Coisa julgada do processo civil
Desde o momento em que o Estado passa a ter monopólio da jurisdição, permitiu ao particular o direito de recorrer à justiça contra decisões que provocavam repercussões negativas na sua esfera jurídica. No início, o direito de obter uma sentença e, hodiernamente, a necessidade de uma resposta jurisdicional que fosse tempestiva, efetiva e principalmente adequada.
Sendo o direito um conjunto de regras e normas que norteiam determinada sociedade, com o objetivo de pacificação social, tem-se a coisa julgada como importante valor para a estabilização das relações jurídicas.
Coisa julgada é qualidade dos efeito da prestação jurisdicional entregue com o julgamento da coisa submetida em juízo, que em virtude da qual, seus efeitos se tornam imutáveis entre as partes.
Conforme conceito firmado no Código de Processo Civil, art. 467, denomina-se coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, não mas sujeita a recurso.
Existem duas modalidades da coisa julgada: a coisa julgada material e a formal. A primeira, torna imutável e indiscutível a sentença de mérito e a segunda produz seus efeitos quando do trânsito em julgado.
Seus efeitos podem ser entre as partes, fora do seu âmbito e erga omnes, dependendo do assunto. Não fazem coisa julgada as sentenças que não resolvem o mérito, ou seja, proferidas com fundamento no art. 267, CPC, as razões de decidir, os motivos, verdades dos fatos e questões prejudiciais. Também não fazem coisa julgada as sentenças proferidas em processo cautelar, na jurisdição voluntária, sentenças que decidem relações jurídicas continuativas, que se renovam no tempo. A coisa julgada material não discute mais a lide nem dentro nem fora do processo. A coisa julgada formal não se discute dentro do processo.
Porém, a partir da Constituição Federal de 1988, vem surgindo o questionamento a cerca da relativização da coisa julgada material, independentemente da ação rescisória, em que a sentença pode ser discutida com fundamento apenas em seus incisos, com o prazo decadencial de 2 anos, que decorrido este prazo, nem o juiz, as partes ou o legislador podem mudar o que já resta decidido. Porém, até esse entendimento tem levantado posições doutrinárias divergentes a respeito da “relativização” da coisa julgada que se apresenta intimamente ligado nos princípios da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana, pois o cidadão não deve ser obrigado a suportar injustiças.
Segundo o jurista Nelson Nery Júnior, a coisa julgada deve ser imutável, por obediência ao princípio constitucional de acesso à justiça, permitindo ao cidadão a segurança jurídica necessária para a estabilização das relações, dando fim ao litígio. Já segundo Humberto Theodoro Júnior, se a sentença for abusiva, marcada de erros grosseiros, inconstitucional ou injusta, mesmo com trânsito em julgado e passado o prazo decadencial da Ação Rescisória, deve prevalecer os direitos fundamentais da pessoa. Nesta mesma linha, Cândido Rangel Dinamarco ressalta que não permitindo uma revisão de sentença eivada de vícios, corre-se o risco de “eternizar injustiças”. Elenca ainda, Dinamarco, pontos em que o instituto da relativização da coisa julgada alcance seu objetivo, que são: princípio da razoabilidade e proporcionalidade, moralidade administrativa, justo valor nas indenizações, zelo pela cidadania e direitos do homem, fulminar sentenças que se fundamentem em fraudes, erros grosseiros e outros vícios.
Coisa Julgada do processo penal
A coisa julgada penal, segundo CERONI, é a sentença condenatória definitiva transitada em julgado, que resolve o mérito e soluciona a lide. É a sentença cuja a sanção aplicada diz respeito a ocorrência de fato típico categorizado como crime ou contravenção.
A coisa julgada, tanto no processo civil como no penal, é uma garantia constitucional de tutela a direito individual (art. 5º, inciso XXXVI, CF). Caracteriza-se pela indiscutibilidade e imutabilidade da decisão e visa proporcionar segurança jurídica nas relações sociais. É tornar a sentença estável dentro e fora do processo, em virtude de não cabimento de recursos contra o que foi decidido (coisa julgada formal), porque impede qualquer indagação ou reexame do que contem na prestação jurisdicional.
