1-INTRODUÇÃO
Logo no dia 9 de maio de 2014, quando foi publicada a Lei 12.971/14, tomei conhecimento de seu teor. Estarrecido com o surrealismo do tratamento da questão penal, com as alterações promovidas nos artigos 302, 303, 306 e 308, CTB custei a crer no que lia.
Depois de conferir que não se tratava de um pesadelo ou de uma alucinação passei para a fase de perplexidade e lamento pela profunda inépcia legislativa.
Meu único alento foi perceber que, embora publicada em 9 de maio de 2014, seu artigo 2º. estabelecia uma “vacatio legis” para que entrasse em vigor, qual seja, o 1º. dia útil do 6º. mês após a sua publicação. Assim sendo, uma esperança brotou quanto à possibilidade remota de que o legislativo tivesse o bom senso de impedir que esse monstrengo jurídico chegasse a entrar em vigor nesse período, inclusive porque já se apresentavam as devidas críticas doutrinárias. [1]
Nessa vã esperança e torcida ardente me abstive de tecer qualquer comentário ao diploma e sequer atualizei minhas anotações de aulas ou outros escritos que envolviam o tema. Ainda acreditava ingenuamente no bom senso!
O tempo passou, mas a iluminação do legislador não chegou, muito embora essa dita iluminação não precisasse ser um gigantesco farol, mas uma lanterninha daquelas de R$ 1,99 já que a absurdidade do que vem exposto na Lei 12.971/14 infringe as mais comezinhas regras da lógica. Eis que, então, no dia 1º. de novembro de 2014 entra em vigor o texto completo da famigerada Lei 12.971/14, o que, infelizmente, nos obriga a tecer alguns comentários acerca de seu teor, objetivando indicar suas monstruosidades e tentando, de alguma forma (ainda que seja apelando para alguma magia) torná-la razoavelmente apreensível e aplicável. Desde logo se adverte que sua aplicabilidade e compreensibilidade somente serão possíveis mediante o recorte de certas partes e seu solene arremesso de volta ao lixo das ideias, onde fuçaram para trazer ao público essas disposições legais que seriam uma boa motivação para a abertura de um novo campo de estudo no Direito, qual seja, a “Teratologia Jurídica”.
2-DISSECANDO O MONSTRO AUTOFÁGICO
Não há alteração no “caput” do artigo 302, CTB, que trata do crime de Homicídio Culposo no trânsito, seja em seu preceito primário (descrição da conduta), seja em seu preceito secundário (pena prevista).
As mudanças começam no que era o antigo Parágrafo Único, o qual se converte em dois parágrafos. O § 1º., são mantidas as tradicionais causas especiais de aumento de pena aplicáveis para o homicídio culposo sem qualquer modificação, inclusive no “quantum” da exasperação que permanece entre 1/3 e 1/2 .
Tudo já começa a degringolar com o advento do novo § 2º., onde se pretende imprimir maior rigor ao crime de homicídio culposo no trânsito quando este ocorre em circunstâncias em que o condutor está ébrio ou disputando racha.
A iniciativa é correta do ponto de vista da proporcionalidade. Efetivamente é adequada e necessária uma reprimenda mais gravosa para aquele que comete homicídio culposo nas circunstâncias acima mencionadas. Ademais, tal providência legislativa teria o condão de, se não solucionar, ao menos abrandar os questionamentos acerca da aplicação artificiosa do dolo eventual nesses casos. A verdade é que a pena branda do homicídio culposo, quando de ocorrências que envolvem ébrios ou indivíduos de suma irresponsabilidade em disputas de racha, gera um desconforto social nítido e muitos apelam para a “solução” do dolo eventual que, na verdade, não se adequa perfeitamente, ao menos à maioria desses casos que são nitidamente de culpa consciente.
