Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar, sob o viés do Direito Administrativo Global – DAG, a exigência de certificação emitida pela ISO – International Organization for Standardization – em licitações. Tal entidade, que determina os padrões de qualidade em âmbito internacional, ainda que formalmente atue com transparência, participação dos interessados e accountability, acaba por, sem se subordinar ao ordenamento jurídico interno, influenciar as contratações de produtos e serviços demandados pela Administração Pública.
Palavras-chave: Licitação. Direito Administrativo Global. Habilitação. Certificação. ISO.
Abstract: This work aims to analyze, under the bias of the Global Administrative Law – DAG, the certification requirement issued by ISO – International Organization for Standardization – in bids. Such an entity that determines the quality standards internationally, although formally act with transparency, stakeholder participation and accountability, ultimately, without subordinating the domestic legal system, influence the hiring of goods and services demanded by the Government.
Key words: Bidding. Global Administrative Law. Qualification. Certification. ISO.
Sumário: 1. Introdução – 2. A ISO – International Organization for Standardization – 3. Como são criados os padrões ISO e são emitidas as certificações – 4. As regras de licitação e as exigências de habilitação – 5. A Jurisprudência acerca das certificações ISO – 6. Conclusão.
Num mundo cada vez mais globalizado e dinâmico, é percebida a crescente influência de organismos internacionais não governamentais, como é o caso da ISO – International Organization for Standardization – no estabelecimento de regras e padrões. No entanto, tais entidades nem sempre possuem, para a definição de suas regras e padrões, mecanismos relevantes de governança global, como a transparência, a participação dos interessados e a accountability.
Tal deficiência é ainda mais grave quando a Administração pública, em suas licitações para compras e para prestação de serviços, exige dos interessados a obediência às normas definidas por organismos internacionais não governamentais.
Assim, o objetivo deste artigo e, por conseguinte, a sua problemática, é analisar a exigência de certificação emitida pela ISO em licitações e perquirir quais as consequências de tal decisão da Administração nos certames licitatórios.
Para responder a tal indagação, será necessário expor: i) o que é a ISO; ii) como é criado os padrões ISO e emitida a respectiva certificação; iii) as regras de licitação e as exigências de habilitação; iv) a jurisprudência acerca das certificações ISO.
Ressalte-se que o presente trabalho não se tem a pretensão de esgotar o assunto, mas sim trazer maior luz ao tema, apontando os principais pontos controvertidos, trazendo a problemática para a óptica do Direito Administrativo Global – DAG.
A ISO é uma organização internacional não governamental que tem por objetivo criar padronizações para processos, produtos e serviços. Tais padrões são aceitos em diversos países e, muitas vezes, tornam-se uma exigência por conta da prática de mercado. Segundo o site da própria organização:
ISO is an independent, non-governmental international organization with a membership of 161 national standards bodies. Through its members, it brings together experts to share knowledge and develop voluntary, consensus-based, market relevant International Standards that support innovation and provide solutions to global challenges.
A respeito dos membros que integram a ISO, por sua vez, é exposto, no sítio da organização, que:
We are a network of national standards bodies. Our members are the foremost standards organizations in their countries and there is only one member per country. Each member represents ISO in its country. Individuals or companies cannot become ISO members.
There are three member categories. Each enjoys a different level of access and influence over the ISO system. This helps us to be inclusive while also recognizing the different needs and capacity of each national standards body.
- Full members (or member bodies) influence ISO standards development and strategy by participating and voting in ISO technical and policy meetings. Full members sell and adopt ISO International Standards nationally.
- Correspondent members observe the development of ISO standards and strategy by attending ISO technical and policy meetings as observers. Correspondent members can sell and adopt ISO International Standards nationally.
- Subscriber members keep up to date on ISO’s work but cannot participate in it. They do not sell or adopt ISO International Standards nationally.
Diante de tais informações, é possível extrair que a ISO é uma rede ampla, distribuída em diversos países, composta por organismos nacionais de normatização. Não participam empresas ou pessoas individualmente, o que confere uma certa imparcialidade à organização, por não cuidar, ao menos explicitamente, de interesses particulares.
