No último dia 20 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a nova Lei da Liberdade Econômica, que flexibilizou uma série de outras leis, com o objetivo de reduzir a burocracia para empresários, estimular o empreendedorismo e gerar mais empregos. Em outras palavras, a nova lei seria uma espécie de mola propulsora da economia do novo Governo Federal. Entretanto, a nova Lei 13.874/2019, oriunda da Medida Provisória (MP) 881, está criando um debate no setor de saúde, no sentido de se considerar que os médicos não estariam mais subordinados às normais específicas sobre publicidade na área médica, em especial a Resolução CFM 1974/11.
A discussão jurídica que ora se firma estaria a respeito do alcance do disposto no artigo 4º, inciso VIII, que apresenta em seu caput que a administração pública tem o dever de evitar o abuso do poder regulatório, no sentido de “restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei federal”.
Nesse sentido, a se considerar a Medicina como fazendo parte de um setor econômico, o terciário, a profissão médico estaria sob a égide dessa da nova lei. Aqui emerge a necessidade de se aplicar a hermenêutica jurídica: uma lei geral não se sobrepõe a uma lei especial. Mas as normas sobre publicidades estabelecidas da Resolução do CFM são definidas por lei especial? Na verdade, não. A regulamentação sobre divulgação de assuntos médicos se faz por Resolução, um ato normativo administrativo.
É competência do Conselho Federal de Medicina, segundo a Lei 3.268 de 30 de setembro de 1957, e dos CRMs como "órgãos supervisores da ética profissional em toda a República e, ao mesmo tempo, julgadores e disciplinadores da classe médica". Por ter a natureza jurídica de uma autarquia pública, o CFM apresenta poder de regulamentar, sempre com respaldo na lei. Assim sendo, uma resolução emanada não poderia contrariar o que a lei determina. Mas, há também o entendimento, inclusive pela jurisprudência, de que o CFM estaria exercendo sua função ao regulamentar a propaganda realizada pelos médicos. A nova lei, portanto, permite aos médicos realizar propaganda sem observância da regulamentação emanada pelo CFM? Se considerarmos que a regulamentação do CFM estaria impedindo o desenvolvimento do setor, poderia sim se alegar que a nova lei é a carta de alforria tão desejada pela classe médica.
Mas, se considerado que as normas do CFM não são abusivas a ponto de inibir o empreendedorismo, a Resolução 1974/2011 se manterá como norteadora da propaganda médica, em toda sua extensão.
Não se ignora que o Conselho apresenta duras restrições à publicidade e divulgação dos assuntos médicos. Contudo, a questão deve ser analisada sob dois grandes prismas: o primeiro, importantíssimo, é a ética. Outro ponto é o distanciamento entre a publicidade enganosa e abusiva do marketing positivo e informativo.
Sob o enfoque da ética, é indiscutível que o sigilo entre o médico e o paciente deva ser preservado a qualquer preço – o sigilo permite ao médico partilhar um pouco da intimidade do paciente, muitas vezes desconhecida de pessoas próximas. Nesse sentido, é louvável toda e qualquer iniciativa do Conselho. Mas, se considerarmos que o sigilo é do paciente e que ele pode prescindir desse direito, o que justificaria a proibição de divulgar fotos de antes e depois autorizadas pelo paciente ou ainda de tornar pública uma foto do paciente com o profissional?
A propaganda enganosa é punível na esfera do Judiciário, inclusive servindo como fundamento de condenações de qualquer profissional ou instituição de saúde que cometa esse ilícito. A promessa de resultado (e o não alcance) macula qualquer profissional.
Ademais, o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor tornam imprescindível a informação clara, objetiva e verdadeira. O Código de Ética Médica também dispõe que comete infração ética aquele que não informar ao paciente sobre o diagnóstico, terapêutica e prognóstico. Dispositivos para regulamentar e punir aqueles que provocarem danos ao paciente não faltam. Pergunta-se, a partir dessa constatação, se as regras do CFM precisariam ser tão rígidas.
Vale ressaltar que o Conselho tem gastado muita energia e dinheiro com a repressão ao que considera publicidade enganosa, sensacionalismo e concorrência desleal. Os profissionais são chamados a responderem sindicâncias, em especial por denúncias anônimas que não derivam da sociedade, mas de colegas concorrentes. Ou seja, a avalanche de processos que chega aos Conselhos não é por motivos éticos e morais, mas sim comerciais, salvo alguns poucos casos.
Parece haver uma grande confusão de valores e objetivos. Se há médicos que anunciam cirurgias plásticas para pagamento a prazo, se colocam em seus sites valores correspondentes a cada parte do corpo (como se faz em açougue), se fazem da Medicina mero comércio, se oferecem resultados milagrosos, estes devem ser pontualmente punidos. O excesso de vedações traz insegurança ao profissional e tira direito de escolha da sociedade, o direito à livre concorrência e quiçá represente mesmo para alguns um impedimento para o crescimento.
Em suma, a nova Lei de Liberdade Econômica poderá provocar um efeito colateral no sentido de corroborar na formação de um novo paradigma em relação à publicidade e ao marketing na área médica, ainda que haja o entendimento de que a regulamentação do CFM prevaleça sobre essa lei. É inconteste que se trouxe à tona a discussão sobre a livre concorrência e atuação no mercado em contraponto a ética, moralidade e responsabilidade do profissional em relação aos seus atos na área de comunicação e o seu dever profissional de garantir a vida e a saúde de seus pacientes. Com isso, aquele que deve ser o alvo de toda atenção do médico, o paciente, ´ganha.
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