Já abordamos a questão em obra específica: [2]
“Finalmente nunca é despiciendo abordar um tema que tem sido ventilado na mídia sem apoio na realidade jurídica a todo o momento em que ocorre algum acidente de trânsito com vítima fatal, estando o motorista causador do evento ébrio. Tem sido comum ouvir dizer que a partir da Lei 11.705/08, todo e qualquer caso de homicídio ou lesão provocados por condutor embriagado será tratado como crime doloso, considerando a figura do chamado “dolo eventual”. Essa “notícia” não corresponde à realidade do mundo jurídico. A Lei 11.705/08 não contém qualquer dispositivo que trate desse tema expressamente e nem de suas disposições pode-se inferir tal conclusão mesmo indiretamente. O mesmo se pode dizer com certeza da Lei 12.760/12. Talvez alguém tenha interpretado açodada e equivocadamente que o fato da lei estabelecer uma taxa de alcoolemia como configuradora da embriaguez ao volante como crime de trânsito, poderia conduzir à conseqüência da formulação de uma espécie de presunção legal de assunção de risco toda vez que uma pessoa se propusesse a dirigir em tal estado. Isso obviamente não encontra sustentação no Direito Penal Moderno que há muito tempo afastou a possibilidade de adoção da chamada “responsabilidade objetiva”. Na verdade a situação não se alterou em nada neste aspecto com o advento das Leis 11.705/08 e 12.760/12. É claro que em certos casos concretos de acidentes de trânsito, provocados ou não por embriaguez etílica, poderá ocorrer a figura do “dolo eventual”. Até mesmo o dolo direto pode acontecer em uma situação envolvendo condução de automotor, quando o veículo é utilizado como “instrumenta sceleris” pelo autor que, por exemplo, atropela deliberadamente um desafeto pretendendo matá-lo. Não obstante, na maioria dos casos de homicídio ou lesão corporal em acidentes de trânsito em que o condutor dirige embriagado o caso será de “culpa consciente”. Nem mesmo o fato de que a Lei 11.705/08, em seu artigo 9º., revogou a causa de aumento de pena na lesão culposa e no homicídio culposo do trânsito pela embriaguez, pode levar, por si só, à conclusão pelo dolo eventual. Lembremo-nos que essa causa de aumento de pena nem sempre existiu no CTB, na verdade foi incluída pela Lei 11.275/06 e nem por isso, antes da referida norma alteradora, se cogitava de que invariavelmente haveria dolo eventual. Muito menos o fato de que a nova Lei 12.760/12 não tenha reativado essa causa de aumento de pena pela embriaguez no homicídio e na lesão culposa poderá levar a semelhantes conclusões. Na realidade, as dificuldades para avaliação dos casos concretos e discernimento entre o dolo eventual e a culpa consciente devem ser casuisticamente resolvidos, considerando todas as circunstâncias envolventes do episódio pesquisado sob os ângulos objetivo e, principalmente, subjetivo. [3] Tenha-se em mente, em conclusão, o fato de que em caso de dúvida quanto ao elemento subjetivo que conforma a conduta do agente, encontra aplicação o “in dubio pro reo”, de forma que por isso, na maioria dos casos, conforme acima consignado, prevalecerá a tese da culpa consciente. Lapidar neste tópico o ensinamento de Aníbal Bruno abaixo transcrito:
‘O dolo consiste em uma posição interior do agente, em certas condições de consciência e vontade em relação ao fato ilícito, que não podem ser apreciadas diretamente, mas só através das circunstâncias exteriores em que se manifestam. A maneira pela qual o sujeito atua, os meios que emprega, certas particularidades que acompanham o fato é que nos poderão levar a concluir por uma ação dolosa em referência ao resultado punível. As dificuldades desse juízo crescem e podem tornar-se insuperáveis em relação ao dolo eventual, quando se tem de apurar se o autor assumiu o risco de produzir o resultado ou esperou sinceramente que ele não ocorresse. Então, se não se pode alcançar uma conclusão segura no sentido do dolo, o agente beneficia-se da dúvida e o fato tem de ser julgado como de culpa consciente’. [4]
Acontece que um sentimento de impunidade ou de punição insuficiente toma conta da sociedade quando se depara com casos de homicídio culposo no trânsito, envolvendo embriaguez ou racha. Sempre nos pareceu que a solução para essa espécie de sentimento de “anomia” seria não a perversão de toda a teoria sobre dolo e culpa (mais especificamente a destruição bárbara da linha divisória nítida entre dolo eventual e culpa consciente). Mas, a alteração das penas para o homicídio culposo ocorrido nessas circunstâncias especialmente gravosas, com a previsão de uma reprimenda mais rigorosa para a própria conduta culposa. Não haveria aí qualquer perversão e até se respeitaria a proporcionalidade na medida em que a culpa consciente presente nesses casos estaria a justificar uma reação estatal mais gravosa do que aquela atribuída à culpa sem previsão ou inconsciente. Afinal, embora a legislação brasileira, com a reforma da Parte Geral do Código Penal de 1984, tenha extirpado os chamados “graus de culpa”, segue sendo possível aferir que, no caso concreto, a culpa consciente configura o grau mais elevado de culpa possível, tanto que se aproxima e cria até mesmo certa confusão para alguns com o dolo eventual.
