A edição da Lei 11.983, de 16 de Julho de 2009 veio em boa hora para revogar a contravenção penal de mendicância prevista no artigo 60 do vetusto Decreto – Lei 3688, de 3 de Outubro de 1941, conhecido como Lei das Contravenções Penais.
Há tempos já não se justificava a existência de uma infração penal para a prática da mendicância, especialmente considerando a situação de extrema pobreza de boa parcela da população brasileira. Se é verdade que há casos de pessoas que usam de engodo para explorar a boa fé e a solidariedade humanas para locupletarem-se, a realidade demonstra que na maioria das vezes era mesmo inexigível conduta diversa das pessoas que vivem nas mais precárias condições de habitação, vestimenta, higiene, alimentação etc.
Demorou a finalmente conscientizar-se o legislador brasileiro de que a criminalização da pobreza não é o caminho para a solução dos ingentes problemas sociais que assolam nosso país. Antes do legislador os próprios órgãos responsáveis pela repressão às condutas configuradoras de infrações penais já haviam dado mostras de bom senso, pois que a despeito da criminalização primária da mendicância (previsão da conduta como contravenção no artigo 60, LCP), sua criminalização secundária (aplicação efetiva do dispositivo legal pelas agências repressivas) vinha sendo reduzida à insignificância, fato este facilmente constatável mediante uma singela consulta aos índices estatísticos policiais e judiciais.
Com o advento do artigo 1º. da Lei 11.983/09, que promove a revogação expressa do artigo 60 da Lei de Contravenções Penais, doravante ninguém poderá ser processado ou condenado pela contravenção de mendicância e para aqueles raríssimos casos ainda em andamento por tal infração penal operou-se a chamada “abolitio criminis”, devendo ser sustados quaisquer feitos (Inquéritos Policiais, Termos Circunstanciados ou Processos) e tornadas sem efeito eventuais condenações e execuções.
Talvez alguém sinta que a revogação deixa uma indesejável lacuna legal para as condutas mais gravosas previstas com aumento de pena no Parágrafo Único do artigo 60, LCP, tratando da mendicância praticada de “modo vexatório, ameaçador ou fraudulento”, “mediante simulação de moléstia ou deformidade” ou “em companhia de alienado ou de menor de 18 anos”. Na verdade, a eliminação do dispositivo contravencional facilita a tipificação dessas condutas, desde que venham realmente a atingir bens jurídicos como a liberdade ou o patrimônio alheios ou ainda a dignidade de crianças ou adolescentes. Para isso estarão sempre à disposição os crimes de roubo e extorsão (artigos 157 e 158, CP); de estelionato (artigo 171, CP) ou o artigo 232 da Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Quanto ao alienado, ou sendo a criança ou adolescente não submetida à autoridade, guarda ou vigilância do autor do crime, ainda restam para colmatar a aparente lacuna as infrações penais de Constrangimento Ilegal (artigo 146, CP) e de Corrupção de Menores, esta prevista no artigo 244 – B da Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Note-se que neste último caso, considerando que o autor cometa alguma infração penal com o menor (v.g. estelionato), já que não se poderá apontar a revogada contravenção de mendicância como fator de corrupção exigido pela lei enfocada. A eliminação das condutas contravencionais sobreditas do ordenamento jurídico penal brasileiro torna mais simples a tipificação dos casos mais graves, pondo termo ao antigo problema de conflito aparente de normas ou dúvidas quanto à configuração de crimes ou contravenções. No mais, se efetivamente houver um espaço de atipicidade, isso se dará porque se tratam de casos para os quais as medidas penais não são mesmo adequadas, impondo-se a aplicação prática do chamado “minimalismo jurídico – penal” que pugna por um sistema que adota a utilização do Direito Penal como último recurso (“ultima ratio”).
Aliás, deve-se acrescentar que o legislador perdeu boa chance de também revogar a contravenção penal de vadiagem (artigo 59, LCP), por motivos bastante semelhantes àqueles acima aduzidos com relação à mendicância. Poderia o legislador ter extirpado não uma, mas duas manifestações de um Direito Penal apartado da realidade (desemprego, pobreza etc.) e humanidade, e ilegitimamente afeto à regulação da conduta moral (“Direito Penal do Autor”) e à criminalização de estágios predelituais, fugindo de uma conformação reativa que lhe deveria ser inerente para adotar uma atuação preventiva, característica do ramo do Direito Administrativo. Toda medida tendente a impor limites a essa chamada “administrativização do Direito Penal” e à contenção da expansão do “Estado de Polícia” deve ser bem vinda para o fortalecimento de um Estado Constitucional Democrático de Direito.
Mas, não é somente no campo penal que a revogação da contravenção de mendicância exerce suas influências. No Processo Penal também é relevante sua repercussão quanto ao instituto da inafiançabilidade, mais especificamente no que tange ao artigo 323, II, CPP, que estabelece serem inafiançáveis as contravenções penais de vadiagem e mendicância. Esse dispositivo já vinha sofrendo certo ostracismo devido ao advento da Lei 9099/95, uma vez que as Prisões em Flagrante nesses casos tornaram-se “avis rara”, sendo normalmente substituídas pela lavratura do respectivo Termo Circunstanciado (art. 61 c/c 69, Parágrafo Único, da Lei 9099/95). Somente em casos excepcionalíssimos nos quais a apresentação imediata ao Juizado Especial Criminal não fosse possível e o agente se negasse a assumir o compromisso de ulterior comparecimento é que se poderia cogitar da eventual lavratura de flagrante e aplicação da regra do artigo 323, II, CPP. Agora a parte final do artigo 323, II, CPP, quando se refere ao artigo 60, LCP (mendicância) tornou-se totalmente sem efeito. O legislador esqueceu-se, mas deveria ter alterado a redação do artigo 323, II, CPP, para retirar a parte hoje inútil. Inclusive, como acima consignado, teria feito bem se houvesse revogado também a contravenção de vadiagem, podendo então tornar sem efeito algum todo o inciso II do artigo 323, CPP e ainda, de quebra, o inciso IV do mesmo dispositivo, que veda fiança quando “houver no processo prova de ser o réu vadio”. E não seria somente isso. Também poderia ter eliminado parte do artigo 313, II, CPP, que autoriza o decreto da Prisão Preventiva em crimes apenados com detenção desde que se apure que o réu ou indiciado “é vadio”.
A iniciativa do legislador com a edição da Lei revogadora 11.983/09 foi excelente. No entanto, mesmo as melhores medidas legislativas têm sido marcadas por uma falta de visão global ou sistemática que neste caso específico é representada pelo olvidar do aproveitamento da oportunidade para revogar também a contravenção de vadiagem, bem como de ajustar a legislação processual penal à nova realidade jurídica ensejada com o advento da novel legislação.
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