Resumo: 1. Notas introdutórias – 2. Lacan e o Crime – 3. Lacan e a Criminologia – 4. Considerações finais – 5. Referências bibliográficas.
Palavras-chaves: Lacan – Criminologia – Psicanálise.
1.Notas Introdutórias.
Jacques Lacan, antes de ser um dos notáveis da psicanálise, foi um pensador. Sua contribuição foi além da doutrina freudiana, ao fundir a Psicanálise com o saber oriundo de outros ramos do conhecimento, como a Lingüística, Filosofia etc. Ele ousou na história do próprio pensamento ocidental com sua abordagem da Psicanálise.
É curioso como diversos psicanalistas como Freud, Lacan, Maud Mannoni[1], entre outros nomes, em algum momento de seus trabalhos tiveram que conectar de alguma forma a Psicanálise com o crime ou a própria Criminologia[2]. Freud, em alguns momentos de seus estudos, também discorreu sobre o crime.
Psicanálise e Criminologia são ciências, para os que defendem esta visão, que surgiram em uma época muito recente e próxima, na visão de alguns. Cesare Lombroso[3] publicou “O homem delinqüente” em 1876[4]; Freud publicou o livro “A interpretação dos sonhos”, em 1900. Ambas as teorias tiveram uma forte influência do pensamento do final do século XIX, e se desenvolveram com grande velocidade nas primeiras décadas do século XX, a Criminologia com a influência pragmática do pensamento norte-americano, utilitarista, e a Psicanálise com o sopro revitalizador do pensamento lacaniano a partir da década de 1940.
Segundo Elizabeth Roudinesco:
“Se Lombroso inventou a falsa teoria do “criminoso nato”, ele foi também o primeiro grande teorizador do crime a constituir uma documentação sobre a criminalidade, escrita pelos condenados; diários íntimos, autobiografias, depoimentos grafites de prisioneiros e anotações em livros de bibliotecas. Assim a criminologia nascente não se contentava em classificar taras e estigmas, porém já afirmava, como fizera Freud ao lutar contra o niilismo terapêutico, a necessidade de incluir no estudo do crime a fala do principal interessado: o próprio criminoso.”[5]
2.Lacan e o crime.
Curiosamente, foi um crime que chamou a atenção do jovem Lacan que em 1932 defendeu sua tese de medicina “Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade”, após acompanhar por cerca de um ano e meio a estória que ele mesmo chamou de “Caso Aimée”.
Segundo Elizabeth Roudinesco:
“No Hospital Sainte-Anne, durante um ano, Lacan utilizou todos os meios à disposição para construir um caso de paranóia de autopunição, mais próximo de suas preocupações doutrinais que do verdadeiro destino de Marguerite Pantaine. Essa mulher, que malograra em seu crime, apresentava sinais reais de paranóia e, sem dúvida nenhuma, era ao mesmo tempo perseguida, megalômana e mística.” [6]
Pouco depois, outro crime chamou a atenção de Lacan, que buscava construir a sua visão particular da Psicanálise: o caso das irmãs Pappin (1933). Todavia, já houve uma mudança de paradigma da visão lacaniana entre o Caso Aimée e o das Irmãs Pappin.
Para Roudinesco:
“De um crime a outro, de Marguerite a Christine, Lacan havia passado portanto de um monismo spinoziano, no qual pensava a personalidade como uma totalidade que incluía a norma e a patologia, a um monismo hegeliano, que o fazia abandonar a idéia mesma de personalidade em favor da idéia de consciência de si. Mas será preciso esperar o ano de 1936 para que seu encontro com o sistema hegeliano traga realmente seus frutos, a partir da dupla experiência do divã de Loewenstein e do seminário de Kojève.” [7]
3.Lacan e a Criminologia.
Na jornada pessoal do desenvolvimento de suas idéias, e da própria Psicanálise, houve dois momentos bem específicos que levaram Lacan a tratar diretamente das relações da Psicanálise com a Criminologia: o primeiro foi a comunicação para a XII Conferência dos Psicanalistas de Língua Francesa, em 29.05.50, publicada com o título “Introdução teórica ás funções da Psicanálise em Criminologia” na Obra “Escritos”, no ano de 1966, e o segundo momento no retorno do mesmo tema, com a publicação de “Premissas a todo o desenvolvimento possível da Criminologia”, um resumo das respostas fornecidas por ocasião do debate sobre esse primeiro relatório e que se encontra na obra “Outros escritos”, publicada por Jacques-Alain Miller em 2001.
Lacan deixa claro nesses dois artigos o papel da lei em sua interação com a subjetividade humana e a relação dialética da lei com o crime, uma criação da cultura.
Lacan rejeita a tentativa anterior de Cesare Lombroso com sua teoria do delinqüente nato, de olhar o criminoso como um ser primitivo, atávico, bem como rejeita a concepção da categoria de crime natural, a qual a Criminologia tentou sem sucesso desenvolver, em especial, com Garofalo.