A coisa julgada está fundada (tanto no processo civil como no penal) em imperativos decorrentes do bem comum, atendendo as exigências de segurança e estabilidade da ordem jurídica nacional. Em face desse quesito, prefere o ordenamento jurídico manter a força material da coisa julgada, sendo que o menor dos males é manter o efeito preclusivo da res judicata. Mas segundo Lucchini, “a certeza legal deve ceder à certeza dos fatos: é quando a autoridade do julgado necessita dobrar-se à tutela da inocência do réu” Daí os remédios extraordinários para revisão pro reo.
O princípio de que a res judicata é intangível não é absoluto. Como já vimos, no processo civil, é bem aceita na doutrina a relativização da coisa julgada. A sentença penal condenatória irrecorrível, no sistema penal brasileiro, pode ser atacada através de ações impugnativas, como por exemplo, a revisão criminal, que pode ser fundamentada em causas de extinção de punibilidade, fatos novos que beneficiem o condenado, a descriminização de fato anteriormente considerado típico. No art. 621 do CPP, será admitida quando a sentença for contrária ao texto legal, ou condenação diferente do que preconiza nos autos, quando contaminada por depoimentos, exames ou documentos falsos.
Nesses casos, a coisa julgada é meramente formal, não pode converter-se em verdade absoluta, se possa ser afastada por outros fatores supervenientes.
Se de fato o legislador quisesse enunciar que o princípio da coisa julgada é a própria verdade, “ter-se-ia dito: res judicata veritas este” (Ceroni, p.29).
A coisa julgada torna-se vulnerável quando alegadas injustiças, erro judiciário, suspeição do juiz. Fere-se de morte a intangibilidade da “decisão imutável”, que pode ser atacada também por mero Habeas Corpus.
Coisa Julgada “imutável” do processo penal e sua evolução histórica
Em tempos remotos não havia qualquer instituto para reexame de sentenças condenatórias. Mas há registros da existência de impugnações, que continham elementos fundamentais: julgamento findo e erro judiciário. Na Índia, através da Leis de Manu, podia-se reformar a sentença condenatória em caso de erro judiciário, Na Grécia, sentença baseada em falso testemunho. Na Lei de Moisés e do Talmud, por alteração da legislação ou surgimento de nova prova. A primeira nação que abordou o tema da revisão de coisa julgada com maior ênfase foi a civilização romana, em que a decisão condenatória, é a denominada restitutio in integrum (restituição por inteiro), que após sua desconstituição, passa o réu ao status quo ante. No Direito Canônico, influenciado pelo direito romano, integrou em seu código o instituto da restitutio in integrum, só que com prazo para seu requerimento de três meses. A Itália adotou o instituto da querela nullitatis, que se identifica com a restitutio in integrum na medida que, possui efeito retroativo e ataca sentenças transitadas em julgado, restabelecendo a situação anterior.
No direito Francês é que se considera o “embrião renascente da revisão criminal”. Com a promulgação da Ordenança de 1670, passou-se a reconhecer o direito de réus inocentes, para, em caso de erro material sobre a pessoa, injustiças ou erros de direito e de fato, devolver ao réu seus bens, reputação e renome, inclusive após sua morte. No advento da Revolução Francesa, foi suprimida a revisão, retornando com o Código de Instrução Criminal de 1808.
As ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, do Direito Português, que previam a revisão criminal por influência romana, instituído através de recurso de revista, e que foi o precursor da revisão criminal no Brasil.
Coisa julgada material
A res judicata material torna-se definitiva fora do processo em que foi proferida para impedir uma nova persecutio criminis sobre o mesmo fato delituoso que constituiu objeto da decisão tornada preclusa e imutável em virtude da coisa julgada formal. Ao tornar imutável os efeitos da sentença, impossibilita o reexame do mérito da questão decidida.
Mas as fronteiras que permeiam o entorno da coisa julgada começam a ser invadidas, quando do art. 110 CPP, diz que “a exceção de coisa julgada somente poderá ser oposta em relação ao fato principal, que tiver sido objeto da sentença”. No âmbito subjetivo, trata-se de eficácia somente para as partes, sendo o Estado titular da jus puniendi, e o réu a mesma pessoa que foi julgada como autor, partícipe ou co-autor de crimes definidos em lei.
Isso exclui as questões prejudiciais, apreciadas pelo juiz incidente tantum, que a lei considera como acessórias, e que portanto não são idôneas a revestir-se da imutabilidade da coisa julgada material. O mesmo ocorre com os motivos e os fundamentos da sentença que tampouco têm projeção vinculativa fora do processo.
Efeitos na vida civil da sentença penal absolutória.