Chazournes (2009) explica que, nos últimos sessenta anos, não há dúvida de que o papel e a capacidade das organizações internacionais para a realização de operações têm evoluído muito. Seus objetivos têm se expandido na mesma proporção. As operações de campo têm igualmente aumentado. Tornou-se cada vez mais necessário que as organizações internacionais recorram a mecanismos legais inovadores, capazes de cumprir as novas tarefas que lhes foram atribuídas. Enquanto isso, no cenário mundial, aparece um grande número de intervenientes não estatais com o desiderato de realizar tarefas que eram tradicionalmente de autoridades estatais e organizações intergovernamentais. Em face dos desafios colocados, dentro dessas relações jurídicas complexas, numerosos princípios administrativos surgiram como instrumentos para adaptar o sistema internacional clássico de estados e organizações intergovernamentais para as exigências contemporâneas.
O autor suso mencionado (Chazournes, 2009) comenta, outrossim, que um número cada vez maior de necessidades e demandas ultrapassam as atribuições dos órgãos tradicionais, seja em termos de objetivos, técnicos ou financeiros, o que ocasiona a criação de outros entes globais ou um maior leque de atribuições e tarefas para os já estabelecidos. Destaca que o crescimento da importância dos atores não estatais e os benefícios para as organizações internacionais podem derivar da colaboração entre eles. A participação de todos os agentes interessados e preocupados em determinada causa aumenta a representatividade, legitimidade e eficácia dos entes envolvidos.
É nesse cenário que atua a ISO, regulamentando e padronizando processos, produtos e serviços, atividade esta que deveria ser, a princípio, realizada por um ente estatal doméstico e não por um organismos não governamental internacional.
Relevante pontuar, também, que há apenas um membro da ISO por país, sendo tal membro o representante da aludida entidade no âmbito doméstico. A Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, aliás, é membro da ISO no Brasil, na condição de membro fundador.
Por sua vez, é observável que não há uma igualdade plena entre todos os membros, pois há distinções na forma de participação, possuindo direito a voto apenas os membros efetivos.
O leque de padrões proposto pela ISO é bastantes amplo e numeroso, com a emissão de certificações em produtos bancários, serviços diversos, adequação das práticas a proteção do meio ambiente, dentro outros. A título exemplificativo, veja-se alguns tipos de certificados que podem ser emitidos pela ISO:
ISO 9000 Quality management
ISO 14000 Environmental management
ISO 3166 Country codes
ISO 26000 Social responsibility
ISO 50001 Energy management
ISO 31000 Risk management
ISO 22000 Food safety management
ISO 27001 Information security management
ISO 45001 Occupational health and safety
ISO 37001 Anti-bribery management systems
ISO 13485 Medical devices
Os padrões mais conhecidos no Brasil são a ISO 9000, voltada para gestão da qualidade, e a ISO 14000, voltada para a gestão do meio ambiente.
No mercado empresarial, uma empresa que detém uma certificação ISO 9001 consegue maior credibilidade perante os stakeholders, por ter a sua gestão aderente as normas ditadas por aquela entidade não governamental. De igual forma, há uma maior aceitação de seus produtos e serviços, no mercado interno e externo, quando possuem o selo de qualidade ISO.
Desta forma, percebe-se que a influência da ISO em ditar regras, com amplitude internacional, é bastante grande e penetra em diversos setores, ao arrepio de um controle direto de órgãos governamentais.
De outra senda, mesmo sem um controle direto do Estado nacional, pode-se argumentar que a unificação da padronização, a nível global, é salutar, pois viabiliza maior interação entre países diversos, sem discrepâncias nos métodos e qualidade dos produtos e serviços ofertados, principalmente num mercado multicêntrico globalizado.
Heilmann (2011) argumenta que quanto mais acelerada se tornou a busca de um mercado livre, sem fronteiras, mais se viu afetado o conteúdo do direito na ordem internacional por questões de interesses estatais e da mobilidade de bens, serviços e de pessoas exigindo cada vez mais a atuação administrativa dos distintos países.
Nessa linha, uma padronização emitida por um organismos não governamental internacional, como a ISO, facilita esse mercado livre supracitado e a mobilidade de bens e serviços, na medida em que uniformiza e iguala a produção para todos os países, de maneira indistinta.
Farias (2011) igualmente, ao tratar dos efeitos da crise financeira de 2008 e dos mecanismos para evitar que se repita, defende que deve existir uma normatividade espontânea através de mecanismos internacionais sem fins lucrativos para criar padrões internacionais a serem seguidos ainda que sem serem vinculantes do ponto de vista estritamente legal.
