Friedrich Wilhelm Nietzsche, conhecido filósofo alemão, em uma de suas mais famosas obras – Assim falou Zaratustra – menciona três transformações do espírito. Citarei o texto de Nietzsche para, em seguida, fazer uma aplicação do mesmo aos concursos públicos.
“Três transformações do espírito vos menciono: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança. Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito forte e sólido, respeitável. A força deste espírito está bradando por coisas pesadas, e das mais pesadas.
Há o quer que seja pesado? — pergunta o espírito sólido. E ajoelha-se como camelo e quer que o carreguem bem. Que há mais pesado, heróis — pergunta o espírito sólido — a fim de eu o deitar sobre mim, para que a minha forca se recreie? (...)
O espírito sólido sobrecarrega-se de todas estas coisas pesadíssimas; e à semelhança do camelo que corre carregado pelo deserto, assim ele corre pelo seu deserto.
No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto.
Procura então o seu último senhor, quer ser seu inimigo e de seus dias; quer lutar pela vitória com o grande dragão. (...) “Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão diz: “Eu quero”. (...)
Para criar a liberdade e um santo NÃO, mesmo perante o dever; para isso, meus irmãos, é preciso o leão.
Conquistar o direito de criar novos valores é a mais terrível apropriação aos olhos de um espírito sólido e respeitoso. (...) Como o mais santo, amou em seu tempo o “tu deves” e agora tem que ver a ilusão e arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a liberdade à custa do seu amor. É preciso um leão para esse feito.
Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se mude em criança? A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação. (...)
Três transformações do espírito vos mencionei: como o espírito se transformava em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança”. Assim falava Zaratustra.”
O concurseiro também precisa passar por três transformações. Mas antes vamos resumir a história. O espírito é um camelo, carregando muitas coisas. Em seguida, vira um leão, e tem que enfrentar o dragão. Após enfrentar o dragão, então, o espírito vira criança. Claro que Nietzsche não estava pensando nos concursos públicos, mas acompanhe a ideia. Uns entendem que ele falava da jornada da vida: o jovem é o camelo, o homem que vai amadurecendo é o leão e o homem que aprender a vencer as pressões da sociedade é a criança, o novo. Outros podem ver a proposta do “Super-homem” ou, melhor traduzido, do “Além-homem” de Nietzsche.
O primeiro momento é quando a pessoa se enche de livros, apostilas, códigos. É um camelo. O camelo se ajoelha e diz: “Ponha uma carga sobre mim”. A ideia é que nessa fase, quanto maior a “carga” mais fácil será para a pessoa chegar ao estágio do leão. Quanto maior a quantidade de obediência às regras, de instrução, de captura das informações para forjar a competência para a vida, melhor. Quanto mais pesada a carga, mais poderoso será o leão que virá após.
Releia este trecho: “O espírito sólido sobrecarrega-se de todas estas coisas pesadíssimas; e à semelhança do camelo que corre carregado pelo deserto, assim ele corre pelo seu deserto”. Sim, há que haver uma disposição para “sobrecarregar-se de todas estas coisas pesadíssimas”. E, com toda essa carga, que inclui aulas, cursos, feriados, transtornos, passar pelo “seu deserto” o concursando deve ter muita disposição.
Já discorri sobre o deserto quando falei da primeira Páscoa, quando os judeus enfrentaram o Faraó, o Mar Vermelho, o deserto e, após lutas de conquista, finalmente alcançaram e tomaram para si a Terra Prometida. A ideia de deserto passa exatamente a noção de um período de dificuldades onde a pessoa que deseja algo melhor se submete a um esforço em prol de um objetivo. O deserto representa um ritual, um longo ritual, de iniciação. Esse ritual não só molda e transforma como faz a pessoa ser e se sentir merecedora dos benefícios que passará a ter após sua chegada.
No deserto, e por conta do esforço, se opera a segunda transformação: aparece o Leão. E a função do leão é matar o dragão. A meu ver, o leão é o candidato preparado. Apenas o deserto, apenas a carga pesadíssima, prepara para esta fase. Como diz Nietzsche, o Leão “quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto”. É o que o concurso faz: nos concede uma liberdade maior, afora uma série larga de benefícios, e nos permite ser mais possuidores de nosso tempo.
