A Lei nº 8.429/92, atual lei de improbidade administrativa, teve vários dispositivos com eficácia suspensa, em recente decisão do Ministro do STF Gilmar Mendes, a partir do anúncio de que, em poucos dias, seria substituída por outra, em processo de aprovação no Congresso Nacional.
Chama a atenção o envolvimento de parte da sociedade, qualificando a nova lei, bem como, a decisão suspensiva de dispositivos da atual, de retrocesso, por “dificultar a punição”.
O raciocínio destacado é de equívoco evidente, pois, parte da falsa premissa de que a lei nº 8.429/92 é, sob ponto de vista técnico, perfeita e que a nova legislação por a alterar, modificaria algo que não deve ser objeto de discussão. Não é assim, a atual lei é bastante falha e sua proposta de modificação produz considerável avanço, no aspecto das exigências mínimas para a habilitação do poder punitivo no Estado Democrático.
No Brasil, simplesmente porque de maneira formal o direito positivo diz não ser determinada legislação de natureza penal, muitos passam a repetir essa informação de forma pouco refletida, com isso, habilitando o poder punitivo manifestado em legislações autoafirmadas não penais, sem os controles que lhe seriam inerentes em uma república e democrática
É bastante relevante destacar, especificamente em relação à lei de improbidade administrativa, ser indiscutível representar manifestação típica do poder punitivo estatal, em escala bastante sensível, por impor perda de cargos públicos, atingimento patrimonial, enfim, consequências diretas sobre direitos fundamentais da pessoa e, o fato de não estar catalogada como penal, não deve permitir, poder punitivo da magnitude do nela manifestado, ser exercido sem os limites mínimos estruturados ao longo do desenvolvimento civilizatório.
Nesse diapasão, é positiva a superação pela nova lei do fato de que com a atual possa alguém sofrer consequências brutais, sem ao menos exigir dos responsáveis pela acusação, a demonstração segura de ter a pessoa atuado com conhecimento e vontade (dolo) de atingir a administração pública, pois, é inaceitável o modelo ora vigente, em verdade, ele conduz a possibilidade do exercício do poder punitivo pelo Estado guiado pelo versari in re illicita, na sua feição medieval, ou seja, em um nível de responsabilidade desprovido de qualquer vínculo subjetivo do agente, modelo pródigo em produzir sistemas autoritários de poder, pela intervenção sobre as pessoas independente de suas vontades, quando do agir.
Ademais, a estrutura típica atual, a qual, com todo o respeito, há muito já deveria ter sido declarada inconstitucional, confronta com as mais elementares noções de taxatividade na descrição das condutas habilitadoras do poder punitivo, sendo que a nova lei, regra geral, objetiva ser mais clara nos conceitos e determinações, definindo melhor as condutas, as possibilidades punitivas e os níveis de aplicação da lei.
Por exemplo, o atual artigo 11 ao admitir punição de alguém que genericamente contrarie princípios da administração pública, aproxima em muito o modelo ao desenvolvido no Estado nazista, da punição para quem contrariasse o são sentimento nazista.
Tipicidade punitiva exige descrição exata de conduta, avanço importante produzido na nova lei, pois, torna precisa a descrição de quais condutas contrariam os princípios da administração pública, na proporção de justificar sua incidência na lei de improbidade administrativa.
Isso é muito importante, pois, ao longo dos anos o dispositivo do artigo 11 da lei de improbidade administrativa foi utilizado de forma banalizada, esquecendo que a improbidade administrativa estaria no nível da alta-corrupção, o que, ante a ausência de limites precisos na lei, permitiu a utilização da hipótese para perseguir desafetos, enquadrar comportamentos de pessoas tidas como indesejadas e, ao mesmo tempo, ignorar práticas, por vezes graves, de protegidos.
Da mesma forma, remeter a titularidade da ação de improbidade administrativa ao Ministério Público é algo lógico em relação direta com o sistema constitucional, o qual no artigo 129, inciso I, da CF confere ao Ministério Público a titularidade exclusiva da ação penal pública e, na medida em que a improbidade administrativa deve ser lida como prática equivalente a alta- corrupção estatal, absolutamente racional que a sua propositura também fique a cargo do órgão ministerial.
Igualmente, a fixação da titularidade ministerial, tem o mérito de minorar as possibilidades de utilização da ação de improbidade administrativa com viés político e de perseguição institucional.
Assim, é perceptível o avanço da nova legislação, mas para entendê-lo é essencial compreender que a lei de improbidade administrativa representa importante habilitação do poder punitivo no Estado brasileiro e, independente de como seja ela classificada, o fato é que, a partir da sua essência, deve se guiar pelos mecanismos que limitam e racionalizam o exercício do poder punitivo e, assim, não há como afastá-la de determinadas estruturas dogmáticas de direito penal, como a exigência de dolo, a viabilidade de exigência de especial finalidade no agir, a tipicidade que atenda a exigência de taxatividade na descrição da conduta, a clareza nos destinatários para cada hipótese punitiva, entre outras.
O argumento passional de que, com a nova lei fica mais difícil punir, a bem da verdade, não significa absolutamente nada, pois, punir muito não representa avanço algum de uma sociedade, do contrário ter-se-á que reconhecer serem os nazistas, por exemplo, os quais mataram milhões a título de punir pessoas que contrariavam suas leis, o ápice evolutivo humano, o que, ninguém imagina defender.
A questão é simples, a habilitação do poder punitivo, independente do formato legislativo pelo qual se corporifique deve se submeter aos filtros e controles próprios da dogmática penal, com o objetivo de que a parcela mais irracional seja bloqueada, o que na antiga lei de improbidade administrativa não ocorria, havendo espaço amplo para a irracionalidade punitiva, enquanto, a nova lei, tem, em uma primeira análise, o mérito, de trazer alguns mecanismos possíveis de serem bem desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência, para cumprir adequadamente a tarefa de admitir a manifestação punitiva, apenas na sua parte menos irracional.
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