É o Art. 84 do Estatuto da Criança e do Adolescente que regulamenta a viagem de crianças e adolescentes para o exterior. Prevê o Estatuto que, em qualquer caso, deverá haver anuência expressa de ambos os pais para que seus filhos deixem o País, através de documento com firma reconhecida.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ao encontro deste entendimento, assim se manifesta sem titubear:
“Civil. Recurso especial. Viagem internacional de menor acompanhado de um dos pais. Autorização expressa do outro com firma reconhecida. Negativa de embarque. Ato ilícito. Não ocorrência.
- Para que um menor possa empreender viagem internacional na companhia de um dos pais, é necessário que o acompanhante apresente, em substituição à autorização judicial, autorização expressa do outro genitor com firma reconhecida, não suprindo a formalidade a simples assinatura de autorização perante autoridade da Polícia Federal.
- Porquanto a negativa de embarque do menor se deu no estrito cumprimento da lei, porque a autorização parental apresentada despiu-se da formalidade legalmente exigida, não há se falar na prática de ato ilícito indenizável pela companhia aérea.
Recurso especial conhecido e provido. Pedido julgado improcedente.
Inversão dos ônus de sucumbência.
(REsp 685.003/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/12/2004, DJ 01/02/2005, p. 562)”.
Pois bem. Aí começa o calvário processual de crianças e adolescentes.
Nas fileiras da Defensoria Pública todos os dias chegam mães narrando que seus ex-companheiros ou ex-maridos abandonaram seus filhos há muitos anos, quando estes ainda eram de pouca idade, que esses menores sequer se recordam da figura paterna. A maioria esmagadora dessas genitoras não faz a mínima idéia do paradeiro desses pais. Muitas até desabafam dizendo-se arrependidas de ter realizado o registro civil paterno dos filhos.
Se não bastasse toda a tragédia e drama vivenciados pelos menores vítimas do abandono afetivo paterno, anos depois essas crianças e adolescentes descobrirão mais um verdadeiro desgosto provocado por esses genitores.
É que, como dito acima, para que estas crianças e adolescentes deixem o Brasil, em busca de novas oportunidades e de uma vida melhor ao lado de suas mães, todas necessitarão atender ao disposto no Art. 84, do ECA. Ou seja, em razão da absoluta e completa ausência dos pais, mesmo que há anos a fio, esses menores representados pelas suas genitoras deverão ajuizar a competente ação de suprimento de consentimento paterno de viagem ao exterior.
Sim. Mesmo que haja até sérias e fundadas razões para se acreditar que esse pai possa vir a estar falecido há anos, ausente a certidão de óbito deste genitor, será obrigatória a propositura de demanda judicial para suprir o seu consentimento.
E trata-se de demanda judicial em que a concessão da antecipação dos efeitos da tutela principal é quase que uma raridade, uma vez que o §2, do Art. 273, do CPC, prescreve como regra geral que não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.
Ora, acaso concedida a antecipação dos efeitos da tutela, liminarmente suprido o consentimento paterno, o menor deixará o País, evadindo-se da jurisdição brasileira. Por isso que a tutela antecipada nesses casos limita-se majoritariamente à mera autorização da confecção e expedição do passaporte do menor junto à polícia federal.
O suprimento judicial do consentimento paterno só será obtido após o esgotamento de todo o processo judicial. Interstício natural e sabidamente eterno para aquelas mães e filhos que buscam fora do País a dignidade, a igualdade e a consideração do Poder Público jamais vistos aqui.
Dispensa qualquer anotação ou comentário a realidade de muitos brasileiros, que desde meados do Século XX, embarcam para a América do Norte, Europa e Japão em busca de uma vida melhor.
Apenas para registro, há mais de 1,5 milhão de brasileiros morando nos Estados Unidos, sendo que 300 mil deles estão na Flórida. Ao todo, para o Itamaraty mais de 3 milhões de brasileiros vivem hoje no exterior.
Sabe-se que muitos, talvez a grande maioria de brasileiros no exterior, é composta de pessoas que não possuíam recursos ou condições financeiras de custear a própria subsistência e da família enquanto eram domiciliados no Brasil.
