1 - INTRODUÇÃO
Dentre os crimes patrimoniais não violentos o crime de furto é dos mais frequentes no dia a dia. Durante muito tempo se discutiu sobre o momento consumativo do furto, prevalecendo a tese da “Teoria da Inversão da Posse”, a qual mais recentemente vem sendo suplantada pela jurisprudência dos Tribunais Superiores brasileiros pela chamada Teoria da “Amotio”.
Outra discussão recorrente sobre o crime de furto versa sobre a configuração ou não da qualificadora do rompimento ou destruição de obstáculo à subtração da coisa, quando o agente adentra ao local sem arrombamento e precisa praticá-lo ao sair. Ou seja, o arrombamento ocorre de dentro para fora e não, como é mais comum, de fora para dentro.
O objetivo deste trabalho é expor o desenvolvimento da discussão quanto à consumação do furto até o atual “status quo” da matéria, analisando o problema da qualificadora acima mencionada na circunstância do arrombamento para deixar o local. A análise será feita, considerando as posições doutrinárias a respeito da configuração ou não da qualificadora, procurando-se fazer uma ligação entre as justificativas para uma e outra posição com as teorias sobre a consumação do furto. Ao final, o intento é indicar a possível mudança de modelo para a solução da questão da qualificadora com a alteração da teoria sobre a consumação do furto.
O estudo é relevante, tendo em vista que a decisão sobre a qualificadora implica numa reação mais ou menos gravosa contra o infrator da lei, a qual deve ser baseada em uma orientação dogmática segura e coerente.
2 - AS TEORIAS SOBRE A CONSUMAÇÃO DO FURTO
Ao longo do tempo foram apresentadas várias teorias sobre a consumação do furto, sendo as principais as seguintes: [1]
a) "Concretatio" - basta tocar na coisa.
b) "Apprehensio rei" - basta segurar na coisa.
c) "Amotio" - exige a remoção de lugar.
d) "Ablacio" - a coisa é colocada no local a que se destinava com segurança.
e)Teoria da Inversão da Posse – para que o furto se consume é necessário que o agente tenha a “posse tranquila” da coisa subtraída.
Observe-se que durante muito tempo predominou o entendimento doutrinário e jurisprudencial quanto à consumação pela “Teoria da Inversão da Posse”. No entanto, mais recentemente vem ocorrendo uma alteração desse pensamento e a adoção da “Amotio”, inclusive pelo STF e pelo STJ.
Apenas a título ilustrativo, observe-se o “decisum” abaixo, versando sobre a Teoria da “Amotio” tanto no furto como no roubo:
PENAL E PROCESSUAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. RÉUS ASSISTIDOS PELO MESMO DEFENSOR PÚBLICO. ALEGAÇÃO DE COLIDÊNCIA DE DEFESAS. NÃO DEMONSTRAÇÃO. MOMENTO CONSUMATIVO. PRESCINDIBILIDADE DA POSSE TRANQUILA DA RES. ADOÇÃO DATEORIA DA AMOTIO.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, acompanhando a orientação da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, firmou-se no sentido de que o habeas corpus não pode ser utilizado como substituto de recurso próprio, sob pena de desvirtuar a finalidade dessa garantia constitucional, exceto quando a ilegalidade apontada for flagrante, hipótese em que se concede a ordem de oficio.
2. "Só se configura o conflito de defesas na hipótese em que um réu atribui a outro a prática criminosa que só pode ser imputada a um único acusado, de modo que a condenação de um ensejará a absolvição do outro, ou quando o delito tenha sido praticado de maneira que a culpa de um réu exclua a do outro." (HC 94.517/MG, Rel. Min.NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe 30.03.2009).
3. No caso, não restou demonstrado o conflito de interesses nem qualquer prejuízo ao paciente por ter sido assistido, a partir da audiência de instrução e julgamento, pelo mesmo defensor público que patrocinou a defessa do corréu, uma vez que ambos negaram a autoria delitiva que lhes foi imputada na denúncia.
4. De outro lado, para acolher o pedido de absolvição, por insuficiência de provas, seria necessária a incursão no conjunto fático-probatório dos autos, o que se mostra incabível na via estreita do habeas corpus.
