A Revista VEJA de 04.11.09, p. 109 e ss., cuidou de um assunto mais atual que nunca: da civilidade. Divulgou-se um “pequeno manual da civilidade”. Falar em civilidade no momento em que o nosso planeta (já super-habitado) atinge a marca de 6,4 bilhões de pessoas (seremos 7 bilhões em 2012 e 9 bilhões em 2050), com distintas formas de educação, não é nada desprezível. Nossos espaços estão ficando cada vez mais reduzidos. Sobretudo para quem vive em cidades populosas, cada centímetro passou a ser disputado aguerridamente (no trânsito, na escola, nas ruas, no trabalho, nos shoppings, nos restaurantes, nos shows etc). Quando éramos crianças, muitos de nós tínhamos vastos espaços para a locomoção. O mundo moderno, especialmente nos grandes centros, nos impôs uma angustiante proximidade e, de sobra, uma enorme potencialidade conflitiva.
Se não seguirmos (todos) algumas regras mínimas de civilidade ou, como disse Piero Massimo Forni (Professor da Universidade de Johns Hopkins), para a Revista citada, se não desenvolvermos (cuidadosamente) nossa capacidade de nos relacionar, respeitando limites, teremos uma vida muito conflitiva, stressante, desagregadora, briguenta (podendo, às vezes, ser violenta, doente, judicializada ou mortífera).
O que é civilidade? De acordo com o Aurélio, civilidade é o “conjunto de formalidades observadas entre si pelos cidadãos em sinal de respeito mútuo e consideração”.
O que se extrai desta definição? De plano, três notas importantes: (a) a civilidade tem tudo a ver com “formalidades” (sociais), ou seja, convenções sociais, construções sociais, regramentos criados pelos (e para os) seres humanos; (b) todos os indivíduos devem observar essas regras (aliás, quando razoáveis, quem não as observa passa a ser um bárbaro, um selvagem, um ser humano ou monstro em “estado natural”, como dizia Hobbes) e (c) para que haja respeito mútuo, consideração recíproca, isto é, uma convivência saudável (ou ao menos suportável). Civilidade, em suma, é o conjunto das regras éticas ou morais ou comportamentais mínimas para dar sustentabilidade à nossa convivência.
Uma primeira noção de civilidade nos conduz a pensar em polidez, urbanidade, delicadeza, cortesia etc. A matéria citada catalogou dez manifestações de civilidade: honorabilidade (honradez), integridade, cordialidade, tolerabilidade, autocontrole (para evitar a agressividade), respeitabilidade (em relação ao próximo), honestidade, urbanidade verbal (contenção verbal), cavalheirismo (saber pedir desculpas) e decoro. A essas poderíamos agregar muitas outras: silenciosidade (evitar o ruído ou o barulho desnecessário), autocontrolabilidade dos instintos primitivos (ou selvagens), prestação de contas ao público (“accountabitity”) - para quem exerce cargo ou função pública -, aprimoramento dos mecanismos de controle de todos os poderes públicos etc. Quanto mais controlado o poder público (pelos próprios órgãos públicos, pela imprensa, pela opinião pública etc.), mais civilizado é.
Na nossa vida alcançar sucesso (ou seja: aquilo que uma pessoa define como objetivo), normalmente, não é coisa nada fácil. E se você pensa que o sucesso é a coisa mais difícil do mundo, é porque você ainda não parou para refletir sobre a sustentação dele. Ser uma pessoa de sucesso já te custa muito, mantê-lo e, se possível, incrementá-lo, te custa muito mais. A melhor posição numa corrida de fórmula 1 é o primeiro lugar. Mas também é a pior posição, porque em todo momento que você olha para o retrovisor lá estão, bem próximos, incontáveis concorrentes.
Toda pessoa que já conquistou um determinado sucesso na vida (que já alcançou o que pretendia: um emprego, uma chefia, uma diretoria, um cargo ou uma função, um namoro, um casamento, uma profissão, uma fama etc.), para não se transformar repentinamente num insucesso tem que prestar muita atenção no retrovisor da civilidade (ou seja, nas regras da boa convivência, da honorabilidade, do respeito aos demais etc.). Manter o sucesso é tão relevante (e, com frequência, penosamente tão difícil) quanto conquistá-lo. Nunca deveríamos nos esquecer disso (porque há muita gente que conseguiu sucesso e depois caiu em descrédito).
Na nossa vida (não importa a época que te tocou viver, o lugar etc.) o sucesso quando acompanhado da falta de civilidade pode ter o mesmo significado (ou seja: o mesmo dissabor) do insucesso. Apesar das profundas mudanças comportamentais geradas pela chamada era da informação (internet, web, relacionamentos sociais, homo digitalis, homo conectus etc.), o que não podemos ignorar é que as regras de civilidade continuam (todas) vigentes.
Você pode ser hoje um comunicador diferente (e normalmente você é), bastante informal, que descuida da linguagem e das regras de gramática, que não respeita as concordâncias, que abrevia todas as palavras, alguém que só produz textos breves (no celular, no e-mail, nos suportes de relacionamento social), que abusa das siglas e dos acrônimos (palavras formadas pelas primeiras letras ou por algumas letras, locução abreviada: saudade querida virou “sde qda”), não importa, você (como todos os demais mortais da Terra) não escapa das regras da civilidade. Por quê?
Porque, como bem dizia Baltasar Gracián (um sábio jesuíta do século XVII – 1601-1658) (cf. A arte da sabedoria, tradução de Ieda Moriya, 4. ed., Rio de Janeiro: Best Seller, 2008, p. 45), “O homem nasce selvagem. Doma-se a fera cultivando-o. A cultura nos transforma em pessoas: e tanto mais quanto maior for a cultura. Com essa crença, a Grécia pôde chamar o resto do mundo de bárbaro”. Todo ser humano tem seu lado humano e seu lado animal. Quanto mais se aprimora nas regras da humanidade, mais aniquila a animalidade (o ser bruto, o selvagem, o primitivo).
A ignorância, dizia o mesmo autor, “é rude e grosseira”. Não existe “nada mais educador do que o conhecimento”. Mas, cuidado: “o conhecimento sem refinamento é tosco”. O conhecimento interior se perde quando exteriorizado sem refinamento nos atos, nas atitudes, nas palavras, nas ações. Saiba transformar um dado em informação, a informação em conhecimento, o conhecimento em experiência e a experiência em sabedoria. Isso significa que “não é só a inteligência (a cultura) que devemos aprimorar, mas também nossos desejos e principalmente nossa conversa”.
Cabe a você decidir: quer ser uma pessoa requintada (civilizada) ou um ser bruto (selvagem, bárbaro, bestial)? O sábio Baltasar Gracián ponderava: “Alguns exibem um requinte natural tanto nos talentos quanto nas palavras, tanto no adorno corporal (que é como a casca) quanto nos dons espirituais (o fruto). Já outros são tão brutos que embaçam tudo, até mesmo suas qualidades superiores, por uma insuportável e selvagem falta de refinamento”. Pense nisto: o conhecimento já é um progresso, mas não basta. Ele tem que ser acompanhado do refinamento.
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