Para Lacan:
“A psicanálise amplia o campo das indicações de um tratamento possível do criminoso como tal – evidenciando a existência de crimes que só tem sentido se compreendidos numa estrutura fechada de subjetividade – nominalmente, aquela que exclui o neurótico do reconhecimento autêntico do outro, amortecendo para ele as experiências da luta e da comunicação social, estrutura esta que pode deixar atormentado pela raiz truncada da consciência moral que chamamos de supereu, ou, dito de outra maneira, pela profunda ambigüidade do sentimento que isolamos no termo culpa”.[8]
Tal advertência é de suma importância e atualidade para a Criminologia, invadida que foi pelas teorias macrossociológicas norte-americanas, as quais gozam de grande aceitação na criminologia, por darem uma visão de conjunto do fenômeno criminal, mas não aprofundam a história de cada indivíduo com todas as suas particularidades psicológicas.[9]
Ainda Lacan:
“Isso porque a realidade humana não é apenas obra da organização social, mas é uma relação subjetiva que, por estar aberta à dialética patética que tem de se submeter o particular ao universal, tem seu ponto de partida numa dolorosa alienação do indivíduo em seu semelhante, e encontra seus encaminhamentos nas represálias da agressividade” [10]
Uma das preocupações da criminologia é a busca da verdade, ou, da percepção mais próxima possível de toda a complexidade do fato criminal, procura que não é a mesma do Direito Penal com suas “verdades jurídicas”. A Psicanálise, neste ponto com Lacan, auxilia na busca dessa verdade, quando inclui a subjetividade do delinqüente no foco do criminólogo, não deixando-o alienado de sua história.
É sobre isso que adverte Lacan:
“A ação concreta da psicanálise é de benefício numa ordem rija. As significações que ele revela no sujeito culpado não o excluem da comunidade humana. Ela possibilita um tratamento em que o sujeito não fica alienado em si mesmo. A responsabilidade por ela restaurada nele corresponde à esperança, que palpita em todo o ser condenado, de se integrar em um sentido vivido.” [11]
4.Considerações finais.
O condenado vive em um sistema opressivo e com fins manifestos e ocultos. A ressocialização é um dos objetivos apregoados e quase nem sempre atingidos.
A Criminologia atual trabalha com teorias de grande aceitação, sendo dominada na atualidade pelas macrossociológicas, as quais abandonam o foco do ser humano para procurar padrões de comportamento em grupos dos mais diversos tamanhos, perdendo a essência da pessoa humana que está sendo julgada pelo ato criminoso.
Restaurar a história do sujeito que cumpre a pena é humanizar aspectos que a frieza das teorias criminológicas modernas não consegue alcançar, resgatando a dor que todo o evento criminal também traz para os seus autores.
Finalizando, com Lacan, que frisa a idéia da responsabilidade do sujeito:
“A verdade que a psicanálise pode conduzir o criminoso não pode ser desvinculada da base da experiência que a constitui, e essa base é a mesma que define o caráter sagrado da ação médica – ou seja, o respeito pelo sofrimento do homem.”
A psicanálise do criminoso tem limites que são exatamente aqueles em que começa a ação policial, em cujo campo ela deve se recusar a entrar. Por isso é que não há de ser exercida sem punição, mesmo quando o delinqüente, infantil, se beneficiar de uma certa proteção da lei” [12]
5.Referências bibliográficas.
CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia, 4ª ed, Rio de Janeiro, Impetus, 2009.
LACAN, Jacques. Premissas a todo o desenvolvimento da Criminologia in Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003.
ROUDINESCO, Elizabeth. Jacques-Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. Tradução de Paulo Neves. Companhia das Letras, 2008.
____________________. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007.
ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
[1] Mannoni estudou Criminologia em Bruxelas, Bélgica, onde também fez estudos de Psiquiatria.
[2] Etimologicamente, Criminologia deriva do latim crimen (crime, delito) e do grego logo (tratado). Foi o antropólogo francês Paul Topinard (1830-1911), o primeiro a utilizar este termo no ano de 1879. Todavia, o termo só passou a ser aceito internacionalmente com a publicação da obra Criminologia, já no ano de 1885, de Raffaele Garofalo (1851-1934).
[3] Fala-se muito de Lombroso (1835-1909), em especial, no meio acadêmico, mas pouco se conhece verdadeiramente do papel que teve para a Criminologia e a Escola Positiva de Direito Penal. Lombroso estudou na Universidade de Pádua, Viena, e Paris e foi posteriormente (1862-1876) professor de psiquiatria na Universidade de Pavia e medicina forense e higiene (1876), psiquiatria (1896) e antropologia criminal (1906) na Universidade de Turim. Foi também diretor de um asilo mental na Itália. As idéias de Lombroso sustentaram um momento de rompimento de paradigmas no Direito Penal e o surgimento da fase científica da Criminologia. Lombroso e os adeptos da Escola Positiva de Direito Penal rebateram a tese da Escola Clássica da responsabilidade penal lastreada no livre-arbítrio.
[4] Embora parte da doutrina defenda que a publicação de “Dos delitos e das penas” de Cesare Beccaria em 1764 seja o marco do surgimento da “fase científica” da Criminologia, foi Lombroso que introduziu o método empírico na Criminologia, sendo esta a notável e principal contribuição sua para a Criminologia.
[5] ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p. 139.
[6] ROUDINESCO, Elizabeth. Jacques-Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. Tradução de Paulo Neves. Companhia das Letras, 2008, p. 68.
[7] ROUDINESCO, op. cit, p. 96.
[8] LACAN, Jacques. Premissas a todo o desenvolvimento da Criminologia in Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 128.
[9] Sobre a visão psicanalítica da perversão em crimes como pedofilia, terrorismo etc., vide a recente obra de Elisabeth Roudinesco. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007, 223 p.
[10] LACAN (2003), ibidem.
[11] LACAN (2003), p. 131.
[12] LACAN (2003), p. 131.
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro. Autor e membro dos conselhos editoriais das editoras Impetus (RJ) e Mandamentos (MG). Conselheiro do ICP - Instituto de Ciências Penais de Minas Gerais. Presidente da seção mineira da Sociedade Brasileira de Vitimologia..Titular do portal www.novacriminologia.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHAU, Lélio Braga. Criminologia e Psicanálise: breves considerações sobre a visão de Jacques Lacan Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 abr 2009, 19:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/245/criminologia-e-psicanalise-breves-consideracoes-sobre-a-visao-de-jacques-lacan. Acesso em: 23 nov 2024.
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