É vedada a interposição de revisão criminal para desconstituir a sentença penal absolutória (revisão pro societate), sob pena de ofensa ao princípio da irretratabilidade dessas decisões, confirmadas pelo próprio art. 621, que elenca somente “sentenças condenatórias”. É defeso também na revisão criminal agravar a situação do réu, proibindo a reformatio in pejus.
A vinculação da responsabilidade civil à sentença absolutória penal vem estabelecida em diversos dispositivos legais.
Em primeiro lugar, o art. 66 do CPP exclui a responsabilidade civil quando a sentença penal reconhecer, categoricamente, a inexistência material do fato. A aplicação do art. 66 restringe-se aos casos em que o juiz declarar não ter o autor cometido o fato delituoso de que é acusado, por não haver praticado a conduta comissiva ou omissiva imputada.
A absolvição por atipicidade não exclui, evidentemente, a responsabilidade civil, pois o fato imputado pode não constituir crime, mas sim ilícito civil. É que o ilícito penal pressupõe sempre o ilícito civil, mas o contrário não é verdadeiro. O mesmo ocorre com a extinção da punibilidade (art. 67 do CPP).
Nos casos de exclusão da antijuridicidade, a vinculação da responsabilidade civil à sentença absolutória penal é regulada pelo art. 65 do CPP, que estabelece fazer coisa julgada no juízo cível a sentença penal que reconheça ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de um direito.
Mas o art. 65 do CPP não afirma que o réu fica isento de responsabilidade civil nas hipóteses nele previstas. Indica apenas que não se poderá mais discutir, no juízo cível, a respeito das justificativas penais que elidem a antijuridicidade. No entanto, será o direito civil que regulará a responsabilidade nessas hipóteses.
Por sua vez, o Código Civil excluiu da esfera da ilicitude os atos praticados em legítima defesa, no exercício regular de um direito reconhecido ou em estado de necessidade (art. 188 do CC). Desse modo, em princípio, a responsabilidade civil também será excluída nos casos do art. 188 do CC, não se caracterizando neles nem ilícito penal, nem ilícito civil.
Condições da ação revisional
As condições de procedibilidade de ação revisional tem os seguintes requisitos: Interesse de agir legítimo, possibilidade jurídica do pedido e legitimidade .
O interesse de agir baseia-se na existência de uma pretensão objetiva razoável. Após o processo findo (coisa julgada transitada em julgado), deve haver algum prejuízo ao condenado – erro in judicando ou erro in procedendo – que justifique o processo impugnativo. Quanto a possibilidade jurídica do pedido, por exemplo, existência de sentença condenatória e existência de alguma hipótese legal de cabimento, elencadas no art. 621 do CPP. Ampliando o conceito, deve haver sentença condenatória, transitada em julgado, insuscetível de recurso, que esteja impregnada de vícios (erro ou injustiça). Com relação a legitimidade, capacidade de ser parte em um processo como autor ou como réu. A legitimação ativa da ação revisional é do próprio condenado (ordinária), ou de quem faça em seu favor, também enumerados na lei.
A legitimação passiva é do Estado, representado pelo Ministério Público, que deverá apreciar os motivos que autorizaram o réu a pleitear a tutela jurisdicional.
O impedimento de ação revisional pro societate, e a principal razão que norteia aqueles que são contrários à possibilidade de cabimento desta revisão, é a preservação da segurança da coisa julgada, a qual não pode estar, a cada momento, sob reexame, a ponto de tornar-se assunto ad eternum, afirmando que somente caberia quando em jogo a própria liberdade humana.
De toda a sorte não se pode negar que é possível a revisão, não só quando interessa ao acusado, mas também quando é favorável aos interesses da justiça, ou seja, quando, após o trânsito em julgado da sentença absolutória, descobrirem-se provas da responsabilidade criminal do réu, ou então, que as provas produzidas em seu benefício e que fundamentaram a absolvição ou a extinção da punibilidade, revelaram-se falsas, como também quando pessoas arroladas como testemunhas prestarem falso testemunho, livres ou sob coação.