5. Os tribunais superiores adotaram a teoria da apprehensio, também denominada de amotio, segundo a qual o crime de roubo, assim como ode furto, consuma-se no momento em que o agente se torna possuidor da coisa alheia móvel, pouco importando se por longo ou breve espaço temporal, sendo prescindível a posse mansa, pacífica, tranquila e/ou desvigiada.
6. No caso, mostra-se incontroverso que os réus tiveram a posse dos bens subtraídos, ainda que por breve lapso temporal, sendo capturados somente após a busca efetuada pelos policiais. Assim, descabe a desclassificação pretendida para a forma tentada.
7. Habeas corpus não conhecido (HC 222888/MG, STJ, 5ª. Turma. Rel. Min. Gurgel de Faria, 16.12.2014, DJe 02.02.2015).
E no Supremo Tribunal Federal:
Trata-se de recurso ordinário em “habeas corpus” interposto contra decisão que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, denegou ordem de “habeas corpus”, em julgamento consubstanciado em acórdão assim ementado:
“AGRAVO REGIMENTAL EM ‘HABEAS CORPUS’. 1. ‘MANDAMUS’ UTILIZADO COMO SUBSTITUTIVO DE RECURSO. NÃO CABIMENTO. HODIERNO ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, QUE CONTA COM O LOUVÁVEL REFORÇO DA SUPREMA CORTE. 2. FURTO CONSUMADO. PLEITO DE RECONHECIMENTO DO CRIME TENTADO. POSSE TRANQUILA DA ‘RES FURTIVA’. DESNECESSIDADE. 3. MONITORAMENTO DA CONDUTA. VIGILÂNCIA QUE NÃO OBSTA, EM ABSOLUTO, A CONSUMAÇÃO DO DELITO. 4. RECURSO IMPROVIDO.
1. Recentemente, este Tribunal Superior passou a negar seguimento e/ou não conhecer de ‘habeas corpus’ voltado à correção de decisão sujeita a recurso próprio, previsto no sistema processual penal, por não ser ele substituto de recursos ordinários, especial ou extraordinário, mas sim remédio constitucional voltado ao combate de constrangimento ilegal específico, de ato ou decisão que afete, potencial ou efetivamente, direito líquido e certo do cidadão, com reflexo direto em sua liberdade,
entendimento esse que conta com o louvável reforço da Suprema Corte.
2. No caso, inexiste constrangimento ilegal manifesto a ser sanado, pois prevalece no Superior Tribunal de Justiça a orientação de que o crime de furto se consuma no momento em que o agente se torna possuidor da ‘res furtiva’, ainda que haja imediata perseguição e prisão, sendo prescindível que o objeto subtraído saia da esfera de vigilância da vítima.
3. Da mesma forma, não há falar que eventual monitoramento da conduta obste, em absoluto, a consumação do delito. Precedentes.
4. Agravo regimental a que se nega provimento.” (HC 254.399-AgRg/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE – grifei)
Busca-se, na presente sede processual, “o provimento do presente recurso e a reforma do acórdão, para que se conheça regularmente do HC impetrado, e não apenas sob a ótica da concessão de ‘HC’ de ofício, como quer o acórdão recorrido, e, ainda que via concessão de ‘HC’ de ofício, reconheça-se a ocorrência do delito na forma tentada, reduzindo-se o ‘quantum’ da pena aplicada, nos termos do parágrafo único do art. 14 do Código Penal, ou determinando-se à autoridade coatora que aplique a fração de redução que entender pertinente” (grifei). O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República Dr. MARIO JOSÉ GISI, ao opinar pelo improvimento do recurso ordinário em questão, formulou parecer do qual se destaca a seguinte passagem:
“Também não assiste razão à defesa no que concerne à assertiva de crime na modalidade tentada. Para tratar da conformação típica da conduta do paciente, a instância ordinária valeu-se dos seguintes fundamentos:
[…] a prova oral existente nos autos evidencia que o réu foi preso em flagrante quando já estava distante do local onde a delito ocorreu, circunstância que evidencia que o desapossamento dos bens claramente ocorreu, portanto, que o ‘iter criminis’ alcançou o seu momento consumativo. […]. (...). No caso em tela, verifica-se que a subtração da ‘res’ não foi frustrada por circunstâncias alheias à vontade do agente, tendo se concretizado a posse do objeto, ainda que por tempo reduzido, o que afasta a incidência do art. 14, II, do Código Penal. A posterior interceptação efetuada pela autoridade policial que recuperou a ‘res furtiva’ não descaracteriza a usurpação de posse sofrida pela vítima, que teve o acesso ao seu bem temporariamente sustado por estar fora de sua esfera de vigilância. A mesma compreensão perfilha a doutrina mais abalizada:
‘Também deve ser reconhecida a consumação ainda que o agente seja seguido ou perseguido e preso em flagrante delito. É irrelevante a circunstância de não se ter locupletado o agente com a coisa roubada.’