Portanto, a iniciativa do legislador em buscar um tratamento especial para os casos de homicídio culposo marcados pela embriaguez ou o racha não é passível de críticas. Não obstante, o é a forma pela qual se desincumbiu dessa tarefa.
Essa forma é não somente criticável como ridícula. Isso porque o tratamento em tese “mais gravoso” dado pelo legislador para tais situações consiste, pasmem, em manter a pena de 2 a 4 anos e a suspensão do direito de dirigir e somente alterar a qualidade da reprimenda de detenção para reclusão! A alteração é pífia, ridícula e certamente não satisfaz os reclamos sociais. Muito menos será suficiente para acalmar os ânimos daqueles que querem a todo custo perverter a teoria dos elementos subjetivos do crime, forçando uma situação de dolo eventual onde há culpa consciência dado o laxismo legislativo. Qualquer iniciante na seara jurídico – penal tem plena consciência de que na atualidade a diferença entre a pena ser de detenção ou reclusão é praticamente irrelevante. Seria de se esperar a previsão de uma pena reclusiva sim, mas com patamares mínimo e máximo bem acima dos previstos no “caput”. Assim sendo, dizer que essa reforma foi inútil e ridícula é um eufemismo para evitar o uso de palavras de mais baixo calão às quais a alteração faria jus.
Por dádiva celeste a Lei 12.971/14 não promoveu suas “barbeiragens” na lesão corporal culposa no trânsito, mantendo “in totum” a redação do artigo 303, CTB. Apenas, dentro do cenário tenebroso acima exposto, como transformou o que era um Parágrafo Único em dois parágrafos distintos, ajustou a redação do Parágrafo Único do artigo 303, CTB que remetia, no caso de lesões culposas, aos mesmos aumentos de pena do Homicídio Culposo (antigos incisos do então Parágrafo Único do artigo 302, CTB). Como agora essas causas especiais de aumento de pena estão alocadas no novo § 1º., do artigo 302, CTB, a redação do Parágrafo Único do artigo 303 passa a fazer corretamente menção não ao antigo e revogado Parágrafo Único, mas ao novo § 1º., do artigo 302, CTB.
Também não há menção de alteração no “caput” e § 1º., do artigo 306, CTB (Embriaguez ao Volante). No entanto, no § 2º., embora praticamente repita sua redação inclui a menção dentre os meios para aferição da alteração psicomotora, logo depois de citar o teste de “alcoolemia”, o exame “toxicológico”, palavra esta que anteriormente não constava do dispositivo.