Ele (FARIAS, 2011) propõe, ainda, uma desjuridificação do mercado, com estratégias como permitir que as partes e atores sociais e econômicos tentem definir, de maneira consensual, o conteúdo das normas, afastando a legislação ordinariamente simples para tratar de questões técnicas complexas. Propõe inverter a lógica de hierarquia entre o direito positivo e o mercado, possibilitando que a lei se torne mais funcional a sociedade e a economia, com um apelo mais pragmático.
É exatamente isso que acontece no caso da ISO. É o mercado, desvinculado diretamente dos Estados e da sua respectiva legislação, que impulsiona a criação dos padrões que devem ser seguidos, com o apoio de especialistas do setor interessado.
Por conta de tais fatores, faz-se necessário verificar como tais padrões são criados e como são emitidos os certificados de tal organismo internacional não governamental que influi em diversos setores da sociedade.
É relevante destacar que a definição de um determinado padrão pode ocasionar um aumento do custo de produção de um determinado bem ao, por exemplo, impedir determinada utilização de insumo na fabricação, por afetar supostamente o meio ambiente, ou, ao invés disso, exigir determinado insumo, mais sofisticado e mais caro.
Berman (2012) argumenta, analisando as regras emanadas do ICH – International Conference on Harmonisation of Technical Requirements for Registration of Pharmaceuticals for Human Use – outra entidade que cuida de padronização, no ramo de medicamentos, que, nos países em desenvolvimento, os padrões da ICH afetam até a produção de medicamentos genéricos, aumentando os seus custos. A adoção de tais padrões pode ocasionar efeitos adversos na disponibilidade de medicamentos nos países em desenvolvimento. O risco de não produzir os medicamentos para a população seria muito mais gravoso do que não seguir as normas da ICH.
Ele (BERMAN, 2012) critica que tais padrões, emitidos pelo ICH, apesar de, inicialmente estejam voltados para os EUA, Japão e União Europeia, hoje são padrões globais que utilizam procedimentos desnecessariamente caros, para a produção dos medicamentos, mas que não trazem garantia de benefícios para a saúde pública. Grandes companhias absorvem tais custos facilmente, ao contrário das pequenas indústrias. Isso pode levar, assim, a uma restrição da competitividade.
Assim, um agente transnacional externo, sem obediência ao regramento nacional, pode ocasionar um impacto direto na economia de um determinado país, mesmo que não haja uma legislação disciplinando a matéria. Isso ocorre tanto no caso do ICH como no caso da ISO.
Mendes (2011) aponta que a participação de pessoas singulares ou coletivas na elaboração de normas globais tem sido largamente percebida, demonstrando que o direito internacional global vem, cada vez mais, interferindo nas condutas privadas de âmbito global.
Isso é percebido nos casos em que os padrões ISO são exigidos. Mesmo que exista padrões nacionais, divergentes e por vezes mais baratos do que padrão ISO, que garantam plenamente uma qualidade de um produto, por exemplo, o INMETRO, a aceitação do padrão ISO é muito maior, mormente no mercado internacional, que pode, até mesmo, rejeitar produtos nacionais não aderente as práticas da ISO, mesmo que estejam de acordo com os padrões nacionais.
Ao desenvolver um standard, segundo a ISO, é realizado uma reunião de um comitê técnico, formado por experts na área que se pretende estabelecer o padrão, em que se discute e negocia um rascunho de padronização.
Após a definição do padrão internacional desejável, tal rascunho (draft) é disponibilizado para os membros para que comentem o trabalho realizado pelos experts e para que votem.
Se a votação for unânime, o padrão ISO é estabelecido. Do contrário, o rascunho volta para a equipe técnica para a realização de ajustes requeridos e propostos.
A ISO segue os seguintes princípios para o desenvolvimento dos seus padrões:
1. ISO standards respond to a need in the market
2. ISO standards are based on global expert opinion
3. ISO standards are developed through a multi-stakeholder process
4. ISO standards are based on a consensus
Seguindo tais princípios, os padrões ISO observam as necessidades do mercado, permitindo a participação de experts de diversas áreas do mundo para que contribuam no rascunho de padronização. Segundo a ISO, os comitês técnicos não possuem apenas especialistas da indústria, mas também associação de consumidores, ONGs, universidades e governo.
É tal comitê misto, composto de diversas partes interessadas, é que formula o rascunho que será posto para a votação.
No entanto, no estágio de aprovação, apenas os membros com direito a voto participam, sendo necessário uma votação qualificada para que o padrão seja aceito: é necessário a aprovação por uma maioria de dois terços.
De igual forma, nas diretrizes da ISO, é previsto a possibilidade de revisão das normas já publicadas.
