O juiz deve ser neutro à face das partes porque é o fiel da balança. As partes apresentam suas razões e provas. O juiz deve decidir com independência: retilíneo diante dos poderosos, compreensivo para ouvir os humildes.
Já quando se trata de optar por valores éticos e jurídicos, o juiz não é neutro. Todo juiz carrega no seu espírito um conjunto de idéias, ou seja, uma ideologia.
Há escolhas a serem feitas. Os juízes devem ser honestos consigo mesmo reconhecendo que fazem escolhas e honestos perante o grupo social afirmando as escolhas que fizeram.
Abaixo a hipócrita neutralidade de advogados, procuradores, juízes, desembargadores, ministros! Essa neutralidade sempre protegeu escolhas de conservação das estruturas. Decidamos por qual mundo lutaremos, que interesses consideramos legítimos e merecedores da tutela de nossas valorações.
O jurista tem, a meu ver, uma tarefa na construção da Democracia real, que não se confunde com a democracia de fachada.
A Democracia real é obra de artesanato. Não virá de cima para baixo. Terá sua gestação no processo democrático, com suas dificuldades e revezes.
O jurista, que optou pela transformação social, deve ter ouvidos para ouvir os clamores de Justiça do povo. Ter alma e sensibilidade para ler as leis que o povo pressente como justas e quer escrever. Optar por um projeto de mundo fundado na igualdade, que abomine os privilégios e todas as formas de exploração do ser humano. Entrar em relação de comunhão com as classes populares, no rito de um sacerdócio ungido na opção pelos deserdados da lei, pelos órfãos de direito. Colocar seu saber a serviço dessa causa. Agir criativamente em busca de novos institutos jurídicos, novas interpretações que contemplem os que sempre estiveram à margem dos direitos. Ao advogado também cabe agir criativamente buscando novas sendas, atalhos que socorram o grito dos que estão famintos de Justiça. Deve o advogado explorar as contradições do sistema legal, um veio tão rico para avançar conquistas populares.
O sistema legal, mesmo sufragando interesses essenciais das classes dominantes, tem de fazer concessões. A própria capacidade hegemônica do Direito está na dependência de que suas determinações assumam um caráter de igualdade em certos direitos e deveres, como observou o cientista político Emir Sader.
O jurista que optou pelo lado dos oprimidos deve procurar dar vida a certos princípios constitucionais programáticos, colocados às vezes sem propósito de real vigência no texto da Constituição.
Deve o jurista, comprometido com um projeto popular, tentar localizar, com olhos de ver, o "espaço em branco" dentro do sistema de legalidade, um espaço que "possa juridicamente ser preenchido e que escape ao alçapão da ideológica legalidade que induz à não-mudança, ao imobilismo, à manutenção do status quo". (Luiz Edson Fachin.)
Que Direito será o mediador da obra de artesanato democrático que os juristas devem ajudar a realizar?
Será "um direito permanentemente inacabado", como proclamou o Movimento Nacional de Direitos Humanos.
Será um Direito que se recusa a ver o mundo e a sociedade como naturalmente harmônicos, sob a égide imparcial do Estado, concepção analisada por Rui Portanova.
Será um "direito achado na rua" (Roberto Lyra Filho), um direito que se abre às diversas formas do jurídico efetivamente presentes nas relações sociais, um Direito aberto aos sujeitos coletivos, como esclarece José Geraldo de Sousa Júnior.
Será um "direito insurgente", localizado dentro do conflito de classes, dentro da realidade brasileira e latino-americana, segundo a visão de T. Miguel Pressburger.
Será um Direito que se cria pela luta da classe operária, com os correspondentes mecanismos que os tornam eficazes, mesmo que à margem do direito estatal e do aparelho judiciário do Estado, na visão clara do advogado trabalhista Wilson Ramos Filho.
Será um Direito que resulta de um pensamento crítico, refratário à postura dogmática, segundo a percepção de Lédio Rosa de Andrade.
Será um Direito aberto a outros pensares, à interdisciplinaridade, à busca de semelhanças e de trocas, fugindo do determinismo unilateral que não pode explicar o processo social humano, como colocou Cláudio Souto.
Será um Direito que deite raízes nas necessidades sociais porque, se assim são for, será "inconsistente e insuficiente, por maior que seja o engenho, o rigor lógico ou o grau de abstração que alcance." (Plauto Faraco de Azevedo).
Será um Direito rediscutido nas suas matrizes geradoras. Essa discussão requer um ensino jurídico renovado e crítico, rebelde aos encobrimentos, como assinala José Ribas Vieira.
Será um Direito ideologicamente definido, como toda concepção de Direito é, diferindo apenas de outras concepções porque opta pelos empobrecidos, pelos despojados, não legitima as opressões.
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