‘O roubo próprio atinge a consumação nos mesmos moldes do crime de furto, i.e., quando o sujeito consegue retirar o objeto material da esfera de disponibilidade da vítima, ainda que não haja posse tranquila. ’
Nesse sentido também segue a jurisprudência desse Supremo Tribunal Federal, segundo a qual ‘para a consumação do crime de furto ou de roubo, não se faz necessário que o agente logre a posse mansa e pacífica do objeto do crime, bastando a saída, ainda que breve, do bem da chamada esfera de vigilância da vítima’.
Registremos, por último, que a desconstituição dos fundamentos esposados pelas instâncias ordinárias exigiria o revolvimento de material fático-probatório, o que é inviável na via estreita e célere do recurso em ‘habeas corpus’.” (grifei)
Sendo esse o contexto, analiso a postulação em causa. E, ao fazê-lo, entendo assistir razão à douta Procuradoria-Geral da República, quando opina, na espécie ora em exame, pelo improvimento do presente recurso ordinário.
É que, ao apreciar a pretensão deduzida pela parte ora recorrente, verifico que o pleito em questão não tem o beneplácito do magistério jurisprudencial desta Suprema Corte, que tem entendido, na matéria, que os delitos de furto ou de roubo consumam-se independentemente da observância da teoria da “ilatio”, bastando, para tanto, que o agente tenha tido, embora momentaneamente, a posse da “res” objeto da subtração patrimonial, não obstante retomada, logo em seguida, por agentes do Estado ou recuperada pela própria vítima, quer em decorrência de perseguição imediata, quer, ainda, em consequência da identificação posterior dos autores da prática delituosa (HC 74.376/RJ, Rel. Min. MOREIRA ALVES – HC 93.384/SP, Rel. Min. AYRES BRITTO – HC 94.406/SP, Rel. Min. MENEZES DIREITO – HC 95.360/RS, Rel. Min. EROS GRAU – HC 95.794/ES, Rel. Min. GILMAR MENDES – HC 96.696/SP, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – HC 100.189/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE – HC 114.329/RS, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, v.g.):
“(...) dispensa, para a consumação do furto ou do roubo, o critério da saída da coisa da chamada ‘esfera de vigilância da vítima’ e se contenta com a verificação de que, cessada a clandestinidade ou a violência, o agente tenha tido a posse da ‘res furtiva’, ainda que retomada, em seguida, pela perseguição imediata.” (HC 89.958/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei)
“(...) 1. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que, para a consumação do crime de furto, basta a verificação de que, cessada a clandestinidade ou a violência, o agente tenha tido a posse do objeto do delito, ainda que retomado, em seguida, pela perseguição imediata.” (HC 92.922/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – grifei)
“(...) 2. A consumação do furto ocorre no momento em que o agente tem a posse da ‘res furtiva’, cessada a clandestinidade, independente da recuperação posterior do bem objeto do delito.” (HC 95.398/RS, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA – grifei)
Vale registrar, por necessário, que o entendimento ora exposto reflete-se, por igual, na jurisprudência firmada pelo E. Superior Tribunal de Justiça (HC 177.676/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE – HC 197.068/SP, Rel. Min. JORGE MUSSI – HC 231.277/RJ, Rel. Min. LAURITA VAZ – HC 247.007/SP, Rel. Min. MARILZA MAYNARD (Desembargadora Convocada do TJ/SE) – AREsp 325.156-AgRg/BA, Rel. Min. MOURA RIBEIRO – REsp 1.341.998-AgRg/SP, Rel. Min. SEBASTIÃO REIS JÚNIOR):
