Terminou o Carnaval, a maior festa popular do Brasil. Apesar do que muitos pensam, a origem do evento não é nacional, contudo, graças ao amálgama étnico e cultural característico desta nação, foi aqui que a comemoração se potencializou. Em um país de dimensões continentais, o festejo assume peculiaridades em cada região, mas é no eixo Rio e São Paulo que a festa adquire contornos épicos, seja do ponto de vista econômico, social e também pedagógico. É no interior de uma escola - mas não a tradicional, e sim em uma escola de samba - que o Brasil é capaz de ver, ouvir e interpretar os saberes populares, conhecer ídolos adormecidos e debater temas sociais como o preconceito racial.
Axé, frevo, maracatu, mas é de samba que eu vou. Não há como se dissociar o carnaval do samba. Esse, sim, é genuinamente brasileiro; o samba é nosso e surgiu da junção do povo africano à nossa população. Uma escola de samba tem um trabalho social, inclusivo e disruptivo junto às suas comunidades. Milhares de pessoas atuam no processo de criação e execução, mas são nos seus 75 minutos de desfile que se desafiam a se movimentar, produzir conhecimento e transformar pessoas.
Em 1988, ao comemorar os 100 anos da abolição da escravidão, a campeã daquele ano, Unidos de Vila Izabel, levou à Marquês de Sapucaí o enredo “Kizomba, Festa da Raça”. A agremiação fez um desfile politizado que teve o intuito de transformar os 100 anos da celebração da Lei Áurea em uma manifestação de luta contra o racismo. Em seu samba-enredo, a agremiação entoou em seus versos: “Esta Kizomba é nossa Constituição”.
Neste ano, a Viradouro sagrou-se a campeã do carnaval. O enredo “Arroboboi, Dangbé” (salve o espírito infinito da serpente) retratou o século XVII, em Benin, país africano. A narrativa contou a história das guerreiras Mino, do reino de Daomé, e fez referência à força das mulheres negras por meio do culto africano à cobra sagrada vodum. Um resgate à ancestralidade africana que edificou parte da cultura e da sociedade brasileira. A Sapucaí cantou: “Lealdade em brasa rubra, fogo em forma de mulher, um levante a liberdade, divindade em Daomé. Já sangrou um oceano pro seu rito incorporar, num Brasil mais africano, outra areia, mesmo mar”.
No mesmo tom, a Portela rompeu a avenida parafraseando o livro “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves. A escola abordou a história da genitora do abolicionista Luiz Gama, que viaja ao Brasil em busca do seu filho. Na adaptação, a agremiação refletiu sobre o sentido da existência dos negros no Brasil, da mulher negra, suas ancestralidades e identidades. É um diálogo do Brasil diverso com o perverso, um colóquio que retrata as mães negras que são impedidas da criação dos seus filhos; seja por questões financeiras; jornadas excessivas de trabalho; ou pela violência urbana. A azul e branco bradou: “Tal a história de Mahin, liberdade se rebela, nasci quilombo e cresci favela”.
Já a escola de samba Paraíso do Tuiuti homenageou João Cândido, um marinheiro descendente de escravizados que liderou a chamada Revolta da Chibata, um movimento em que militares da Marinha - todos praças, e negros em sua maioria - exigiam o fim do uso da chibata como forma de castigo. Apesar de reprimendas semelhantes terem sido proibidas pelo tenro regime republicano, urge ressaltar que a reinvindicação ocorreu em 1910, ou seja, 22 anos após o fim da escravidão. Oficiais e praças morreram durante as ações, João Candido consegue mediar o fim do levante com o compromisso do estado brasileiro de banir o castigo físico e conceder anistia aos revoltosos. Entretanto, o compromisso foi quebrado pelo governo, que permitiu a expulsão e punição dos marinheiros revoltos. João foi expulso da corporação, preso e, posteriormente, diagnosticado como louco, vindo a óbito em 1969.
O Carnaval é universal, mas o samba é brasileiro e é negro. Fazendo referência à introdução do livro de Ana Maria Gonçalves, o samba é serendipidade; um ritmo que vai além, que transcende; que, através do movimento humano, suscita dinheiro, diversão, mas traz em seu bojo cognição, empoderamento e reflexão. Das histórias que narrei, foi pela de João Cândido que me apaixonei. A instituição que depreciou o branco de sua farda com o sangue dos marinheiros repreendidos é a mesma que apareceu recentemente flertando com o autoritarismo. João Cândido, um verdadeiro Almirante e mestre dos mares. “Salve o navegante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais”.
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