologia do “novo” e a demonização do “tradicional” ou meramente do passado. Em meio a um mundo proteico, amorfo e maleável ao extremo emerge um preconceito que leva a pensar que tudo que é posterior é melhor. Surge então o mito do “progresso”. Diz-se mito, não no sentido explicativo, mas no sentido de “mentira”, de “falsidade”, de “erro”. Porque a apologia do “progresso” linear não corresponde à realidade. Nem sempre o “novo” é melhor que o “anterior”. Nem sempre um progresso efetivo o é em todos os sentidos possíveis, ou seja, sob todos os ângulos. Afirma-se que Theodor Adorno, referindo-se a determinados “progressos” que trazem consigo aspectos altamente negativos e até destrutivos, usou a metáfora do “progresso do estilingue à bomba atômica”. Ora, é inegável que sob o ponto de vista armamentista e tecnológico, a superação do estilingue ou da funda pela arma nuclear é um salto enorme. No entanto, esse salto tecnológico é, ao mesmo tempo, um mal terrível que pode levar o mundo e com ele a humanidade a um desate fatal.
Fato é que o abandono do projeto filosófico de 26 séculos em busca de um princípio racional unificador produziu um relativismo difuso, uma razão débil e uma fragmentariedade terrível.
O mundo contemporâneo já não tem como grande mal a “incoerência” ou a “hipocrisia”. A “fragmentariedade” é atualmente a maior patologia social e individual porque ela supera em muito o potencial ponerogênico (do grego “ponerós” – mal) dos males anteriormente citados.
Exemplificando: um indivíduo que é um religioso, por exemplo, crente de determinada religião e, ao mesmo tempo, um adúltero. Sai do culto ou missa e vai para a casa da amante. Ele é “incoerente”, é “hipócrita”, mas ele sabe muito bem que sua conduta não está de acordo com seu pensamento, com a doutrina que segue. Ele pensa uma coisa, sabe o certo, mas faz o errado. É como já dizia o pagão Ovídio: “Vejo o melhor, e o aprovo; porém, sigo o pior” (“Video meliora proboque, deteriora sequor”). Acontece que por mais repugnante que isso possa ser, por mais destrutiva que essa conduta possa se revelar para a própria dignidade do indivíduo, ainda resta uma esperança. Isso porque ele sabe muito bem que age errado. Ele tem consciência da contradição, da oposição entre seu pensamento, entre sua doutrina, sua fala e seu agir. Dessa maneira, pode haver redenção, pode haver uma reforma na conduta.
Na fragmentariedade a personalidade como que se quebra em muitos pedaços e, com o tempo, torna-se praticamente impossível a recomposição, até porque o fragmentado, diversamente do incoerente, não tem consciência ou noção mínima de sua fragmentariedade.
Um exemplo: um indivíduo freqüenta um mosteiro católico, onde entende conseguir paz espiritual, acompanhando os rituais, sorvendo os incensos e fazendo preces. Sai dali e vai para uma seita “Nova Era”. Ele descobre que sua namorada está grávida e a leva para abortar a criança. Depois participa de uma passeata em defesa do direito à vida dos animais. Aliás, é vegetariano por convicção. Ocorre que diversamente do hipócrita, tal pessoa não enxerga contradição em nada disso. Ela não percebe que matar um feto humano sem dó e sensibilizar-se com a morte de um bezerro são coisas excludentes. Ela não percebe que entre os ritos e doutrinas católicos e os cultos de uma seita “New Age” nada há em comum. O grande problema é que o fragmentado vive em uma situação de compartimentalização e mutação contínua, onde o próprio pensamento varia, vaga sem rumo, norte ou prumo. A pessoa fragmentada não percebe a própria fragmentação. O incoerente sabe da sua incoerência, ele é hipócrita, mas não é inconsciente. Quando tantas ideologias revolucionárias embasadas nessa característica supostamente protéica da sociedade e da natureza humana falam em “alienação”, a maior e mais grotesca “alienação” ocorre justamente no seio da mentalidade pós – moderna ou daquela que põe em crise a modernidade e seu projeto filosófico de 26 séculos. Pode haver maior “alienação” do que não perceber a própria fragmentação, a própria contradição interna?
