Decidiu o Supremo Tribunal Federal que Prefeitos que tiveram suas contas reprovadas por tribunais de contas poderão concorrer nas eleições se as contas não tiverem sido rejeitadas também pelo Legislativo. Assim, mesmo que a corte de contas dê parecer pela rejeição, os prefeitos poderão candidatar-se.
Não lançaremos o nosso parecer sobre o voto falado do emérito constitucionalista, o ministro Gilmar Mendes, por seus excessos e destemperos pontuais (“Sem querer ofender ninguém, mas já ofendendo, parece que a Lei da Ficha Limpa foi feita por bêbados”), por não entendermos agregador de valor à discussão jurídica proposta. Dada observação preambular, sigamos em nossa linha exegética.
Entre as irregularidades que podem enquadrar um político como ficha-suja, além da reprovação de contas, estão condenações em segunda instância por crimes como lavagem de dinheiro, corrupção peculato ou improbidade administrativa.
Decisão do Supremo Tribunal Federal, que deu ao Legislativo a palavra final sobre a reprovação de contas de gestores públicos para fins de torná-los inelegíveis.
Calculamos segundo levantamento, que mais de seis mil prefeitos e ex-prefeitos serão liberados para candidatarem-se pela decisão do Supremo de não enquadrá-los como fichas-sujas após a reprovação de suas contas pelo tribunal de contas.
Restaram fixados dois verbetes. O primeiro: “Para fins do artigo 1º, inciso I, alínea ‘g’, da Lei Complementar 64/1990, alterado pela Lei Complementar 135/2010, a apreciação de contas dos prefeitos, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas câmaras legislativas com auxílio dos tribunais de contas, cujo parecer só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos vereadores”.
Já o segundo verbete foi na linha proposta pelo relator, o ministro Gilmar Mendes: “Parecer técnico elaborado pelo tribunal de contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à câmara de vereadores o julgamento das contas anuais do chefe do poder executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por decurso de prazo”.
O Supremo definiu que só a rejeição das contas de prefeitos por câmaras de vereadores tem o poder de declará-los inelegíveis, mesmo que sejam contas de quando o prefeito atua como ordenador de gastos. Portanto, mesmo que a corte de contas dê parecer pela rejeição das contas, os prefeitos podem se candidatar.
A ratio essendi do posicionamento que prevaleceu foi de fazer decisiva a vontade popular representada pelo Poder Legislativo, e não o parecer técnico de um órgão auxiliar.
Entendemos porém, discutível referida argumentação, e assim assentamos ao lembrarmos que a Lei da Ficha Limpa é uma lei de iniciativa popular, legitimada pela sociedade que pleiteia uma representação política pautada na probidade dos agentes políticos na seara do respeito ao tão vilipendiado princípio da Moralidade Administrativa. Assim não há como compreendermos no sentido exposto pela tese vencedora consistindo em um ganho valorativo da soberania popular, quando sabemos que a prática nos demonstra uma profunda crise moral das instituições políticas de poder (entre elas o Legislativo), que traficam influências e permutam favores recíprocos, que por curial em muito se distanciam do interesse público, indubitáveis compadrios de uma enormidade de desvios de finalidade que a boa ética intenta combater.
A tese vencedora é, na verdade, a interpretação do Supremo do artigo 1º, inciso I, alínea g, da Lei das Inelegibilidades. Ela diz que são inelegíveis os chefes de Executivo que tiverem suas contas rejeitadas “por decisão irrecorrível do órgão competente”. O TSE costumava entender que, mesmo quando o prefeito atuava como ordenador de gastos, o Legislativo era quem o declarava inelegível.
É bem verdade que, nos temos técnico-jurídicos os tribunais de contas não rejeitam as contas, já que não têm poderes para tanto, não julgam, dão parecer. A Lei Complementar 64 refere-se estritamente a inelegibilidade pela rejeição das contas. Como referiu Celso de Mello, “parecer do tribunal de contas contém formulação técnica apreciável extremamente relevante, mas não implica rejeição, mas apenas a proposta de rejeição cujo destinatário é o órgão legislativo”.
Consabido, por força de dispositivo constitucional (art. 84, XXIV, da CF), que o Presidente da República e por simetria o Prefeito tem o dever de prestar anualmente ao Congresso Nacional, por simetria a Assembléia Legislativa, em um prazo de 60 (sessenta) dias a contar a abertura da sessão legislativa, as contas referentes ao exercício anterior. E a partir daí, os Tribunais de Contas respectivos tem competência constitucional para emitir parecer prévio sobre essas contas, cabendo ao Poder Legislativo promover do respectivo julgamento. Embora a competência de julgamento das contas seja do Poder Legislativo, somente poderá fazê-lo diante do parecer prévio do Tribunal de Contas que, portanto, reveste-se de peça obrigatória e de caráter fundamental.
Assim foi incontestavelmente técnica a tese vencedora prolatada pelo Supremo Tribunal Federal pela força diminuta que ainda atribuiu a CRFB/1988 ao Tribunal de Contas como mero órgão auxiliar do Legislativo. Lamentavelmente a técnica de interpretação vai de encontro e se choca inelutavelmente ao espírito moralizador pretendido com a Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010) neste contexto.
Em suma, a Lei da Ficha Limpa em sua essência espiritual sofre uma derrota técnico-jurídica em termos de efetividade e com ela o princípio da Moralidade como parte integrante do art. 37 da Constituição Federal. Na mesma linha a soberania popular, quando sabemos que por rotineiro temos o desrespeito dos poderes políticos ao legítimo interesse público, quando a Lei da Ficha Limpa representou a mais legítima manifestação da soberania popular, agora de certo enfraquecida em parcela que muito bem se prestava no combate à corrupção para barrar candidaturas essencialmente apodrecidas, mas enfim, é preciso respeitar-se o ordenamento posto e a exegese do órgão julgador não pode basear-se previamente na imprestabilidade do Legislativo para o cumprimento de seu mister.
Como faz tempo, sustentamos aos órgãos de controle, in casu os Tribunais de Contas, pela necessidade de receber a qualidade que lhes confiram autonomia e força vinculante aos seus pareceres, retirando o Tribunal de Contas do posto de mero auxiliar do Poder Legislativo como medida de combate ao sistema de corrupção instalado no país de maneira mais efetiva e ampla. Autonomia que deve restar firmada no Texto Constitucional por meio de emenda constitucional e que deve abarcar, inclusive, na mesma linha dos órgãos de controle, os órgãos de investigação, ex vi, a Polícia Federal, que urgentemente deve restar desligada do Executivo Federal para que suporte menor influência política inibitória de suas atuações.
Enfim, mais um caso que retrata uma decisão judicial técnica sim, mas que contraria o interesse público e se distancia do sentimento de justiça e equidade que se deveria perseguir.
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