O longo e penoso processo de construção de uma Advocacia Pública Federal em novas bases, com valores e paradigmas alinhados à modernidade e procedimentos adequados aos novos tempos, experimenta momentos de avanços e de recuos. A exata e mais radical (no sentido de profunda) compreensão e efetivação da condição de instituição de Estado da Advocacia-Geral da União não é um movimento dos mais fáceis.
Nessa dura caminhada, um dos aspectos de maior relevo envolve a identidade do advogado público federal. Aqui, o termo “identidade” aparece como delimitação e consciência do papel desempenhado, notadamente nas relações com os gestores ou governantes (a face visível do “cliente”).
Identificar, com precisão, o “cliente” é o primeiro passo na construção da identidade do advogado público e, de certo modo, condiciona as definições seguintes mais importantes. São duas as possibilidade básicas: a) o “cliente” é o Governo ou b) o “cliente” é o Estado. Ademais, como fator adicional de dificuldade, ouvem-se vozes no sentido de que não existe uma diferença efetiva entre os dois conceitos.
O festejado jurista Diogo de Figueiredo Moreira Neto formulou com precisão e maestria, em estrita consonância com o Texto Maior, a concepção das Procuraturas Constitucionais (Advocacia Pública em sentido amplo). Identificou:
a) a advocacia da sociedade, viabilizada pelo Ministério Público, relacionada com a defesa de interesses sociais com várias dimensões subjetivas, da ordem jurídica e do regime democrático;
b) a advocacia dos necessitados, operacionalizada pela Defensoria Pública, voltada para a defesa dos interesses daqueles caracterizados pela insuficiência de recursos;
c) a advocacia do Estado (ou Advocacia Pública em sentido estrito), instrumentalizada pela Advocacia-Geral da União e pelas Procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, vocacionada para a defesa dos interesses públicos primários e secundários (com a clara prevalência dos primeiros em relação aos últimos, em caso de conflito, em homenagem à construção responsável do Estado Democrático de Direito).
Importa, pois, delinear a essência da advocacia de Estado e apartá-la, se for possível, e é possível, da advocacia de Governo (ou dos governantes).
Perceba-se que o advogado público pauta sua atividade, quer contenciosa, quer consultiva, na legalidade em sentido amplo (ou juridicidade). Na atuação contenciosa são defendidas políticas públicas e atos administrativos sob os argumentos de serem fundados em leis e estarem em consonância com a Constituição. É certo, registre-se, a persistência de uma séria dificuldade, a ser operacionalmente superada, quanto à defesa, ou não, dos atos administrativos reputados ilegais ou inconstitucionais, considerados e devidamente tratados os espaços de razoabilidade e as convicções pessoais acerca das matérias jurídicas envolvidas. Na atuação consultiva são reconhecidas, ou não, a constitucionalidade e a legalidade de políticas públicas e atos administrativos. Ainda nessa seara podem e devem ser apontados os caminhos ou soluções que afastem os ilícitos de todas as ordens para a consecução da decisão política adotada. Esses são os traços mais salientes de uma advocacia de Estado.
Alguns aspectos da atuação dos advogados públicos somente alcançarão um patamar qualitativamente adequado e um padrão de harmonia com a construção de um Estado Democrático de Direito num ambiente de exercício, de prática efetiva, de uma advocacia de Estado.
O exercício da independência técnica (relativa) dos advogados públicos e o viés construtivo das manifestações consultivas e contenciosas reclamam um certo distanciamento dos “interesses imediatos” (e dos “humores imediatos”) dos gestores e administradores. Não é concebível, salvo dentro da triste lógica da advocacia de Governo, uma relação hierárquica, de subordinação, do advogado público em relação à “cadeia de comando” funcional de determinado órgão, ministério ou entidade.
A não-obrigatoriedade de recorrer de todas as decisões judiciais contrárias ao Poder Público também reclama um “olhar” distanciado dos “humores” imediatistas dos gestores. O cálculo de viabilidade de reversão de tendências jurisprudenciais ou de esgotamento da argumentação razoável em torno de determinadas matérias deve ser efetivado substancialmente pelos advogados públicos com estreita convivência com a problemática. Não deixa de ser salutar a criação de um espaço institucional para desenvolver o “diálogo final” entre gestores e advogados públicos em torno do racional encerramento da litigiosidade em relação a certos temas recorrentes.
A defesa de atos de autoridades públicas não pode ser efetivada de forma acrítica, em todos os casos e em quaisquer circunstâncias. Afinal, existem inúmeras situações onde impera a ilegalidade, a imoralidade, a improbidade, a má-fé e o dolo. Esse olhar criterioso está em harmonia com a advocacia de Estado. A tal advocacia de Governo não consegue trabalhar bem a transgressão jurídica (pontual ou “patológica”) do gestor. Nesse sentido, a Portaria AGU n. 408, de 2009, editada pelo então Advogado-Geral da União José Antônio Dias Toffoli, bem demonstra o processo de construção de uma advocacia de Estado. O aludido ato, entre outras hipóteses, não viabiliza a defesa judicial de autoridades quando: a) não tenham sido os atos praticados no estrito exercício das atribuições constitucionais, legais ou regulamentares; b) não tenha havido a prévia análise do órgão de consultoria e assessoramento jurídico competente, nas situações em que a legislação assim o exige; c) tenha sido o ato impugnado praticado em dissonância com a orientação, se existente, do órgão de consultoria e assessoramento jurídico competente, que tenha apontado expressamente a inconstitucionalidade ou ilegalidade do ato, salvo se possuir outro fundamento jurídico razoável e legítimo; d) ocorra incompatibilidade com o interesse público no caso concreto; e) identificada conduta com abuso ou desvio de poder, ilegalidade, improbidade ou imoralidade administrativa, especialmente se comprovados e reconhecidos administrativamente por órgão de auditoria ou correição.
Na advocacia de Governo (ou dos governantes), o advogado público federal é chamado para, diante de uma decisão pronta e acabada (não há participação na “construção” da solução, frise-se), necessariamente atestar a constitucionalidade e a legalidade da pretensão. Invariavelmente, não existe um chamamento direto nesse sentido. Não é dada uma “ordem” para a elaboração de uma manifestação “interessada”. Os “caminhos” são mais sutis, incluindo uma “cuidadosa” seleção de advogados, inclusive públicos, “sensíveis” aos reclamos mais “mesquinhos” do poder.
Observe-se que a advocacia de Governo é tão indesejável e repulsiva que chega a se caracterizar como ilícita, justamente por afrontar a independência técnica (relativa) do advogado público, consagrada, pelo menos, na Constituição, no Estatuto da OAB e em pareceres vinculantes da AGU. Ademais, o padrão de comportamento ínsito à advocacia de Governo não se coaduna com a construção de um Estado Democrático de Direito informado pelo princípio da supremacia do interesse público (primário).
Vislumbra-se, neste momento, a necessidade de ser percorrido um longo e penoso caminho no sentido de fazer valer a prática da advocacia de Estado: a) nas hostes da Advocacia Pública e b) no trato institucional dos diversos órgãos e autoridades com as várias instâncias da Advocacia Pública.
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