“(...) II Ademais, o Superior Tribunal de Justiça adota a teoria da ‘apprehensio rei’ ou ‘amotio’, segundo a qual a consumação do crime de furto dá-se com a simples inversão do título da posse, não sendo, pois, necessário que a coisa saia da esfera de vigilância da vítima, ocorrendo a consumação do delito ainda que haja a retomada da ‘res furtiva’, logo em seguida, pela própria vítima ou por terceiro.” (AREsp 296.525-AgRg/DF, Rel. Min. ASSUSETE MAGALHÃES – grifei)
De qualquer maneira, no entanto, mesmo que se pudesse adotar critério diverso daquele definido pela jurisprudência desta Corte, ainda assim não haveria como acolher a pretensão recursal ora em análise, pela simples razão de a via sumaríssima do processo de “habeas corpus” não comportar o exame aprofundado de fatos nem a reavaliação dos elementos probatórios produzidos no processo penal de conhecimento (RTJ 110/555 – RTJ 129/1199 – RTJ 163/650-651 – RTJ 186/237, v.g.):
“A ação de ‘habeas corpus’ constitui remédio processual inadequado, quando ajuizada com objetivo (a) de promover a análise da prova penal, (b) de efetuar o reexame do conjunto probatório regularmente produzido, (c) de provocar a reapreciação da matéria de fato e (d) de proceder à revalorização dos elementos instrutórios coligidos no processo penal de conhecimento. Precedentes.” (RTJ 195/486, Rel. Min. CELSO DE MELLO):
É de rememorar, no ponto, que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 69.034/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, advertiu que o “habeas corpus” não se revela juridicamente apto ao exame da ocorrência, ou não, da realização integral do tipo penal, eis que a discussão em torno da consumação do delito, caso admitida nesta sede processual, implicaria irrecusável análise da prova e importaria em aprofundada investigação dos elementos instrutórios produzidos no processo penal de conhecimento.
A constatação da ocorrência, ou não, da posse tranquila dos bens subtraídos – qualquer que seja a teoria jurídica que se possa perfilhar no tema (a da “contrectatio”, a da “apprehensio”, a da “amotio”, a da “ilatio” ou a da “ablatio”) – encontra obstáculo insuperável no caráter sumaríssimo da ação penal de “habeas corpus”, consoante adverte a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (HC 65.887/SP, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – HC 69.575/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):
“‘Habeas corpus’. (...). No que toca à argüição de tentativa de furto e não de furto consumado, a matéria envolve aferição de prova, insuscetível de apreciação em ‘habeas corpus’. Indeferimento do pedido.” (HC 66.381/SP, Rel. Min. DJACI FALCÃO – grifei). Sendo assim, considerando as razões expostas e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República, nego provimento ao presente recurso ordinário.
Devolvam-se estes autos ao E. Superior Tribunal de Justiça. Publique-se. Brasília, 28 de fevereiro de 2014.Ministro CELSO DE MELLO Relator (RHC 117525/DF).
Embora se perfile a tese de que a “Teoria da Inversão da Posse” seja a mais adequada para a definição da consumação do furto e também do roubo, há que reconhecer a que “Amotio” ganha terreno e é hoje o entendimento que domina tanto STF como STJ. Dessa forma o furto estará consumado com a simples remoção da coisa do local, não se exigindo a posse tranquila por parte do agente.