Assim como podem surgir, segundo o dito popular, indivíduos imorais nas melhores famílias, também nas piores leis pode aparecer algo de bom. Tem se arrastado uma discussão infértil quanto ao que seria um exame de alcoolemia, especialmente quanto a poder ser considerado o teste do etilômetro uma espécie de aferição válida para esse fim, sustentando alguns que somente o exame toxicológico de sangue poderia ser considerado como de aferição de alcoolemia. Os dispositivos legais e regulamentares sobre a matéria são fartos em estabelecer o que a ciência já comprova, ou seja, que a alcoolemia pode ser aferida por intermédio de diversos exames e testes, dentre os quais está o moderno aparelho de medição do ar alveolar (etilômetro). A redação dada ao atual § 2º., do artigo 306, CTB vem em boa hora reforçar essa conclusão, pois quando trata por expressões diversas os “testes de alcoolemia” e “toxicológico”, deixa claro que as aferições de concentração de álcool no sangue podem ser feitas por exame direto no sangue, pela urina ou mesmo pelo aparelho de ar alveolar, afora outros dispositivos tecnológicos que venham a ser desenvolvidos. [5] Ora, a chamada “alcoolemia” nada mais é do que a concentração de álcool por litro de sangue, a qual pode ser aferida diretamente no exame sanguíneo ou indiretamente por critérios de equivalência cientificamente comprovados, usando o ar alveolar pulmonar, a urina ou mesmo outros meios clinicamente acatáveis.
Ao mencionar expressões separadas para os “testes de alcoolemia” e “toxicológicos”, primeiro, como acima já explicitado, fica claro que os testes de alcoolemia são variados e não se reduzem de forma alguma ao exame direto do sangue. Por outro lado, considerando a regra de hermenêutica de que a lei não contém palavras inúteis (“Verba cum effectu, sunt accipienda”), [6] resta nítida a necessidade de distinguir “testes de alcoolemia” de testes ou exames “toxicológicos”. Ao que nos parece é viável compreender que o legislador abarcou na expressão “testes de alcoolemia” os exames de sangue, urina e de ar alveolar (etilômetro), os quais dizem respeito à ebriedade específica por álcool. No entanto, como a legislação também trata da ebriedade provocada por outras substâncias psicoativas que determinem dependência, vem a lume a noção de que o exame ou teste toxicológico passa a se referir à aferição da alteração da capacidade psicomotora não por abuso de álcool, mas de outras substâncias psicoativas. Dessa forma a redação nova faz um trabalho relevante de firmar definitivamente a equivalência dos exames de alcoolemia, bem como não deixa de lado a questão dos exames e testes referentes a outras substâncias alteradoras do psiquismo.
Por seu turno, a nova redação dada ao § 3º., do mesmo dispositivo nada mais faz do que adequá-lo ao § 2º., imprimindo a mesma distinção entre “testes de alcoolemia” e “toxicológicos”, o que se fazia realmente necessário e salutar.
O leitor, analisando o que até agora foi exposto, pode estar pensando que o intróito deste trabalho foi um tanto quanto exagerado e que a lei é fraca, como tantas o são, mas que não é tão ruim assim como foi desenhado inicialmente. Tem até mesmo pontos positivos, não é?
Ledo engano, porque é agora, a partir das alterações no artigo 308, CTB (Crime de Racha) que se verá o que há de aterrorizante nessa legislação. No começo da análise do dispositivo, o leitor continuará com a percepção de que há exagero em nossa fala, mas ao fim, perceberá de que monstruosidade estamos tratando. Aguarde e confie.
Por isso abriremos inclusive um tópico especial para o tratamento das alterações promovidas no artigo 308, CTB e sua inserção sistemática na Lei 9.503/97.
3-A “LEI POKÉMON”
O fenômeno “Pokémon” ou “Pocket Monsters”, que pode ser traduzido literalmente como “monstros de bolso” ou “bichos de bolso” é uma marca japonesa que explora uma série de nichos midiáticos tais como jogos eletrônicos, desenhos animados, bonecos, quadrinhos etc.
Quando chegamos agora ao ponto de análise das alterações promovidas no artigo 308, CTB e suas reverberações na sistemática da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), inclusive em cotejo com o disposto no artigo 302, § 2º., CTB, torna-se perfeita a metafórica denominação da Lei 12.971/14 como “Lei Pokémon”. Afinal, esses monstrinhos de desenho animado são exatamente aqueles que quando são olhados num primeiro momento e de certa distância, parecem apenas meio esquisitinhos, mas, na verdade, são verdadeiros monstros com super – poderes destrutivos e assustadores. Até o momento e ainda por alguns parágrafos adiante continuaremos com a mera impressão de esquisitice, até que veremos a real teratologia da legislação sob comento. O “Pokémon” se revelará com todos os seus poderes para fazer rir e chorar de desespero!
