O vazamento de informações privilegiadas no campo da Administração Pública é um fenômeno real, embora extremamente reprovável na medida em que conflita com os princípios constitucionais insculpidos no caput do artigo 37. Não por outra razão que a Lei Federal nº 8.112/1990 – a qual dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais – previu em seu artigo 116, inciso VIII, que é dever do servidor público guardar sigilo sobre assunto da repartição.
Sob a mesma percepção, o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal (Decreto nº 1.171/1994) prescreve que o servidor público não deve fazer uso de informações privilegiadas obtidas no âmbito interno de seu serviço, em benefício próprio, de parentes, de amigos ou de terceiros:
II - O servidor público não poderá jamais desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas principalmente entre o honesto e o desonesto, consoante as regras contidas no art. 37, caput, e § 4°, da Constituição Federal.
III - A moralidade da Administração Pública não se limita à distinção entre o bem e o mal, devendo ser acrescida da ideia de que o fim é sempre o bem comum. O equilíbrio entre a legalidade e a finalidade, na conduta do servidor público, é que poderá consolidar a moralidade do ato administrativo.
XIV - São deveres fundamentais do servidor público:
[...]
i) resistir a todas as pressões de superiores hierárquicos, de contratantes, interessados e outros que visem obter quaisquer favores, benesses ou vantagens indevidas em decorrência de ações imorais, ilegais ou aéticas e denunciá-las;
XV - E vedado ao servidor público;
a) o uso do cargo ou função, facilidades, amizades, tempo, posição e influências, para obter qualquer favorecimento, para si ou para outrem;
[...]
f) permitir que perseguições, simpatias, antipatias, caprichos, paixões ou interesses de ordem pessoal interfiram no trato com o público, com os jurisdicionados administrativos ou com colegas hierarquicamente superiores ou inferiores;
[...]
m) fazer uso de informações privilegiadas obtidas no âmbito interno de seu serviço, em benefício próprio, de parentes, de amigos ou de terceiros;
Igualmente, o Código Penal reprova a conduta de violação de sigilo funcional e de proposta de concorrência, tudo com o intento de garantir os princípios da isonomia, da impessoalidade e da moralidade administrativas, a saber:
Violação de sigilo funcional
Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.
§ 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 2o Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Violação do sigilo de proposta de concorrência
Art. 326 - Devassar o sigilo de proposta de concorrência pública, ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo:
Pena - Detenção, de três meses a um ano, e multa.
Ainda, a Lei Federal nº 8.429/1992 – Lei de Improbidade Administrativa – condena a prática de revelar fato ou circunstância de que se tem ciência em razão das atribuições enquanto servidor público e que deva permanecer em segredo, nos termos a seguir:
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
[...]
III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e que deva permanecer em segredo;
Sob a mesma toada, a Lei Federal nº 8.666/1996 adverte quanto ao comportamento ilegal que advém dessa prática de favorecimentos mediante informações privilegiadas no campo das licitações e contratações públicas, a saber:
Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação:
Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Art. 91. Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a Administração, dando causa à instauração de licitação ou à celebração de contrato, cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Art. 93. Impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Art. 94. Devassar o sigilo de proposta apresentada em procedimento licitatório, ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo:
Pena - detenção, de 2 (dois) a 3 (três) anos, e multa.
Por fim, a Lei Federal nº 12.527/2011 – Lei de Acesso à Informação (LAI) – reconhece a ilicitude na conduta de vazamento de informações privilegiadas, consoante texto abaixo:
Art. 32. Constituem condutas ilícitas que ensejam responsabilidade do agente público ou militar:
[...]
II - utilizar indevidamente, bem como subtrair, destruir, inutilizar, desfigurar, alterar ou ocultar, total ou parcialmente, informação que se encontre sob sua guarda ou a que tenha acesso ou conhecimento em razão do exercício das atribuições de cargo, emprego ou função pública;
[...]
IV - divulgar ou permitir a divulgação ou acessar ou permitir acesso indevido à informação sigilosa ou informação pessoal;
Fixadas essas premissas, tem-se que o sistema jurídico deu especial ênfase à preocupação com o indevido vazamento de informações privilegiadas na seara da Administração Pública, rechaçando-o do ponto de vista administrativo, cível e criminal[1].