Dessa maneira a doutrina mais recente segue por essa mesma senda:
“A consumação do furto dá-se quando a vítima perde, ainda que momentaneamente, a livre disponibilidade sobre o bem, não se exigindo que o agente tenha a posse mansa e pacífica do objeto material (há entendimento em sentido contrário, atualmente minoritário)”. [2]
No mesmo diapasão:
“Ora, o resultado do furto é a perda da posse, basta que ela ocorra, o que acontece no exato momento em que o sujeito passivo perde a possibilidade de exercer qualquer poder sobre a coisa. No tipo há um único verbo: subtrair. Tirada a coisa do dono, com o fim de assenhoramento, realizou-se integralmente o tipo. A posse tranquila da coisa só seria exigível se o tipo contivesse, além do verbo subtrair, ou verbo: ter. Ai, sim, a consumação somente ocorreria quando o agente tivesse a coisa com tranquilidade. O momento consumativo ocorre quando a coisa sai da ‘esfera de posse e disponibilidade do sujeito passivo, ingressando na livre disponibilidade do autor, ainda que este não obtenha a posse tranquila’. Haverá furto consumado no exato momento em que o ofendido não puder mais dela dispor, em que deixa de sobre ela exercer o poder que exercia quando em sua posse. É óbvio que se o agente consegue ter a posse tranquila o furto é consumado, mas o foi antes disso, quando a coisa saiu da esfera de disponibilidade da vítima”. [3]
Assim sendo, conforme já frisado, embora a “Teoria da Inversão da Posse” não perca sua defensabilidade, especialmente no seio doutrinário, a Teoria da “Amotio” vai dominando os tribunais, a prática judiciária e os espaços dogmáticos.
3 - ROMPIMENTO OU DESTRUIÇÃO DE OBSTÁCULO À SUBTRAÇÃO DA COISA E A QUESTÃO DO ARROMBAMENTO PARA SAIR DO LOCAL DO CRIME
A primeira qualificadora do crime de furto é aquela prevista no artigo 155, § 4º., I, CP, qual seja, o “rompimento ou destruição de obstáculo à subtração da coisa”.
Ora, se o rompimento ou destruição do obstáculo se dá como meio para o fim da subtração, é natural que ocorra primeiro o arrombamento e depois a subtração.
No entanto, há casos em que o indivíduo logra ingressar no local do crime sem necessidade de arrombamento. Depois, por alguma circunstância adversa, acaba fechado no local e precisa, por exemplo, romper uma porta para poder sair com os bens móveis que furtou.
A grande questão está em decidir se essa inversão da ordem dos fatores altera o produto, ou seja, se o arrombamento de dentro para fora descaracteriza ou não a qualificadora em estudo.
A resposta não é pacífica na doutrina. Para Magalhães Noronha, por exemplo, como o rompimento ou destruição deve dar-se “para” a subtração, então deve ser necessariamente “anterior ou concomitante” a esta. De outra forma, sendo posterior ao apossamento dos bens, não servirá para configurar a qualificadora em destaque. [4]
Em posição oposta se acha Hungria:
“O § 4º., n. I, do art. 155 considera qualificado o furto cometido ‘com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa’. As palavras ‘à subtração da coisa’ podem ser substituídas por estas: ‘à sua execução’. Cumpre que a destruição ou rompimento do obstáculo ocorra em qualquer dos momentos da fase executiva do crime. O que vale dizer: para possibilitar ou facilitar tanto a apprehensio, quanto a efetiva transferência da res furtiva ao poder de livre e tranquila disposição dela por parte do agente. Enquanto o furto não está consumado, ou ainda se ache em fase de execução, a violência contra o obstáculo é qualificativa. Assim o ladrão que, penetrando sem violência numa casa comercial e, já apreendida a res, tem de arrombar, para poder sair, a porta de aço intercorrentemente fechada, comete furto qualificado”. [5]
Mirabete menciona o escólio de Magalhães Noronha, mas alerta que se trata de posição isolada, esclarecendo que a qualificadora ocorrerá sempre que o rompimento ou destruição se der antes da consumação. Para o autor “o termo subtração, empregado no dispositivo em estudo, equivale à consumação”. [6]
Outro autor que enfoca na consumação do crime como marco para a configuração da qualificadora é Bitencourt:
“Na verdade, não há qualquer relevância se a violência contra a coisa se opera antes ou depois de sua apreensão, desde que, logicamente, se concretize antes da consumação do crime. Assim, destruição ou rompimento praticado para consumar a subtração, mesmo após a apreensão física da coisa, também qualifica o crime; agora, se o rompimento ou a destruição for praticado após a consumação do furto, constituirá crime autônomo”. [7]
Não destoa Damásio, afirmando que o rompimento ou destruição pode dar-se a qualquer momento, desde que antes da consumação. [8]
Releva destacar que a doutrina predominante, que inclusive se reflete na jurisprudência a respeito do tema, admite a qualificadora em apreço mesmo quando o arrombamento se dá após o apossamento do bem, para sair do local do delito. O marco para a aplicabilidade da qualificadora é a consumação do crime. Sendo, portanto, o arrombamento anterior à consumação, pode-se dizer que foi meio para a prática do furto e, assim sendo, qualificá-lo.
