Cultivar a memória de pessoas exemplares, ao mesmo tempo que é um ato de Justiça, é também uma atitude pedagógica.
É um ato de Justiça porque o tributo a personalidades que souberam frutificar sua existência, na luta por um mundo melhor, é uma forma de compensar, ainda que postumamente, a entrega generosa da própria vida feita por essas pessoas.
É uma atitude pedagógica porque aponta um norte para a coletividade, especialmente para os jovens, tão carentes de modelos positivos.
Quanto se destaca hoje a futilidade, quanto se homenageia o ter e não o ser, como fica perdida a juventude diante de tantas rotas enganosas propostas como ideal de vida!
Em oposição a esses equívocos, como é importante mostrar que vale a pena servir e não ser servido, vale a pena juntar-se a outros, em mutirão, a fim de tornar realidade o projeto de uma sociedade mais justa.
Houve no Estado do Espírito Santo um Bispo chamado Luís Gonzaga Fernandes. Foi o principal arquiteto das comunidades eclesiais de base, na Arquidiocese de Vitória. Seu trabalho na construção desta nova Igreja do Povo serviu de modelo para o Brasil e até mesmo para a América Latina.
Dom Luís foi também o inspirador da Comissão Justiça e Paz de Vitória, um espaço ecumênico onde profissionais de várias áreas puderam comungar a crença nos valores de Justiça e dignidade da pessoa humana.
Para preservar e engrandecer a memória do Bispo Luís foi criado pelo Governo capixaba o Prêmio Dom Luís Gonzaga Fernandes, atribuído anualmente. Uma comissão representativa da comunidade capixaba, depois de criterioso estudo, indica ao Governador do Estado pessoas ou instituições que são consideradas merecedoras da láurea.
Neste ano receberam o Prêmio: o fotógrafo mundialmente conhecido Sebastião Salgado; o médico e militante social Rogério Coelho Vello (postumamente); e a Associação Capixaba de Combate ao Câncer Infantil.
À primeira vista pode parecer que os premiados pertencem a mundos diferentes, com ações e trabalhos distintos, cada um na sua área de atuação: Medicina, Fotografia, Ação Social.
Entretanto se com olhar profundo descortinamos a trajetória das duas pessoas e da entidade homenageada, identificaremos que um vínculo fundamental a todos enlaça.
Eu me lembro de Rogério Coelho Vello prestando assistência aos despejados de Rosa da Penha, abrigados na Catedral de Vitória. Colocar os despejados dentro da Catedral, a cinquenta metros do Palácio da Justiça e a cem metros do Palácio Anchieta, tinha a força da cobrança de providências imediatas. O repto teve efeito. Os Poderes Públicos encontraram terra para localizar os despejados e esses edificaram um novo bairro – Nova Rosa da Penha. Rogério foi incansável naquela emergência, examinando as crianças, vacinando todos. Recaiu sobre seus ombros a responsabilidade, como médico, de evitar que dali eclodisse uma epidemia. Se a tragédia acontecesse, a Igreja, a Comissão Justiça e Paz, o médico seriam responsabilizados por tudo que houvesse, como se culpados fossem.
Sebastião Salgado documentou fotograficamente a seca no Norte da África, realizando um trabalho em colaboração com a ONG Médicos sem Fronteiras. De 1993 a 1999 Sebastião Salgado voltou seus olhos para o fenômeno global de desalojamento em massa de pessoas, trabalho do qual resultou o documentário Êxodos e Retratos de Crianças do Êxodo. Na apresentação deste livro, Sebastião Salgado escreveu: "Mais do que nunca, sinto que a raça humana é somente uma. Há diferenças de cores, línguas, culturas e oportunidades, mas os sentimentos e reações das pessoas são semelhantes. Pessoas fogem das guerras para escapar da morte, migram para melhorar sua sorte, constroem novas vidas em terras estrangeiras, adaptam-se a situações extremas…"
A Associação Capixaba de Combate ao Câncer Infantil — Acacci, é uma organização não-governamental que tem como principal objetivo melhorar a qualidade de vida dos afetados pelo câncer infantil. Acolhe crianças e adolescentes atingidos e socorre os familiares que acompanham a longa jornada. Solidários com o duro embate, dia e noite, estão os voluntários da Acacci.
Há uma identidade entre os despejados de Rosa da Penha, os que são desalojados em massa por causa das guerras e as crianças atingidas pelo câncer infantil.
Um mesmo sentimento leva o médico, o fotógrafo e os voluntários da Acacci a olharem com ternura para o rosto dos que sofrem: o amor fraterno, a capacidade de oferta da vida por causas que suplantam a duração da própria vida.
Que grande homenagem à memória de Dom Luís Gonzaga Fernandes é exaltar pessoas, vidas e obras que se pautaram por escolhas semelhantes às dele.
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