Pois bem, a Lei 12.971/14 traz uma ligeira modificação na redação da parte final do “caput” do artigo 308, CTB. Substitui a frase indicadora da necessidade de perigo concreto “desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada”, pela frase diversa, mas de conteúdo semântico idêntico “gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada”. Mudam as palavras, mas o efeito é o mesmo: trata-se de um crime de perigo concreto comum. Em suma, faz-se necessário que a conduta enseje perigo real e não presumido, mas prescinde-se da identificação de um ou mais sujeitos passivos específicos (crime vago). Talvez a alteração seja salutar a fim de jogar uma pá de cal sobre a alegação de alguns autores como, por exemplo, Damásio de Jesus, que afirmavam que o crime era de dano, [7] tendo em conta um bem jurídico difuso que seria a “segurança do trânsito viário terrestre”. A palavra “dano potencial” anteriormente constante do tipo poderia induzir a essa conclusão, o que nos parece inviável a partir de sua substituição pela palavra “risco” que certamente está ligada ao perigo e não ao dano efetivo. Não obstante, esse posicionamento desde sempre foi considerado equivocado e inclusive a criação de bens jurídicos difusos como “segurança do trânsito viário terrestre” tem merecido a justa crítica da doutrina quanto à banalização do critério de definição do que seja realmente um bem jurídico – penal. [8] Ou seja, a maioria da doutrina e da jurisprudência sempre assentaram que o crime de Racha é de “perigo concreto” e não de “dano”. [9] Inclusive, como anota Marcão, o STJ já estabeleceu essa natureza de crime de perigo concreto para o dispositivo do artigo 308, CTB (STJ, Resp 585.345/PB, 5ª. Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJU de 16.02.2004). [10]
A verdade é que a mudança tem o condão de pacificar uma situação em que havia alguma ligeira dissidência, mas não altera muito o quadro prático, de modo que se trata de uma alteração que faz tudo ficar como estava, de acordo com a famosa frase de Lampedusa. [11]
Uma novidade louvável foi a alteração da pena de prisão em seu máximo cominado de 2 para 3 anos de detenção, retirando o Racha do rol de infrações de menor potencial ofensivo nos termos do artigo 61 da Lei 9.099/95. Efetivamente era algo incompreensível que uma conduta tão perigosa e tão socialmente reprovável estivesse catalogada dentre as infrações de menor potencial.
O leitor já percebeu que até o momento ainda não chegamos ao estágio “Pokémon” da Lei 12.971/14, mas chegaremos lá, estamos perto.
Em sua versão original o artigo 308, CTB não contava com parágrafos. A Lei 12.971/14 incluiu dois parágrafos, prevendo formas qualificadas respectivamente pelos resultados lesão corporal grave e morte.
No § 1º., afirma que em caso de conduta culposa (afastados os dolos direto e eventual), se resultar “lesão corporal de natureza grave”, a pena passa a ser de “reclusão, de 3 a 6 anos”, além das demais penalidades já previstas no artigo. É preciso destacar que quando a lei menciona a expressão “lesões graves” está abrangendo as doutrinariamente chamadas “lesões graves” e “lesões gravíssimas”, de acordo com o disposto no artigo 129, §§ 1º. e 2º., CP.
Embora seja incomum a ligação entre a gravidade da lesão e a figura da lesão corporal culposa, seja no Código Penal, seja no Código de Trânsito, nada impede que o legislador crie essa distinção na reprimenda, considerando o desvalor do resultado mais intenso.