4 - O VISLUMBRE DE UMA VIRAGEM DOGMÁTICO – JURISPRUDENCIAL
Como visto, inicialmente predominava a tese de que para a consumação do furto era necessária a “posse tranquila” do bem móvel subtraído pelo agente. Reinava a “Teoria da Inversão da Posse”, ainda hoje adotada por alguns autores. No entanto, vem predominando na atualidade, seja no STF ou no STJ, com nítidos reflexos sobre a doutrina, a Teoria da “Amotio” que torna inexigível a “posse tranquila”, contentando-se com a mera remoção da coisa do local onde se achava inicialmente. Portanto, o momento consumativo do furto sofreu uma antecipação.
Quanto à aplicação da qualificadora da destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa, o que se verifica é uma exigência defendida por Magalhães Noronha de que o arrombamento se dê antes ou ao menos concomitantemente à subtração. Por outro lado, praticamente todo o restante da doutrina que se manifesta a respeito do caso, afirma que o que importa é que o arrombamento se tenha dado para assegurar a posse da “res furtiva”, configurando-se a qualificadora em destaque, mesmo quando o autor adentra ao local do furto sem arrombamento inicial e depois precisa fazê-lo para sair com o bem furtado.
O entendimento até hoje predominante sobre a aplicação da qualificadora era condizente com a “Teoria da Inversão da Posse”. Aliás, seus defensores frisam bastante que o que importa é que o arrombamento se dê com o fito de conseguir a consumação do crime. Ou seja, o marco para a validade da qualificadora e não a configuração de crime autônomo de dano, é que esta se opere antes da consumação. Sob a égide da “Teoria da Inversão da Posse” era lógico que se o indivíduo adentrava ao local do furto sem arrombar, mas ali ficava preso por alguma circunstância adversa e então perpetrava o rompimento para sair, o fazia antes da consumação. Isso era facilmente compreensível porque era exigida a “posse tranquila”. Ora, se o indivíduo estava trancado no local, ainda que já houvesse obtido a posse do objeto almejado, não se poderia jamais concluir que essa posse era tranquila, muito ao reverso. Então, ao perpetrar o arrombamento, o fazia com o fim de efetivamente consumar o crime e não como um ato posterior à consumação. Esse era, na verdade, o cerne da prevalência do entendimento da configuração da qualificadora nos casos de arrombamento de dentro para fora.
Contudo, atualmente, a predominância da orientação da “Amotio” adianta o momento consumativo do furto para o mero apossamento momentâneo da coisa pelo autor, sem necessidade de “posse tranquila”. Nesse passo, quando o infrator está dentro do local, ao qual teve acesso sem rompimento ou destruição de obstáculo, e se apossa de um bem qualquer, o furto já está consumado, independentemente de “posse tranquila”. Portanto, quando vai sair e se depara, agora, com obstáculo e o rompe ou destrói, o faz após a consumação, ao menos segundo a orientação hoje em voga no STF e STJ e defendida por boa parcela da doutrina. Se o marco para a aplicabilidade da qualificadora é a consumação do crime e o arrombamento deve dar-se antes dessa, então a visão sobre a questão do arrombamento para sair do local deve necessariamente ser posta em revisão. O pensamento até agora isolado de Magalhães Noronha deve tender a ganhar espaço na doutrina e na jurisprudência, a não ser que se retome a “Teoria da Inversão da Posse”. Estando já consumado o furto com o mero apossamento, o rompimento ou destruição posterior para a saída, é um “post factum” que não pode ter o condão de gerar a qualificadora, eis que jamais pode ser visto como meio para a prática do furto que já estava consumado. Como visto a doutrina assevera com insistência que o que importa é que o arrombamento se dê anteriormente à consumação, só assim pode ser considerado meio para ela.
