A Constituição Federal, no seu artigo quinto, inciso seis, assegura a plena liberdade religiosa.
Essa garantia democrática foi fruto de muita luta no decorrer da História, tanto no mundo quanto no Brasil.
As religiões majoritárias sempre tiveram liberdade de se expressar. As restrições ao culto atingiam, invariavelmente, as minorias religiosas.
Quando hoje, no Brasil, vemos que todo cidadão tem o direito de escolher seu credo, guiado exclusivamente pela própria consciência, nós nos rejubilamos com esta conquista. Também nos alegra que os seguidores desta ou daquela Fé possam propagar os princípios religiosos nos quais acreditam, sem serem coibidos na sua escolha.
Há um postulado jurídico que condiciona o exercício da liberdade. Está expresso nestes termos: “o meu direito termina onde começa o direito alheio”.
Ajustando esse postulado à liberdade de culto temos como conclusão que a liberdade de culto é limitada por outros direitos igualmente protegidos.
Vejamos uma hipótese.
O artigo quinto da Constituição estabelece que a casa é o asilo inviolável do indivíduo (inciso onze).
Assim, a liberdade de culto não autoriza que, invocando essa liberdade, alguém agrida a intimidade do lar.
Exemplificando.
É legítimo que um evento religioso expulse os moradores de suas casas obrigando esses moradores a refugiar-se alhures, por ser absolutamente insuportável o ruído provocado pelo evento?
É legítimo que um evento religioso proíba o trânsito de carros na rua onde o evento ocorre, impossibilitando os moradores de entrar na própria casa ou dela sair?
A resposta peremptória às duas perguntas é negativa, ou seja, a liberdade religiosa não pode sacrificar a inviolabilidade da casa.
Observe-se que, no caso de pessoas idosas, essa agressão pode ter consequências muito graves. Figuremos a situação de um idoso que não pode sair de casa e refugiar-se na casa de um parente que resida longe do barulho. Além de ser agredido pelo ruído poderá correr risco de vida se, numa emergência, ficar impossibilitado de ser conduzido a hospital porque sua rua está bloqueada.
Fazendo agora uma digressão teológica, com humildade porque não sou mestre nessa area. Jesus Cristo passou trinta anos de sua vida no silêncio de Nazaré. Nesse período não apareceu, não se manifestou. Jesus ficou trinta anos em silêncio.
Todos os místicos amaram o silêncio. Não se conhece nenhum místico barulhento. O silêncio é indispensável à paz interior e à comunicação com Deus.
Também o estudo, a reflexão e a vida familiar necessitam de silêncio.
O barulho excessivo prejudica a saúde, causa nervosismo e pode provocar sérios danos ao organismo. Há doenças profissionais oriundas da excessiva exposição ao barulho. O legislador trabalhista teve sensibilidade para entender isto, reduzindo a jornada de trabalho e o tempo para a aposentadoria daqueles que ganham o pão com o ouvido espancado pelos ruídos.
Cabe ao Município cuidar dos interesses da comuna legislando, prestando serviços, organizando. (Artigo 30 e seus incisos da Constituição Federal).
As prefeituras municipais cumprem seu dever de preservar a convivência democrática:
a) quando estabelecem horário para o silêncio, horário que pode ser mais amplo do que aquele estabelecido pela lei federal, pois cabe aos municípios regular os assuntos de interesse local, à vista das peculiaridades da comuna;
b) quando fixam limites para o barulho nos horários em que não prevaleça a exigência de silêncio total;
c) quando tomam providências para preservar o silêncio público.
A consciência cidadã aponta no sentido do acolhimento espontâneo a padrões de convivência civilizada. Dentro da convivência civilizada, não podemos incomodar o outro com barulho excessivo. Mas ainda assim a presença do Poder Público será necessária para exigir dos desobedientes o respeito à paz alheia.
Haverá situações em que cabe a intervenção da própria Polícia tendo em vista que a perturbação do sossego alheio é contravenção penal punida com pena de prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa. (Art. 42 da Lei de Contravenções Penais).
O artigo 42 da LCP exemplifica casos de perturbação do sossego: gritaria ou algazarra (inciso I); abuso de instrumentos sonoros ou sinais acústicos (inciso III).
Teço estas considerações num momento em que os moradores de um bairro da Grande Vitória foram atingidos justamente pelo que está descrito neste artigo.
Como decorrência de um evento religioso, moradores do bairro tiveram de sair de casa para poupar-se do barulho insuportável e do aprisionamento no próprio lar, sem a possibilidade de locomover-se.
O Ministério Público capixaba ingressou com ação civil pública pretendendo que o evento se realize em local adequado, onde não cause tantos transtornos às famílias.
Creio que o Ministério Público está com a razão.
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