A partir de agora é preciso saber distinguir algumas situações em caso de lesão corporal culposa:
a)Se ocorre uma lesão corporal culposa na qual o autor não está na direção de veículo automotor, aplica-se o artigo 129, § 6º., CP, sem essa distinção a respeito da gravidade da lesão, o que somente será considerado para a dosimetria da pena – base nos estritos termos do artigo 59, CP (consequências do crime).
b)Se ocorre uma lesão corporal culposa na qual o autor está na direção de veículo automotor e não está disputando Racha, então é aplicável o artigo 303, CTB, também sem levar em conta a gravidade da lesão a não ser para fins de dosimetria da pena base, conforme acima exposto.
c)Se há uma lesão corporal culposa com o autor do crime na direção de veículo automotor e disputando Racha, sendo a lesão leve, esta circunstância (Racha) configura a imprudência do infrator e aplica-se normalmente o artigo 303, CTB. O artigo 308, § 1º., do mesmo diploma resta afastado porque ausente a elementar da “lesão corporal de natureza grave”.
d)Finalmente, se um indivíduo, na direção de veículo automotor e disputando Racha, lesiona gravemente (lesão grave ou gravíssima) outrem passa doravante a ser aplicável o disposto no artigo 308, § 1º., CTB que prevalece sobre o artigo 303, CTB, considerando a existência de um conflito ou concurso aparente de normas, no qual o artigo 308, § 1º., CTB se sobressai devido ao Princípio da Especialidade.
Aqui, embora seja solvível alguma dificuldade interpretativa, nota-se claramente uma impropriedade na qual o crime de Racha é qualificado pela lesão corporal culposa, quando o mais correto e sistematicamente adequado seria que a lesão corporal culposa fosse qualificada pelo Racha, assim como fez (muito mal e porcamente, como já visto, mas fez) o legislador com o caso do homicídio e a embriaguez ao volante e o racha (vide artigo 302, § 2º., CTB com a nova redação dada pela Lei 12.971/14). Os sinais de teratologia já vão então se manifestando, mas ainda não chegamos em seu ápice.
É no § 2º., do artigo 308, CTB que o pequeno e esquisito “Pokémon” jurídico se transforma de uma bolinha minúscula em um monstro tenebroso!
Acontece que esse § 2º., acima citado prevê uma qualificação do crime do artigo 308, CTB pelo resultado morte, sempre que a conduta for culposa (afastando-se as situações de dolo direto ou eventual). Nesse caso a pena prevista passa a ser de “reclusão, de 5 a 10 anos”, além das demais cominadas no tipo penal. Ora, mas acontece que no artigo 302, § 2º., CTB (mesmo diploma legal) o resultado morte advindo de culpa durante um racha tem pena prevista de “reclusão, de 2 a 4 anos, afora as demais penalidades agregadas. Há aqui uma séria contradição interna no diploma legal, a teratologia máxima da criação de um conflito aparente de normas insolúvel dentro do próprio diploma. Diga-se melhor, não de um conflito “aparente” de normas dentro de um mesmo diploma, mas de um conflito “real” de normas dentro de um mesmo diploma. Isso porque ambos dispositivos (artigo 308, § 2º., CTB e artigo 302, § 2º., CTB) descrevem a mesmíssima situação com penas absolutamente diversas.
O quadro é tão caótico que nenhum dos Princípios de solução de conflitos aparentes de normas (consunção, subsidiariedade, especialidade ou alternatividade) é hábil a resolver satisfatoriamente a situação. É simplesmente impossível ao intérprete compreender o que pretendeu o legislador com essa monstruosidade que agora se descortina ante nossos olhares embasbacados!
Afinal, qual dispositivo aplicar? Como não perceber e denunciar infrações aos Princípios basilares da razoabilidade e proporcionalidade? Mais que isso, à mais comezinha lógica já que algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo e ao ser uma coisa e não outra, não pode ser uma terceira diversa, ou seja, algo é verdadeiro ou falso, não havendo a hipótese de uma terceira via alternativa (Princípios da Não – Contradição e do Terceiro Excluído). Neste último campo até mesmo o chamado “Princípio da Identidade” que afirma que algo é sempre igual a si mesmo é violado. Vejamos: se afirmo que quem disputa racha e causa culposamente uma morte responde pelo artigo 302, § 2º., CTB, isso entra em contradição nos três aspectos lógicos acima com o artigo 308, § 2º., do mesmo diploma legal.