5 - CONCLUSÃO
No decorrer deste trabalho foram expostas as teorias sobre a consumação do crime de furto, indicando-se a tendência que oscilou ao longo do tempo entre a chamada “Teoria da Inversão da Posse” e a Teoria da “Amotio”, predominando na atualidade a segunda, inclusive no STF e no STJ.
Com fulcro na noção da consumação do furto com a posse tranquila (“Teoria da Inversão da Posse”, que predominou por largo período), a situação em que o agente pratica o rompimento ou destruição de obstáculo após a subtração da coisa para sair do local vem sendo considerada pela maioria da doutrina e da jurisprudência como configuradora da qualificadora do artigo 155, § 4º., I, CP. Destoa desse entendimento o autor Edgard Magalhães Noronha, para quem a qualificadora somente se perfaz acaso o arrombamento seja anterior ou concomitante à subtração.
Constatou-se que a alteração do entendimento sobre a consumação do furto deve gerar uma consequente mudança no pensamento que versa sobre a aplicabilidade da qualificadora nos casos de arrombamentos para a saída do local. Isso porque, com razão, a doutrina sempre frisou que o importante era que o arrombamento se desse para o fim da consumação, fosse operado antes dela. Ora, na vigência da “Teoria da Inversão da Posse”, o indivíduo com os objetos trancado no local do crime, ainda não havia consumado a infração e perpetrava o arrombamento para consumá-la. Hoje, porém, com a predominância da Teoria da “Amotio”, o agente, ao retirar os bens de onde se achavam e tê-los consigo, ainda que momentaneamente, já consuma o delito de furto. Desse modo, estando aprisionado no local por alguma circunstância e vindo a perpetrar o arrombamento para sair, age depois da consumação do furto e, portanto, não age para a sua consumação que já ocorreu. Dessa forma, não haverá mais falar-se em aplicação da qualificadora do artigo 155, § 4º., I, CP quando o arrombamento de der depois do apossamento dos bens pelo agente. O marco da consumação, indicado pela própria doutrina que defendia a tese até agora ainda vigente, se alterou, se adiantou e, com isso, deve mudar a perspectiva de aplicação da qualificadora.
Resta saber se a doutrina e a jurisprudência terão o cuidado e a visão necessária para perceber essa viragem que se opera.
6-REFERÊNCIAS
BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal. Volume 2. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 3. 10ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume III. 12ª. ed. Niterói: Impetus, 2015.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume III. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Volume 2. 32ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. Volume 2. 24ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 3. São Paulo: RT, 2001.
STEFAM, André. Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 2010.
TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume II. São Paulo: Atlas, 2004.
[1] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 31ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 208.
[2] STEFAM, André. Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 361.
[3] TELES, Ney Moura. Direito Penal. Volume II. São Paulo: Atlas, 2004, p. 350 – 351. Ainda no mesmo sentido: JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Volume 2. 32ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 345 – 346. Contudo, ainda há autores que defendem a “Teoria da Inversão da Posse”, exigindo a “posse tranquila” do bem móvel para consumação do furto. São exemplos: Flávio Augusto Monteiro de Barros, Cezar Roberto Bitencourt, Rogério Greco. Cf. BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal. Volume 2. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 344. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 3. 10ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 44 – 45. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Volume III. 12ª. ed. Niterói: Impetus, 2015, p. 14. Este último autor traz à colação as tradicionais lições de Heleno Fragoso e Nelson Hungria, exigindo também a posse tranquila. Op. Cit., p. 13 – 14.
[4] NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. Volume 2. 24ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 233.
[5] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume III. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 40.
[6] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Op. Cit., p. 214. No mesmo sentido: GRECO, Rogério. Op. Cit., p. 26.
[7] BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit., p. 55. No mesmo sentido: PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. Volume 3. São Paulo: RT, 2001, p. 374.
[8] JESUS, Damásio Evangelista de. Op. Cit., p. 362.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Teoria da "amotio" como paradigma da consumação do furto: uma questão pontual nos casos de rompimento ou destruição de obstáculo à subtração da coisa Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 maio 2015, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2120/teoria-da-amotio-como-paradigma-da-consumacao-do-furto-uma-questao-pontual-nos-casos-de-rompimento-ou-destruicao-de-obstaculo-a-subtracao-da-coisa. Acesso em: 27 nov 2024.
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