Nesse contexto, a I Jornada de Direito Administrativo promovida em 2020 pelo Conselho da Justiça Federal (CJF) se debruçou acerca de inúmeros temas hodiernos nessa área jurídica que dispõe sobre as questões concernentes à Administração Pública.
A par disso, constou a aprovação do Enunciado nº 29 com a seguinte redação:
A Administração Pública pode promover comunicações formais com potenciais interessados durante a fase de planejamento das contratações públicas para a obtenção de informações técnicas e comerciais relevantes à definição do objeto e elaboração do projeto básico ou termo de referência, sendo que este diálogo público-privado deve ser registrado no processo administrativo e não impede o particular colaborador de participar em eventual licitação pública, ou mesmo de celebrar o respectivo contrato, tampouco lhe confere a autoria do projeto básico ou termo de referência.[2]
Aqui merecem algumas considerações.
Primeiramente, é importante que se tenha em mente ser atribuição precípua da Administração Pública a definição do objeto e elaboração do projeto básico ou termo de referência[3]. Para isso é que existem servidores públicos habilitados visando a realizar tarefas complexas, os quais devem ser selecionados pela Administração Pública, seja mediante concurso público (regra), seja via cargos de provimento em comissão (exceção). Não pode a Administração Pública, mesmo que por via indireta, delegar para terceiros estranhos aos seus quadros um dever que legalmente é seu.
Soa bastante estranho que antes mesmo de uma licitação a Administração Pública, nos termos do Enunciado nº 29, possa promover comunicações formais com potenciais interessados durante a fase de planejamento das contratações públicas para a obtenção de informações técnicas e comerciais relevantes à definição do objeto e elaboração do projeto básico ou termo de referência.
Essa tarefa, como dito alhures, não seria de competência da própria Administração Pública através de seus servidores públicos? É razoável que se utilize a informação técnica e comercial de futuros licitantes? E qual seria o critério para essa escolha dos licitantes consultados? Tal consulta não poderia favorecê-los com informações privilegiadas sobre a realização da futura licitação e de seus termos? Ou mesmo incitá-los (licitantes) a incluir especificidades nos textos da definição do objeto e da elaboração do projeto básico ou termo de referência visando a favorecimentos, perseguições ou quebras de competividade?
Nessa perspectiva, o Decreto-Lei nº 4.657/1942 – Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – dispôs de modo inverso, salvo melhor juízo, em relação ao que constou na redação do Enunciado nº 29. Diz o texto:
Art. 29. Em qualquer órgão ou Poder, a edição de atos normativos por autoridade administrativa, salvo os de mera organização interna, poderá ser precedida de consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)
§ 1º A convocação conterá a minuta do ato normativo e fixará o prazo e demais condições da consulta pública, observadas as normas legais e regulamentares específicas, se houver. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) (grifou-se)
Assim, com o devido acatamento, não se mostra razoável a proposta contida no Enunciado nº 29 quanto ao procedimento de promover comunicações formais com potenciais interessados durante a fase de planejamento das contratações públicas.
Entende-se, pois, que cabe à Administração Pública conduzir com exclusividade essa etapa da fase interna da licitação e, somente em hipótese motivada e justificada de dúvida objetiva, proceder previamente à edição do ato normativo (edital) com consulta pública para manifestação de interessados, preferencialmente por meio eletrônico, a qual será considerada na decisão.
E a convocação conterá a minuta do ato normativo e fixará o prazo e demais condições da consulta pública, observadas as normas legais e regulamentares específicas, se houver.
Essa figura do “particular colaborador” na fase interna da licitação poderá, num futuro breve, gerar inúmeras situações de favorecimentos descabidos e de vazamento de informações privilegiadas, a exemplo de requisitos e condicionantes indevidamente exigidas para licitar determinado objeto com a Administração Pública.