Superado o susto, passa-se então a delinear propostas de solução para esse dilema monstruoso que poderão surgir na tão maltratada doutrina nacional:
a)Frente ao conflito medonho acima descrito poderá surgir quem advogue a tese de aplicação da reprimenda mais gravosa, ou seja, o dispositivo do artigo 308, § 2º., CP por uma aplicação enviesada do Princípio da Especialidade e considerando a necessidade de repressão mais intensa da conduta de quem ocasiona morte, ainda que culposa, mas numa situação de Racha, o que, aliás, seria a “mens legis”. Neste passo o artigo 302, § 2º., CTB somente seria aplicável em sua inovação praticamente inócua de alteração de pena de detenção para reclusão no caso de embriaguez ao volante, tornando-se letra morta a hipótese de racha.
b)Diante do conflito enfocado prevaleceria o artigo 302, § 2º., CTB e o disposto no artigo 308, § 2º., do mesmo diploma seria letra morta. Para essa posição há duas argumentações plausíveis pelo menos, quais sejam:
b.1-No conflito de duas normas que regulam a mesma conduta, prevendo-a como crime e impondo penas diversas, o Princípio do “Favor Rei” está a indicar que a norma mais branda, mais favorável ao réu, deve prevalecer. Maximiliano não poderia prever que ao ensinar em sua clássica obra que o “Favor Rei” ou o “in dúbio pro reo” devem ser aplicados “cum granu salis”, apenas quando a dúvida é insolúvel no esforço da busca do efetivo sentido da letra da lei e de seu espírito, estaria agora com um exemplo teratológico em que efetivamente é impossível perscrutar os caminhos tortuosos da “mens legis” ou “mens legislatoris”, simplesmente pelo fato corriqueiro de que diante da insanidade não é viável buscar coerência. De acordo com o autor nominado é aí que
“terá cabimento o in dúbio mitius interpretandum est; ou – interpretationes legum poenae molliendoe sunt potius quam asperandae; ou ainda – In poenalibus causis benignus interpretandum est: ‘Opte-se, na dúvida pelo sentido mais brando, suave, humano’; ‘Prefira-se, ao interpretar as leis, a inteligência favorável ao abrandamento das penas ao invés da que lhes aumente a dureza ou exagere a severidade’; ‘Adote-se nas causas penais a exegese mais benigna’”. [12]
b.2-A aplicação do artigo 308, § 2º., CTB em detrimento do artigo 302, § 2º., do mesmo diploma geraria, além do mais, uma nítida infração ao Princípio da Proporcionalidade em relação àquele indivíduo que perpetra um homicídio culposo embriagado. Perceba-se que para a embriaguez ao volante (artigo 306, CTB), não foi prevista qualificadora similar, restando então somente o dispositivo frouxo do artigo 302, § 2º., CTB. Já para o infrator do artigo 308, CTB, aplicando-se seu § 2º., este teria uma pena muito mais alta do que o ébrio. Ora, ambas situações são equivalentes e não comportam tratamento tão distinto, o que violaria à proporcionalidade. A hipótese de aplicar as penas mais altas do artigo 308, § 2º., CTB também ao ébrio homicida culposo no trânsito é tecnicamente indefensável, pois que violaria, além do “Favor Rei” o “Princípio da Legalidade”. Assim sendo, o tratamento mais gravoso do disputador de racha e o menos gravoso do ébrio é inviável e desproporcional, o que também indica para a prevalência do artigo 302, § 2º., CTB que trata ambas as situações com proporcionalidade (muito mal e porcamente, mas com proporcionalidade).
4-CONCLUSÃO
Arriscando um prognóstico, tendemos a pensar que a prevalência do artigo 302, § 2º., CTB e o afastamento e conversão em letra morta por inépcia legislativa do artigo 308, § 2º., CTB deverá predominar na doutrina e nos tribunais.
Não obstante nossa proposta seria pela imediata revogação de ambos dispositivos e, se for o caso, a elaboração de uma lei que mereça esse nome. Aliás, o ideal seria que essa Lei 12.971/14 nunca tivesse existido e permanecesse no limbo onde estão os monstros do armário, a Cuca, o Saci – Pererê, o Lobisomem, o Curupira, os Vampiros, o Godzilla e os Pokémon.