Desta forma, percebe-se que, as diretrizes propostas para o estabelecimento de padrões pela ISO, ao menos formalmente, estão aderentes aos mecanismos do Direito Administrativo Global, como a transparência, a participação dos interessados, a accountability, tomada de decisão democrática e a possibilidade de revisão das decisões tomadas.
Kingsbury e Krisch (2012) explicam que tais mecanismos estão emergindo, no âmbito de entidades internacionais, para melhorar a accountability no processo de tomada de decisões de regulação global. Explicita também que tanto no ambiente interno como internacional são similares, com a busca pela transparência, participação e revisão como elementos centrais de todos os mecanismos regulatórios.
Mendes (2011) entende que os mecanismos e procedimentos de participação assegurados por organismos internacionais têm sido interpretados por muitos atores como um meio de aumentar a legitimidade democrática, responsabilidade, transparência e visibilidade na tomada de decisão por organismos internacionais, compensando, assim, a falta de estruturas democráticas adequadas a nível global. Sem dúvida, vários mecanismos de participação estão sendo colocados em prática por várias organizações internacionais, como a ISO.
Apesar de não existir um controle direto de entes governamentais, regulando as suas ações por meio de Leis domésticas, as diretrizes estabelecidas pela própria ISO para a criação de padrões são relevantes, bem diferente de decisões tomadas “às escuras”, em que os interessados não tomam conhecimento prévio e nem tem a oportunidade de expressar suas opiniões acerca das regras a serem estabelecidas.
Cabe ponderar que tais mecanismos, no entanto, não afastam a possibilidade de entidades mais poderosas, como os grandes empresários e países mais desenvolvidos, ainda que não participem diretamente como membros, terem mais influência e direcionar as regras de padronização da ISO, para atendimento de seus interesses particulares, como restringir a competição ou a entrada de países menos desenvolvidos em determinado ramo de negócio.
Por sua vez, na maioria dos padrões, é proposto um período de implementação nas entidades interessadas em aderir aos padrões ISO, com vistas a possibilitar a entidade interessada em obter a certificação ISO se adaptar as suas exigências. Após a adaptação e adequação ao padrão estabelecido, um auditor certificador independente procederá a verificação se os procedimentos e técnicas utilizadas estão condizentes com a norma.
Se tudo estiver de acordo com os parâmetros estabelecidos pela ISO, o certificado é emitido para a entidade requerente.
Destarte, percebe-se que, como toda proposta de padronização, a ISO não tem por objetivo a harmonização da regulamentação vigente, nacional e internacional, mas sim suplantá-las, através da imposição de uma regulamentação própria, muitas vezes estranha da nacional. Não há, portanto, espaço para flexibilização e adequação do padrão ISO as peculiaridades locais.
Cabe ponderar, entretanto, que padrão ISO é facultativo, não obrigatório, mas, mesmo assim, acaba por influir em diversos ramos.
No setor privado, tais certificações são relevantes e influem significativamente para a reputação da entidade que está em conformidade com os ditames da ISO, inclusive a nível internacional.
Nessa seara, ao aderir aos parâmetros da ISO, a questão reputacional é muito relevante, pois quem adere ao padrão ISO, é mais bem visto diante dos stakeholders, nacionais e internacionais, pois possui um indicativo que age de acordo com as regras internacionais estabelecidas e possui, a priori, qualidade na sua gestão, produtos e serviços.
Deve-se pontuar, também, que, de acordo com o conceito de Direito Administrativo Global, exposto por Kingsbury e Krisch (2012), há questões que perpassam pela constatação de que várias questões administrativas e regulatórias veem ocorrendo em nível global e não local. Como exemplo, diversas normatizações e decisões de âmbito internacional, como as decisões do conselho de segurança da ONU ou normas emanadas do Banco Mundial.
Heilmann (2011), por sua vez, corrobora com tal entendimento ao afirmar que diante de uma intensificação do poderio de instituições internacionais (como OMS, Banco Mundial, FMI, etc.), a estrutura estatal acabou sofrendo uma crise, sendo perceptível, uma desestruturação do estado social, interno, dando margem a uma estrutura internacional com vários players interagindo em prol de uma estrutura globalizada, com forte tendência notadamente ocidental.
Assim, não é possível ignorar que o mundo está se tornando, cada vez mais, internacionalmente regulado, não apenas por meio de tratados e regras internacionais formalmente emanadas dos estados, mas, muitas vezes, por regulamentações privadas de âmbito internacional.