Imagine-se, por exemplo, que a Administração Pública venha a exigir em determinada concorrência uma certificação internacional que, embora recomendável para o objeto licitado, demore cerca de 1 (um) ano para a sua obtenção. À toda evidência, a empresa que atua como “particular colaboradora” na fase interna da licitação poderá tomar ciência de modo privilegiado dessa exigência – isto se ela mesma não criar tal condicionante em seu favor – frustrando terceiros licitantes que somente terão conhecimento dessa exigência após a publicação do edital e seu respectivo objeto, projeto básico ou termo de referência.
Assim, não se justifica que a Administração Pública, a pretexto de melhor elaborar os seus atos normativos editalícios, acabe por permitir essa figura do “particular colaborador” em desconformidade com diversas normas jurídicas, com ênfase na regra do artigo 29 do Decreto-Lei nº 4.657/1942.
Se há dúvida pela Administração Pública, que então se realize uma consulta pública onde todos os interessados possam ser ouvidos e nenhum deles tenha acesso privilegiado aos termos da fase interna do processo licitatório.
Dialogar com os potenciais licitantes na fase interna é possível em decorrência dos princípios da participação, democrático e da consensualidade. Porém, além de ser uma exceção nesse específico e delicado momento – fase interna – onde qualquer informação vazada pode ser crucial para a definição do vencedor, também exige o respeito aos ditames da isonomia, da impessoalidade, da moralidade e da publicidade.
Por fim, ainda que esse diálogo público-privado proposto pelo enunciado deva ser registrado no processo administrativo para fins de demonstrar a suposta lisura de sua ocorrência, tal fato, por si só, não afasta o grave potencial lesivo resultante do vazamento de informações ou de favorecimentos indevidos no processo licitatório.
Ainda, poderão ser gerados futuros pedidos de ressarcimento em desfavor do erário na medida em que empresas destinatárias dessas comunicações formais prévias à publicação do edital e de seu respectivo objeto, projeto básico ou termo de referência, eventualmente arguam enriquecimento sem causa da Administração Pública por um trabalho técnico que os potenciais licitantes tiveram sem a devida contraprestação financeira.
Frente ao exposto, compreende-se que andou mal a redação do Enunciado nº 29 da I Jornada de Direito Administrativo, haja vista que acabou por estimular, por via inversa, o vazamento de informações e o favorecimento indevido, notadamente em um país marcado por constantes denúncias de corrupção e de pagamento de propinas envolvendo agentes públicos e privados que atuam em conluio com empresas fraudadoras de licitações e contratações públicas.
Diálogo, na acepção do princípio da consensualidade, tem limites, modo e hora para ocorrer. Decididamente, comunicar formalmente potenciais interessados durante a fase de planejamento das contratações públicas não parece ser medida que venha a garantir bons frutos e lisura em certames, por mais genuínos que possam ser os propósitos emanados do Enunciado nº 29 da I Jornada de Direito Administrativo.
[1] MENDES, Renato Geraldo. Lei de Licitações e Contratos Anotada. 6. ed. Curitiba: Zênite, 2005.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/10082020-I-Jornada-de-Direito-Administrativo-divulga-os-40-enunciados-aprovados.aspx>. Acesso em: 27 dez. 2020.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008.
Procurador do Estado de Alagoas. Advogado. Consultor Jurídico. Ex-Conselheiro do Conselho Estadual de Segurança Pública de Alagoas. Ex-Membro de Comissões e Cursos de Formação de Concursos Públicos em Alagoas. Ex-Membro do Grupo Estadual de Fomento, Formulação, Articulação e Monitoramento de Políticas Públicas em Alagoas. Ex-Técnico Judiciário do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Ex-Estagiário da Justiça Federal em Alagoas. Ex-Estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho em Alagoas. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CALHEIROS, Elder Soares da Silva. O Enunciado nº 29 da I Jornada De Direito Administrativo: solução ou criação de novos problemas nos processos licitatórios? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jan 2021, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/3165/o-enunciado-n-29-da-i-jornada-de-direito-administrativo-soluo-ou-criao-de-novos-problemas-nos-processos-licitatrios. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Sidio Rosa de Mesquita Júnior
Por: Benigno Núñez Novo
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