REFERÊNCIAS
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LAMPEDUSA, Giuseppe. O Leopardo. Trad. Leonardo Codignoto. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
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MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
MORAES, Rafael Marcondes de, Sannini Neto, Francisco. Lei Federal n. 12.971/2014: mudanças e “barbeiragens” legislativas. Disponível em www.jusbrasil.com.br , acesso em 08.11.2014.
PIRES, Ariosvaldo de Campos, SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de Trânsito na Lei 9.503/97. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.
SÁNCHEZ, Jesús – María Silva. A Expansão do Direito Penal. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002.
SERRANO, Pablo Jiménez. Interpretação Jurídica. São Paulo: Desafio Cultural, 2002.
JESUS, Damásio Evangelista de. Crimes de Trânsito. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra – Individual. São Paulo: RT, 2003.
SOUZA, José Barcelos de. Dolo eventual em crimes de trânsito. Boletim IBCCrim. São Paulo: IBCCrim, n. 73, p. 11 – 12, out., 1998.
[1] Conferir por todos: MORAES, Rafael Marcondes de, Sannini Neto, Francisco. Lei Federal n. 12.971/2014: mudanças e “barbeiragens” legislativas. Disponível em www.jusbrasil.com.br , acesso em 08.11.2014.
[2] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Nova Lei Seca. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013, p. 63 – 65.
[3] Dolo eventual e culpa consciente (mais alto grau de culpa) se assemelham bastante. No primeiro o agente pratica uma conduta, prevendo um possível resultado, mas assumindo o risco de sua produção. Na segunda o agente também prevê um certo resultado, mas decide praticar mesmo assim sua conduta, não porque assuma o risco, mas porque confia sinceramente em sua capacidade de evitar o referido resultado. Uma excelente e ponderada exposição sobre o tema pode ser encontrada no seguinte trabalho: SOUZA, José Barcelos de. Dolo eventual em crimes de trânsito. Boletim IBCCrim. São Paulo: IBCCrim, n. 73, out., 1998, p. 11 – 12.
[4]BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Volume I. Tomo IV. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 75.
[5] O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, na qualidade de relator de decisão de HC, apresentando precedentes de Tribunais Estaduais, do STJ e do próprio STF, já há bastante tempo acenava com a equivalência como exame de alcoolemia para o teste do etilômetro. Disponível em www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoTexto.asp?id=3021284, acesso em 08.11.2014.
[6] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 250. No mesmo sentido: SERRANO, Pablo Jiménez. Interpretação Jurídica. São Paulo: Desafio Cultural, 2002, p. 34. “No texto da lei se entende não haver frase ou palavra inútil, supérflua ou sem efeito”.
[7] JESUS, Damásio Evangelista de. Crimes de Trânsito. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 184.
[8] Cf. SÁNCHEZ, Jesús – María Silva. A Expansão do Direito Penal. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: RT, 2002, p. 113. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra – Individual. São Paulo: RT, 2003, p. 57.
[9] Neste sentido: PIRES, Ariosvaldo de Campos, SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de Trânsito na Lei 9.503/97. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 234. LOPES, Mauricio Antonio Ribeiro. Crimes de Trânsito. São Paulo: RT, 1998, p. 231. MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 198.
[10] MARCÃO, Renato. Crimes de Trânsito. 3ª. ed. São Paulo Saraiva, 2011, p. 198.
[11] LAMPEDUSA, Giuseppe. O Leopardo. Trad. Leonardo Codignoto. São Paulo: Nova Cultural, 2002, p. 42.
[12] MAXIMILIANO, Carlos. Op. Cit., p. 326 – 327.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.971/14 e suas alterações na parte penal do Código de Trânsito brasileiro: o ápice da insanidade na legislação pátria Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 nov 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1961/lei-12-971-14-e-suas-alteracoes-na-parte-penal-do-codigo-de-transito-brasileiro-o-apice-da-insanidade-na-legislacao-patria. Acesso em: 28 nov 2024.
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