Entretanto, no momento em que a Administração Pública requer, como conditio sine qua non, para o seu fornecedor certificado ISO em uma licitação, pode existir consequências no certame que merecem ser verificadas e analisadas.
Destaca-se que o certame é a regra nas contratações no âmbito da Administração Pública. De acordo com a Constituição Federal, artigo 37, inciso XXI, a Administração Pública Direta e Indireta deve licitar se pretender contratar com terceiros. O mencionado dispositivo preceitua o seguinte:
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Na mesma esteira, o art. 3º da Lei de Licitações, nº 8.666/93, dispõe que a “licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração”, dentre outros princípios.
Assim sendo, a regra é que o maior número de interessados participem da licitação, apresentando suas propostas para fornecer um produto ou prestar um determinado serviço.
De igual forma, as exigências, segundo o comando constitucional, relativas à qualificação técnica e econômica, somente são permitidas quando indispensáveis para a garantia da execução contratual.
Assim, qualquer empecilho ou dificuldade desarrazoada para a participação no certame de possíveis interessados, pode ser entendido como uma restrição à competitividade e, por consequência, ofensa ao princípio da isonomia e, também, ao art. 3º, inciso I, da Lei de Licitações, que veda a inclusão, nos atos convocatórios de certames licitatórios, de cláusulas impertinentes ou irrelevantes.
Isso não quer dizer que, quando for necessário estabelecer requisitos mínimos de participação no certame, com vistas à garantia a perfeita execução do contrato, a Administração Pública não possa fazê-lo. A esse respeito, Meirelles (1998, p. 239) argumenta:
Todavia não configura atentado ao princípio da igualdade aos licitantes o estabelecimento de requisitos mínimos de participação, no edital ou convite, porque a Administração pode e deve fixá-los, sempre que necessário à garantia da execução do contrato, à segurança e perfeição da obra ou serviço, à regularidade do fornecimento ou ao atendimento de qualquer outro interesse público.
Mais ainda: uma exigência descabida, que não seja indispensável para a execução contratual, pode ser entendida, inclusive, inconstitucional.
A corroborar com tal entendimento, Di Pietro (2014) pontua que exigências “que não são indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações, contribuem para tornar o procedimento da licitação ainda mais formalista e burocrático, desvirtuando os objetivos da licitação e infringindo o inciso XXI do artigo 37 da Constituição”.
Por conta disso, a Lei de Licitações discrimina quais os documentos são necessários para que eventual interessado possa se habilitar, no quesito qualificação técnica.
O art. 30 da Lei nº 8.666/93 elenca a documentação necessária para que a empresa comprove a sua qualificação técnica:
Art. 30. A documentação relativa à qualificação técnica limitar-se-á a:
I - registro ou inscrição na entidade profissional competente;
II - comprovação de aptidão para desempenho de atividade pertinente e compatível em características, quantidades e prazos com o objeto da licitação, e indicação das instalações e do aparelhamento e do pessoal técnico adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem como da qualificação de cada um dos membros da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos;
III - comprovação, fornecida pelo órgão licitante, de que recebeu os documentos, e, quando exigido, de que tomou conhecimento de todas as informações e das condições locais para o cumprimento das obrigações objeto da licitação;
IV - prova de atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso.
§ 1º A comprovação de aptidão referida no inciso II do "caput" deste artigo, no caso das licitações pertinentes a obras e serviços, será feita por atestados fornecidos por pessoas jurídicas de direito público ou privado, devidamente registrados nas entidades profissionais competentes, limitadas as exigências a:
I - capacitação técnico-profissional: comprovação do licitante de possuir em seu quadro permanente, na data prevista para entrega da proposta, profissional de nível superior ou outro devidamente reconhecido pela entidade competente, detentor de atestado de responsabilidade técnica por execução de obra ou serviço de características semelhantes, limitadas estas exclusivamente às parcelas de maior relevância e valor significativo do objeto da licitação, vedadas as exigências de quantidades mínimas ou prazos máximos;
§ 2º As parcelas de maior relevância técnica e de valor significativo, mencionadas no parágrafo anterior, serão definidas no instrumento convocatório. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)
§ 3º Será sempre admitida a comprovação de aptidão através de certidões ou atestados de obras ou serviços similares de complexidade tecnológica e operacional equivalente ou superior.
§ 4º Nas licitações para fornecimento de bens, a comprovação de aptidão, quando for o caso, será feita através de atestados fornecidos por pessoa jurídica de direito público ou privado.