Nestes casos os interesses sociais devem prevalecer sobre os direitos individuais, para preservar a paz social. Não se pode duvidar que o fim último do processo penal é de oferecer à sociedade a devida e esperada segurança e confiança na preservação da mesma. Supremacia do interesse público sobre o privado, que constitui um dos princípios da Administração Pública, também serviço prestado pelo Estado. A justiça diz respeito a todos e, portanto, é crucial que ela esteja presente no dia a dia da coletividade. Nem sempre os conceitos contidos na Carta Magna, como dignidade de pessoa humana e outros, devem perpetuar situações que se tornem insustentáveis no meio social, provocando a sensação de impunidade. Também é necessário que nossos agentes de justiça devam admitir um processo de controle, para evitar a infiltração de agentes hábeis a utilizar este instituto em causa própria, possibilitando vinganças pessoais, políticas e econômicas.
João Barbalho Uchoa Cavalcanti, outro aliado da revisão das sentenças absolutórias injustas, assevera que: "Justiça é, sim, mandar em paz o inocente perseguido, mas também é castigar o culpado reconhecido como tal. E se este, em dados casos previstos em lei, poderá ser isento de pena, não o deve, entretanto, ficar se iludiu a Justiça, ou se ela enganou-se ao absolvê-lo. A punição dos criminosos é condição de segurança geral e a autoridade pública trai sua missão e compromete os mais altos interesses e deveres da sociedade, quando tem contemplações com o crime. Num caso, proclamando inocente o injustamente condenado, a sociedade o reabilita e paga-lhe uma dívida; no outro, fazendo recair a pena legal sobre o criminoso considerado falsamente inocente, a sociedade desafronta a justiça, defende outros inocentes, os demais membros da comunhão, que nela descansam, na confiança de serem protegidos contra os criminosos... O órgão jurisdicional não pode se curvar ante a manifesta evidência de uma conduta delituosa, não punida, nem o agente pode se beneficiar a pretexto e sob o manto da coisa julgada".
Cabimento de revisão criminal de sentença absolutória
A revisão pro societate, dentro deste contexto, seria necessária para que se alcançasse a verdadeira justiça e a almejada segurança de todos. É de suma importância que tenhamos em mente a verdadeira abrangência do termo "justiça", para podermos avaliar a importância da revisio de sentenças absolutórias, a fim de que haja, inclusive, um equilíbrio saudável para a vida social dos diversos direitos e garantias constitucionais, os quais, a propósito, não são absolutos.
Se a coisa julgada pode ser revista em favor do condenado, porque não poderia ser, também, quando o interesse em jogo é da sociedade e da própria justiça? Se, por exemplo, o réu falsifica sua própria certidão de óbito visando a extinção da punibilidade, ou ainda, falsifica provas para obter sua absolvição, por que a sentença que lhe foi favorável no processo de conhecimento não pode ser desconstituída através da revisão criminal? No âmbito do Tribunal do Juri, poderia o condenado coagir testemunhas para inocentá-lo ? Esta sentença não deveria ser atacada por revisão criminal pelos parentes da vítima que sentiram traídos pelo Estado ?
Desta forma, respeitando inúmeras opiniões em contrário, com a consciência de que dentro da revisão criminal pro societate, também sejam exigidos os requisitos de admissibilidade, exatamente como para o condenado, principalmente nos casos excepcionais, naqueles crimes que provoquem verdadeira comoção social, em homenagem a justa retribuição pelo crime cometido, e em prol do fim da impunidade.
Somente o Ministério Público pode ser dotado de legitimidade, nos mesmos casos de liberdade de ação, ou sendo legitimo que somente os familiares da vítima ou quem se sentir prejudicado diretamente pela absolvição do condenado, poderiam representar.
A sentença no processo de revisão nestes casos, deverá ser submetida ao Supremo Tribunal de Justiça, por tratar-se de matéria excepcional, e somente por voto unânime. Fato novo ou não apreciado no julgado é indispensável para propor a revisão.
No caso de réu falecido, não caberia revisão pro societate, pois inconcebível uma prestação jurisdicional em prol da segurança pública, se quem a ameaça já não puder mais fazê-lo.
CERONI, Carlos Roberto Barros. Revisão Criminal. Características, conseqüências e abrangência. 1ª ed. Ed. Juarez de Oliveira Ltda. São Paulo, 2005
MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Vol. III, 2ª ed. Ed. Millennium. Campinas/SP, 2003.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 18ª ed. Ed. Atlas. São Paulo, 2006.
Bancária. Acadêmica de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HEOFACKER, Márcia Cruz. As fronteiras da coisa julgada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jan 2010, 10:09. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/501/as-fronteiras-da-coisa-julgada. Acesso em: 24 nov 2024.
Por: Leonardo Sarmento
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Por: Carlos Eduardo Rios do Amaral
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