Depois dos Filósofos da Natureza, Sócrates dá maturidade ao projeto de um princípio unificador da sabedoria. Há em seus predecessores e mais intensamente nele a humildade de reconhecer a natureza unificadora da racionalidade humana, mas, concomitantemente, os limites dessa mesma racionalidade que a impulsionam a uma busca contínua por toda a vida, sem que jamais se possa chegar a uma explicação do todo. Daí a palavra “Filosofia” em seu sentido mais forte: somos “amigos” da sabedoria, a buscamos com ardor, mas não somos donos dela, não nos apropriamos jamais dela. A amizade pela sabedoria e sua busca incessante é um trabalho de Sísifo, mas é nesse trabalho que a grandeza do humano se faz presente. Neste ponto Camus, inobstante ser um típico pós – moderno, apresenta na obra “O Mito de Sísifo” essa nobreza incansável da humanidade do homem. Essa busca sem fim pela sabedoria pode apresentar-se como absurda (Camus), mas é aquilo que revela o valor maior da humanidade. Não importa tanto a chegada, mas o caminho a ser sempre percorrido com humildade, tenacidade e paciência.
Antes ainda da chamada “crise da modernidade”, alguns filósofos modernos se apartaram dessa postura de humildade, paciência e resignação e se animaram na busca por explicações totalizantes. Descartes e outros se iludiram, por exemplo, com a matemática, pretendendo fazer da filosofia algo dotado de sua exatidão. Por meio dessa exatidão se pensava ser possível chegar a uma explicação do todo, a desvendar todos os mistérios do universo.
Enquanto na Filosofia Antiga havia uma humildade em buscar a sabedoria, a partir de Descartes começa a brotar uma arrogância gnóstica mediante a qual se tem a pretensão de desvendar tudo, surgindo o homem moderno como uma espécie de “deus” por intermédio da razão.
Como era de se esperar, toda essa arrogância redundou em fracasso e numa ladeira escorregadia degenerou no relativismo, no descrédito da razão humana e na fragmentariedade já descrita. Ora, pretendendo abarcar o todo e não o conseguindo, fracassando fragorosamente, todo conhecimento passou a ser dividido em partes, tudo se fragmenta e se torna relativo. Não há mais visão total possível. Ao pretender dar um passo muito largo o homem quebra as pernas.
Numa derrocada final, emerge um jogo de “tudo ou nada”. A pretensão de conhecer a totalidade fracassa e fracassam também as tentativas de conhecimento compartimentado que se conformam como uma miríade de saberes contrastantes e confusos. Então, em um ato de puro capricho, de birra pueril vêm as teorias que desprezam completamente a capacidade humana de conhecer. A busca obstinada pela sabedoria, consciente de tratar-se de um trabalho de Sísifo, já não é honrosa o bastante. Se o homem não pode ser divinizado, então acaba animalizado e hoje vemos frequentemente zoólogos apresentarem estudos supostamente antropológicos.
Em meio a tudo isso, ainda surgem perigosos pensamentos revolucionários que são, em verdade, totalmente gnósticos. Têm em si a crença segura da detenção da fórmula do conhecimento, inclusive para refazer o mundo e o homem. Mas, disfarçam essa real conformação de seu pensamento com o véu do relativismo da moda. Um recurso meramente retórico (no mau sentido da palavra) para obter adesão das pessoas já fragmentadas a seus desideratos, os quais, posteriormente, se revelarão nada relativos, mas absolutamente totalitários, marcados por uma crença fanática em um saber seguro, que estava oculto na roupagem iconoclasta da qual se servia apenas para desconstruir um mundo a ser reconstruído de acordo com dogmas bem inflexíveis.
Por isso é mais que urgente superar a “crise da modernidade” e recuperar a virtude da prudência que não abre mão jamais da racionalidade humana, reconhecendo sempre seus limites, mas também suas capacidades.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Entendendo a crise da modernidade: breve ensaio Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 ago 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1877/entendendo-a-crise-da-modernidade-breve-ensaio. Acesso em: 28 nov 2024.
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