§ 5º É vedada a exigência de comprovação de atividade ou de aptidão com limitações de tempo ou de época ou ainda em locais específicos, ou quaisquer outras não previstas nesta Lei, que inibam a participação na licitação.
§ 6º As exigências mínimas relativas a instalações de canteiros, máquinas, equipamentos e pessoal técnico especializado, considerados essenciais para o cumprimento do objeto da licitação, serão atendidas mediante a apresentação de relação explícita e da declaração formal da sua disponibilidade, sob as penas cabíveis, vedada as exigências de propriedade e de localização prévia.
Percebe-se que a Lei elenca exaustivamente qual a documentação poderá ser demandada do fornecedor interessado em participar da licitação, numerus clausus, não deixando margem a outras exigências, com vistas a evitar, como dito alhures, a restrição a competição e a criação de exigências, por vezes, dispensáveis
Assim, como requisito para a habilitação técnica, percebe-se que não há espaço para a exigência de que o fornecedor tenha, ou o seu produto esteja, certificado pela ISO ou por qualquer outra entidade de padronização.
Pode-se até cogitar atribuir uma pontuação extra no julgamento das propostas, que é uma fase posterior, a um produto ou a um serviço que possua o selo de qualidade ISO, mas não se deve impedir que outros fornecedores, com produtos e serviços que podem ter a mesma qualidade e utilidade, apesar da inexistência de prévia certificação de qualidade, participarem do certame.
Até porque determinado produto ou serviço pode ter qualidade sem a certificação ISO e ter um custo menor para a sua disponibilização, o que vai ao encontro do princípio da vantajosidade e da economicidade para a Administração Pública.
Em todo caso, causa certa estranheza a exigência de um padrão internacional, por mais bem conceituado que seja e que siga mecanismos de transparência e controle, pela Administração Pública, eis que tal padrão, como visto anteriormente, não se subordina, ao menos diretamente, ao crivo da legalidade do ordenamento jurídico doméstico.
Justen Filho (2014, p. 625) explica:
Tem-se cogitado da exigência da certificação ISO (em suas diversas variantes) como requisito de habilitação. O tema envolve grande risco de vício. A certificação ISO retrata uma certa concepção de excelência no cumprimento de rotinas e técnicas. Isso não significa que tal concepção seja necessária ou adequada à execução de um certo contrato administrativo. Ou seja, muitos dos requisitos indispensáveis à aludida certificação podem ser desnecessários à execução satisfatória do objeto contratual. Por outro lado, é perfeitamente imaginável que a natureza de um contrato específico comporte certas peculiaridades de que a certificação não cogita. Em suma, há um enorme risco de que a exigência da certificação ISO represente uma indevida restrição ao direito de participar da licitação.
E complementa o referido doutrinador (JUSTEN FILHO, 2014, p. 625):
O essencial não é a certificação formal, mas o preenchimento dos requisitos necessários à satisfação dos interesses colocados sob a tutela do Estado. Se o sujeito preenche os requisitos, mas não dispõe da certificação, não pode ser impedido de participar do certame.
Dentro desse espeque, após a exposição da legislação que trata do tema, é relevante observar como andas a jurisprudência pátria a esse respeito.
O Tribunal de Contas da União – TCU, no Acórdão n.º 1085/2011-Plenário, sedimentou entendimento de que a exigência em licitações, na fase habilitatória, de certificação ISO é ilegal, não encontrando amparo na legislação, in casu, no já mencionado art. 30 da Lei nº 8.666/93:
As certificações nacionais correspondentes à família 9000 da ISO se referem, em linhas gerais, a critérios para implantação de sistemas de garantia da qualidade. Para obtê-los, a empresa deveria demonstrar a adequação de seus procedimentos de fabricação aos padrões estabelecidos na norma, o que garantiria, ao menos em tese, que os produtos oriundos dessa empresa tenham sempre as mesmas características. Todavia, isso não garante que eles tenham qualidade superior aos de uma empresa que não seja certificada. Além do que, obter a certificação ISO é faculdade das empresas – não há lei que a indique como condição para exercício de qualquer atividade. Restritiva, portanto, a exigência desse predicado como condição para qualificação em licitações, pois afastar os participantes não certificados reduz a possibilidade de alcance da melhor proposta para a Administração, sem que haja justificativa razoável para tanto.
A jurisprudência do TCU nesse sentido é farta como nos Acórdãos nº 512/2009, nº 2.521/2008, nº 173/2006 e nº 2.138/2005, todos Plenário.