E na Defensoria Pública, naturalmente, a realidade dessa gente brasileira marginalizada e carente de políticas públicas e sociais não é diferente. A procura do suprimento de consentimento paterno para viagem ao exterior do menor acompanhado de sua genitora não é para deleite ou curtição de férias escolares na Disney World ou em algum resort na Polinésia Francesa.
Para milhares de crianças e adolescentes carentes, acompanhados de suas genitoras, que comparecem à Defensoria Pública, o suprimento judicial do consentimento paterno e, assim, a realização da tão esperada viagem ao exterior, representa a busca de um sonho de uma vida digna, já realizada por outros de milhões de brasileiros fora do Brasil.
Essas mães que sozinhas criaram seus filhos desde o nascimento, em boa parte já contraíram novo relacionamento ou casamento. Seus companheiros ou cônjuges, alguns já domiciliados ou empregados no exterior, são bons e atenciosos padrastos quando em solo brasileiro. Boa parte do restante dos familiares dessas mães, não raras vezes, também já se encontra há anos no exterior, trabalhando, com moradia fixa e naturalizada.
O trâmite processual dessas ações de suprimento de consentimento paterno atrapalhará toda a vida do menor e de sua genitora. Deverá o pai ausente, em local incerto e não sabido, ser citado por edital após as exaustivas tentativas infrutíferas de localizá-lo. Após ser-lhe-á obrigatoriamente nomeado Curador Especial para defendê-lo sem poderes para transigir. Seguindo a demanda o processo de conhecimento comum pelo rito ordinário. E, como dito acima, sem a liminar autorizativa da viagem. Muitas mães desistem desse tipo de ação ou abandonam o processo.
É preciso que o legislador brasileiro abandone a ficção legislativa e a teoria vacilante para compreender e acalentar as dores e sofrimento do povo brasileiro. A realidade do que acontece nas fileiras da Defensoria Pública deve ser sentida pelo legislador, ao encontro dos anseios de milhares de crianças e adolescentes que buscam no exterior uma oportunidade de vida próspera, ao lado de suas mães e demais familiares.
O Novo Código de Processo Civil dedicará um capítulo inteiro à cooperação jurídica internacional, destacando a possiblidade da adoção de medidas judiciais de urgência entre o Brasil e demais países.
Talvez essa cooperação internacional prevista no NCPC facilite a aplicação da Convenção Sobre os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças (1980), de Haia, a tornar possível, assim, o deferimento da tutela antecipatória liminar dos suprimentos judiciais de consentimento paterno de viagem ao exterior de menores.
A Convenção de Haia prima por objetivar assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas para qualquer País ou nele retidas indevidamente. O Art. 11 da Convenção estabelece que as autoridades judiciais deverão adotar medidas de urgência com vistas ao retorno da criança ao seu País de origem.
A previsão expressa da cooperação jurídica internacional no NCPC poderá garantir maior efetividade e aplicação prática da Convenção de Haia. Oportunizando, assim, a total e plena reversibilidade dos provimentos judiciais liminares de suprimento de consentimento paterno de autorização de viagem ao exterior.
Hoje, vivemos em um mundo sem fronteiras. Extradições, deportações, expulsões, buscas e apreensões etc são executadas de um país para o outro em tempo recorde. Documentos oficiais são transmitidos on-line, até mesmo pelo WhatsApp. A ponto de revelar que a saída de crianças e adolescentes do Brasil acompanhados de suas mães poderá ser revista, revertendo-se o provimento liminar.
Mas o Congresso Nacional deverá fazer sua parte. Enxugando em muito o longo e demorado rito ordinário previsto nesses tipos de ações, que só premia e prestigia o abandono afetivo paterno, que condena e continua a castigar a prole esquecida, para desespero das mães e do futuro dessas crianças e adolescentes.
Defensor Público do Estado do Espírito Santo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AMARAL, Carlos Eduardo Rios do. A problemática do suprimento de consentimento de viagem de menor ao exterior Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 mar 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2338/a-problematica-do-suprimento-de-consentimento-de-viagem-de-menor-ao-exterior. Acesso em: 21 nov 2024.
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