Para os fins propostos, o Leão tem de enfrentar o dragão. E nessa nossa metáfora, as provas são “o dragão”. E este “dragão” é interessante, pois as provas, as reprovações, as anulações, as fraudes, as notícias ruins, os adiamentos, tudo isso faz com que você tenha que se convencer que não está ali à força (“Tu deves”), mas por que é sua escolha (“Eu quero”). Acho que ninguém aguenta a pressão se não souber bem por que está ali, se não tiver um bom motivo. Vivo dizendo que esse motivo pode ser até mesmo ter tempo, dinheiro e estabilidade para se dedicar a outros projetos. E que se a pessoa cumpre seus deveres isto está de bom tamanho. Mas, em qualquer caso, é preciso saber que estamos ali por que queremos.
Na ideia original, o “Tu deves” que o dragão pronuncia é o efeito da força civilizadora, são as pressões sociais, desde as mais remotas e/ou profundas até as mais pueris. É isto que torna o homem escravo de uma série de coisas, de uma série de “deveres”. Este homem é o que precisa matar o dragão e dizer o que ele quer. Pode ser o jovem que amadurece, pode ser o homem que evolui e se transforma em algo além do homem comum. E pode ser o concurseiro que não está mais no sistema dos concursos, movido por obrigações, pressão, ou medo, mas porque optou por uma carreira que oferece várias vantagens e oportunidades. Um concurseiro maduro é aquele que não vai nem para o estudo nem para a prova à força, mas por vontade própria e com entusiasmo. Ou, como citamos ao estudar a Arte da Guerra, de Sun Tzu, “não é arrastado para o combate”.
O resultado da acumulação de conhecimentos com a coragem de lutar, ou seja, o fruto do esforço do camelo e da coragem do leão é fazer com que o dragão seja vencido. Então, com a posse, surge a criança: o novo, o novo começo, uma nova fase cheia de prêmios, novos desafios e novas possibilidades. Até, como cita Nietzsche, um certo “esquecimento”, pois os sofrimentos anteriores, embora não apagados da memória (e isso é bom), são alvo de um pincel colorido e doce que passa por cima de nossa história tornando-a mais agradável, mais colorida, com um tom de “valeu a pena!”.
A criança, então, pode contribuir para um novo mundo. Nietzsche propunha um “Além-homem”, uma tradução tida como melhor do que a mais corriqueira, a de “Super-homem”. Não é preciso tanto no serviço público. Direi como o autor: “Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão?”
Na metáfora de hoje, lembro a você que o leão não tem poder estatal. Apenas a criança o tem. Então, a criança poderá fazer o que é impossível ao leão. Quantas vezes fomos maltratados, desprezados, desrespeitados no serviço público? Quantas vezes tivemos nojo do que fizeram e passou na TV, do que lemos nos jornais e revistas? Pois bem, quando nos tornamos servidores temos o poder de mudar essa história. E, então, vale a questão: o que poderá a criança que não haja podido fazer o leão?
Contudo, é com a disposição do camelo, e com a coragem do leão, com a soma e o uso das habilidades hauridas no deserto que se fará, com o poder da criança, um novo tempo no serviço público brasileiro. Faça a parte do camelo, vire leão, vença o dragão e... participe da revolução (www.revolucao.info).
Guardo, com a inocência de uma criança, essa esperança. Me perdoe, sou poeta, sonhador e brasileiro e não desisto nunca. Eu realmente espero que você passe pelas suas transformações para contribuir com a grande transformação que ainda faremos, juntos, na nossa história como país.
A você, camelo, leão, criança, meu mais fraternal abraço.
William Douglas
Juiz Federal, Titular da 4ª Vara Federal de Niterói - Rio de Janeiro; Professor Universitário; Mestre em Direito, pela Universidade Gama Filho - UGF; Pós-graduado em Políticas Públicas e Governo - EPPG/UFRJ; Bacharel em Direito, pela Universidade Federal Fluminense - UFF; Conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ; Professor Honoris Causa da ESA - Escola Superior de Advocacia - OAB/RJ; Professor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas - EPGE/FGV; Membro das Bancas Examinadoras de Direito Penal dos V, VI, VII e VIII Concursos Públicos para Delegado de Polícia/RJ, sendo Presidente em algumas delas; Conferencista em simpósios e seminários; Autor de vários livros. Site: www.williamdouglas.com.br<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DOUGLAS, William. Das transformações do concurseiro: NIETZSCHE e os Concursos Públicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jun 2009, 07:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/297/das-transformacoes-do-concurseiro-nietzsche-e-os-concursos-publicos. Acesso em: 23 nov 2024.
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