Na mesma senda, o TCU manifestou-se no Acórdão nº 1526/2002 – Plenário, de Relatoria do Ministro Ubiratan Aguiar:
Os requisitos técnicos devem ser especificados de acordo com as normas da CNEN, não dos Certificados da série ISO 9000. Há que ser comprovada a capacidade de produzir bens e serviços que atendam às normas de segurança exigidas para o tipo de atividade desenvolvida, as quais devem ser de inteiro conhecimento da própria Eletronuclear. Há que se buscar a qualidade real do produto, não certificações que podem auxiliar a garantir essa qualidade, mas não garantem que outros que não a possuem não tenham a capacidade para atender ao interesse público.
Entretanto, aquele órgão de controle tem admitido tal exigência numa fase posterior, qual seja, na classificatória das propostas ofertadas, momento em que se pode comprovar a qualidade dos produtos e serviços sem restrição à competitividade.
É relevante ressaltar que a habilitação é uma fase inicial, voltada para verificar se o licitante é apto para participar, ou não, da disputa. Já na fase classificatória, o licitante já está habilitado e apresentou sua proposta, sendo eventual exigência de certificação direcionada para verificar as características e o preço do produto ou serviço ofertado, não constituindo a exigência, nesta fase, desta forma, um óbice à competição.
Percebe-se que, apesar de no nascedouro da disputa ser incabível a exigência do padrão ISO, por restringir a participação de interessados, nada obsta que, na classificação, seja demandado a certificação, com o intuito de se aferir a qualidade do produto ou serviço ofertado na licitação.
À guisa de exemplo, no Acórdão nº 3380/2013 – Plenário, de relatoria do então Ministro Valmir Campelo, foi decidido que a exigência da certificação ISO 9001 do fabricante do equipamento licitado, na fase de habilitação dos competidores, não encontra guarida legal.
Por conta disso, o TCU decidiu por notificar a entidade envolvida da impropriedade verificada no instrumento convocatório, alertando que a reincidência dos envolvidos em casos da espécie poderá ensejar a aplicação de multa.
Não obstante a constatação da irregularidade pelo órgão de controle, foi decidido que não cabia a aplicação de multa aos envolvidos neste caso, pois não ficou caracterizada a culpabilidade das partes, nem tampouco prejuízo ao erário, razão pela qual a simples notificação ao ente público seria suficiente para evitar novos equívocos da espécie.
Tal entendimento nos parece razoável e adequado ao caso apresentado, pois, apesar de a exigência editalícia estar em desacordo com a Lei e com a jurisprudência do próprio TCU, a aplicação de uma penalidade seria desproporcional, mormente por não ter sido comprovado prejuízo ao erário.
Ademais, parece que o gestor da entidade pretendeu incluir a exigência de certificação ISO para garantir a qualidade do produto ofertado na licitação, o que vai ao encontro da eficiência e da busca pela proposta mais vantajosa.
Isso demonstra que os padrões emitidos pelo ISO, uma entidade estrangeira e não governamental, ao arrepio da legislação pátria, acabam por influenciar, não apenas o setor privado, mas também a própria Administração Pública interna.
Em outro caso, no Acórdão nº 2995/2013 – Plenário, de relatoria, igualmente, do então Ministro Valmir Campelo, tratou-se do certificado ISO 14001, que versa sobre o sistema de gestão ambiental.
Num pregão, foi exigido a apresentação de certificação ISO, ou similar, para comprovar a origem e qualidade da madeira utilizada. Isso de maneira exclusiva, sem dar margem a outros meios de prova que o produto atende aos requisitos do edital.
A decisão foi fundamentada com base na Instrução Normativa (IN) nº 1 do Ministério do Planejamento - MPOG, que trata sobre os critérios de sustentabilidade ambiental na aquisição de bens, bem como na legislação ambiental que trata do tema, apontando que as exigências ambientais não podem frustrar a competitividade da licitação e de que, além de certificados, é admitida qualquer outra prova que ateste que o produto atende aos requisitos de qualidade do instrumento convocatório.
Entretanto, o ministro entendeu que não estava comprovada restrição à competitividade, apesar da exigência de habilitação ser apenas por meio de certificado ISO, ou similar, em desacordo, portanto, com a mencionada instrução:
25. Perante a vasta legislação ambiental vigente, em especial a que disciplina o correto manejo florestal, entendo que as empresas moveleiras, em sua maioria, possuem condições de atender a tal exigência, uma vez que a procedência legal da madeira é situação sine qua non para produzirem, sob pena de serem punidas nos termos da lei.
27. Soma-se a isso, o fato de a Administração não poder ignorar a nova redação dada pela Lei nº 12.349/2010, ao art. 3º da Lei de Licitações, que coloca a sustentabilidade como parte do problema a ser considerado nas contratações públicas.
28. Sobre essa obrigação, julgo que ao exigir “atestado de certificação ambiental quanto à madeira utilizada”, a UFCG, na condição de consumidor final, cumpre seu papel na busca do uso sustentável das florestas brasileiras; ao mesmo tempo em que contribui, diretamente, com a Política Nacional do Meio Ambiente, no que concerne “à compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico” (art. 4º, inciso I, da Lei 6.938, de agosto de 1981).
29. A propósito, considero que, nesse aspecto, a administração pública pode contribuir fortemente para a preservação do meio ambiente. Com influência expressiva na economia nacional, as compras governamentais mostram-se importantes indutores da política ambiental brasileira.
30. Assim, avalio que, considerando o rigor da legislação ambiental vigente, para o correto manejo florestal no Brasil, e ante as informações trazidas aos autos, a exigência ora questionada não foi fator decisivo para a restrição a competitividade do certame.
Neste ponto, percebe-se que há uma afirmação despida de qualquer fundamento, sendo uma ilação de que as empresas devem ter o certificado, por conta do rigor da legislação. Ademais, o entendimento exarado é contrário a própria instrução mencionada na decisão, que diz que as exigências de natureza ambiental não podem frustrar a competitividade do certame.
Assim sendo, os argumentos lançados na decisão são frágeis, com silogismo comprometido, em razão de uma falta de fatos robustos para ampará-lo.
Apesar disso, ficou demonstrado no Acórdão que a certificação não é um documento exclusivo e obrigatório, podendo ser comprovada a qualidade, de acordo com a IN nº 1 do MPOG, por qualquer meio idôneo.
Ficou demonstrado, portanto, ante a jurisprudência do órgão de controle citado, que os padrões ISO acabam por influenciar as contratações públicas, com a exigência do mesmo em certames. Ainda que não possa a sua exigência na habilitação técnica, é possível a sua imposição no julgamento das propostas.
6 conclusão
A intensificação cada vez maior da globalização, com o aparecimento e fortalecimento de entidades internacionais autônomas ao poder estatal, acaba transformando também as relações no âmbito doméstico, para melhor ou pior, tanto no ramo privado como no público.
No caso da ISO, observou-se tal entidade não governamental internacional possui uma influência inegável em diversos setores, inclusive interferindo nas contratações públicas.
A sua composição envolve diversos membros, experts na área de padronização, espalhados por diversos países, que tem por desiderato a criação de padrões internacionais. Durante a criação de um padrão é possível a participação de diversos interessados, como experts, ONGs, entes governamentais e da indústria correlata. Assim, suas diretrizes e normas de funcionamento, para a criação de padrões, permitem a participação de interessados, tomada de decisão democrática e possibilidade de revisão das normas.
Destarte, ao menos formalmente, a ISO usa mecanismos relevantes do DAG como a transparência, participação de interessados, gestão democrática, possibilidade de revisão e accountability, o que confere maior legitimidade para as regras por ela emitidas.
De igual forma, como reúne diversos organismos que cuidam de padronização, como a ABNT, que é um membro fundador e, ao mesmo tempo, impede que empresas e indivíduos participem como membros, transparece que é uma entidade autônoma e imparcial, ao menos formalmente.
A legislação nacional brasileira, que trata sobre licitações, não permite que, no nascedouro da disputa, o ente público exija, como requisito de habilitação técnica, os padrões ISO. No entanto, é admitido, consoante a jurisprudência atinente à matéria, que a exigência de certificação ISO possa ser considerada na fase de disputa, qual seja, no julgamento das propostas.
É perceptível, portanto, que os padrões internacionais propostos pela ISO acabam por influenciar, a despeito de não se tratar de regras nacionais regulamentadas pelo poder público, nem tampouco serem de observância obrigatória, as contratações públicas.
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Advogado. Mestre em Direito pelo UniCEUB - Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Público pela Associação Educacional Unyahna. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SAMPAIO, Alexandre Santos. A exigência de certificação ISO em licitações Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jun 2018, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2798/a-exigencia-de-certificacao-iso-em-licitacoes. Acesso em: 24 nov 2024.
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